Como a falência de uma empresa avaliada em 32 mil milhões de dólares colocou o futuro das criptomoedas em risco. O que aconteceu à FTX?

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

A plataforma de criptomoedas FTX anunciou hoje ter recorrido à proteção da Lei de Falências nos EUA e informou que o seu fundador, Sam Bankman-Fried, renunciou ao cargo.

"A FTX Trading (...) e aproximadamente 130 empresas afiliadas ao FTX Group iniciaram o procedimento voluntário do 'capítulo 11'" da Lei de Falências nos Estados Unidos, para "avaliar" os seus ativos, anunciou a FTX num comunicado publicado no Twitter.

Este mecanismo legal permite que as empresas se reorganizem durante períodos difíceis sem a pressão imediata dos credores.

Mas o que é uma plataforma de criptomoedas?

É um meio através do qual as pessoas podem comprar e vender esses bens digitais. Todas as criptomoedas, como explica aqui o The Guardian, baseiam-se na mesma moeda original, a bitcoin. Esta funciona como uma espécie de moeda padrão, mas o controlo sobre o seu valor é descentralizado.

Para este ecossistema financeiro, plataformas como a FTX são importantes porque são capazes de processar a maioria das transações de criptomoeda do mundo — funcionam como um espaço onde se pode depositar este dinheiro virtual.

Apesar de ter como sede as Bahamas, a FTX é gerida a partir dos EUA e, também por isso, opera sobre a regulação norte-americana. A questão é que esta é quase inexistente, pelo que a maioria deste dinheiro virtual circula sem grandes constrangimentos legais.

Mas o que aconteceu à FTX?

Ironicamente, foi vítima da especulação — da sua e dos outros. Tudo começou com um artigo de um site especializado, o CoinDesk, que alertou para o facto de no balanço patrimonial da Alameda —  um fundo de investimento crypto de Sam Bankman-Fried — constar FTT, a própria criptomoeda da FTX, avaliada em milhares de milhões de dólares.

O problema é que esta criptomoeda estava a ser usada como um bem colateral em empréstimos futuros da Alameda. Ou seja, se desvalorizasse, isso prejudicaria tanto este fundo como a FTX, já que tinham o mesmo dono.

Ora, o problema é que a FTT não tinha, na prática, valor nenhum: este estava assente na promessa da FTX de comprar quaisquer outras criptomoedas a 22 dólares o token (ou seja, a unidade de um criptomoeda).

E depois?

Foi apenas preciso gerar pânico. Changpeng Zhao, dono da principal rival da FTX, a plataforma Binance, escreveu no Twitter que a sua empresa iria vender os seus bens em FTT, avaliados em 500 milhões de dólares, devido a “revelações feitas recentemente”.

Como noutros casos históricos da bolsa de valores, a sequência foi linear: a FTT viu o seu valor colapsar e isto precipitou retiradas em massa. A FTX, que no início do ano valia 32 mil milhões de dólares, viu perder seis mil milhões de dólares em criptomoedas no espaço de apenas três dias.

Com o seu rival de joelhos, Changpeng Zhao ofereceu-se para comprar a FTX, mas houve novo volte-face. Não se sabe ao certo se o dono da Binance queria enfraquecer a FTX para adquiri-la ou se isso nunca fez parte dos planos. O que se sabe é que a 8 de novembro assinou um pré-acordo para comprar a plataforma e, no dia seguinte, desistiu da transação.

Depois de auditar as operações da FTX, "decidimos não continuar a operação de aquisição da FTX.com", explicou a Binance no Twitter, citando informações da imprensa sobre má gestão de fundos de clientes e investigações abertas pelas autoridades norte-americanas.

"No começo, a nossa esperança era poder ajudar os clientes da FTX a oferecer liquidez, mas os problemas fogem do nosso controlo ou superam a nossa capacidade de ajudar", assegurou a plataforma.

E agora?

Retomando o início deste texto, a FTX decretou a falência, alargando a proteção do “capítulo 11” às plataformas de intercâmbio FTX.us nos Estados Unidos, e FTX.com, no resto do mundo, assim como o fundo de investimentos Alameda Research, lançado por Bankman-Fried antes da FTX. 

Outrora visto como um salvador quando propôs, em junho, resgatar empresas como BlockFi e Voyager Digital, ou quando militou por uma regulamentação maior deste setor do mercado de divisas em Washington, Bankman-Fried saiu pela porta pequena, sendo substituído por John J. Ray III.

“O regime do capítulo 11 é apropriado para dar ao FTX Group a oportunidade de avaliar a situação e implementar um procedimento de recuperação máxima para os investidores”, afirmou Ray. 

O que é que isto significa para as criptomoedas?

No imediato, significa desvalorização. A bolsa de Nova Iorque iniciou hoje a sessão com a bitcoin a perder mais de 6%, caindo para 16.458 dólares. A um prazo mais alargado, é mais um sinal preocupante para o setor das criptomoedas.

Depois do fiasco, em maio, da moeda virtual Terra, que seguia a evolução do dólar norte-americano, e da queda, semanas depois, da plataforma Celsius, o ocorrido com a FTX "é um novo fracasso para o setor", avaliou David Holt, especialista em criptomoedas da consultora CFRA. 

Os problemas da FTX "mostram que a liquidez nas plataformas de criptomoedas são muito variáveis", destacou, por sua vez, Dan Dolev, analista da Mizuho, acrescentando que "há muito poucos capitais" por trás como garantia. O rápido declínio da FTX "é um sinal de alerta" para uma outra plataforma, a Coinbase, por exemplo.

Os adeptos das criptos e das tecnologias de blockchain estão habituados a períodos de bonança, seguidos de problemas desde que o bitcoin surgiu, em 2009. O valor de mercado das criptomoedas chegou aos três biliões de dólares em novembro do ano passado, antes de cair para menos de um bilião de dólares em junho de 2022.

De qualquer das formas, é cedo demais para avaliar o impacto do ocorrido com a FTX na concorrência e um eventual contágio de todo setor, avalia Jamiel Sheikh, fundador de várias empresas no mundo cripto. "As contas das plataformas descentralizadas (como a FTX) são opacas, e é impossível determinar qual plataforma pode suportar uma fuga de liquidez", destacou.

Mas se é opaco, não é preciso haver mais regulamentação?

Essa é a questão que se segue. É possível que este episódio “acelere a regulamentação do mercado norte-americano" de criptomoedas, como diz Kevin March, cofundador da plataforma Floating Point Group.

Há "uma necessidade real de regras claras em termos de transparência" sobre as plataformas e de um procedimento sensato em caso de quebra.

Já Sam Lessin, da empresa de capital de risco Slow Ventures, disse à emissora CNBC que as peripécias da FTX e da Binance também têm um lado positivo: no mundo das criptomoedas, "as empresas podem travar uma concorrência feroz, mas também querem que o ecossistema sobreviva e vão ajudar-se entre si", quando há problemas.

De toda forma, para este especialista, o planeta cripto é como o "Velho Oeste", "cheio de aberrações, volatilidade, fraude e, ao mesmo tempo, muitas inovações e projetos que têm valor real no futuro".

*com AFP

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