Tancos e os Metadados. O que é que esta anulação significa para a justiça em Portugal?

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Qual é a notícia?

O Tribunal da Relação de Évora (TRE) anulou hoje o acórdão do julgamento do processo de Tancos, que em janeiro de 2022 levou à condenação de 11 dos 23 arguidos no Tribunal de 1.ª Instância, em Santarém.

Em causa está a utilização de metadados enquanto prova de condenação, sendo que o Tribunal Constitucional determinou no ano passado que tal recurso é inconstitucional. Como tal, é possível que alguns dos condenados sejam absolvidos.

Esta decisão decorreu dos recursos apresentados por 20 dos 23 arguidos — um deles, João Paulino, o principal autor — após o acórdão do Tribunal de Santarém sobre o caso do furto de armas dos paióis de Tancos.

Metadados?

Sim, talvez já não se recorde, mas este foi um dos grandes temas de 2022. Os metadados são a informação disponível quando se faz comunicações ou se usa tráfego num telemóvel. Não são as comunicações em si, mas — como explicámos no ano passado — o que significam: permitem saber a que horas alguém tentou fazer determinada chamada, quando e por quanto tempo.

Resumindo o tema: foi aprovada uma Lei dos Metadados em 2008, que permitia que estes dados fossem armazenados durante um ano, podendo ser usados em investigações criminais. No entanto, o Tribunal Constitucional tornou público em abril de 2022 a deliberação em que considera esta lei inconstitucional; a principal razão prende-se com a violação do direito de privacidade dos cidadãos, porque a lei não visa apenas pessoas suspeitas de crimes e sim toda a gente.

Mas o que é que isso tem a ver com este caso?

Quando o Tribunal Constitucional proferiu este acórdão, abriu uma espécie de “caixa de Pandora” para a justiça portuguesa, porque este não tinha formulado um prazo temporal nem mencionado que valia apenas para o futuro. Por isso, acabou por aplicar-se a todos os casos desde 2008, significando isso a potencial queda de muitas das investigações criminais e processo.

E foi o que aconteceu aqui?

Sim, essa foi a interpretação do TRE, considerando que os factos dados como provados em muitos pontos do processo se encontram irremediavelmente afetados e devem ser reequacionados.

“Do exame do acórdão em recurso decorre, sem equívocos, a utilização de dados armazenados por operadoras de telecomunicações – dados de tráfego e dados de localização – para fundamentar a factualidade” que consta, como provada, em alguns pontos, pode ler-se na decisão.

Os juízes concluíram que, “não sendo permitida a utilização de prova obtida por metadados, não resta senão concluir que a factualidade considerada como provada” em vários pontos se encontra “irremediavelmente afetada e que deve ser reequacionada, expurgando-se, na formação da convicção do Tribunal, o que possa ser resultante de prova obtida por metadados”.

Isso significa que vai haver um novo julgamento?

Não. Em declarações à agência Lusa, Carlos Melo Alves, advogado de João Paulino, explicou que a anulação do acórdão não significa a realização de novo julgamento, mas que o TRE ordena ao tribunal de primeira instância que faça a reformulação do acórdão retirando a parte relativa aos metadados.

No fundo, o tribunal de Santarém tem de voltar a proferir um acórdão com base nos dados disponíveis que não sejam metadados. E isso pode significar um volte-face nas condenações.

Os condenados vão ser absolvidos?  

Não necessariamente, mas é possível. À RTP3, Melo Alves deixou mais alguns detalhes. Visto que alguns dos arguidos foram condenados com provas “quase exclusivamente” compostas metadados, “muito provavelmente vai haver absolvições”. Tal pode não ser o caso de João Paulino, já que confessou ser o autor do furto. No entanto, o seu caso não tem precedentes e é extremamente complexo, já que, por outro lado, os factos que comprovaram a sua autoria deixam de ter validade.

Já houve outros casos de anulamento?

Sim. Um antigo bombeiro de Alfândega da Fé, por exemplo, foi ilibado a 10 de fevereiro da acusação de ter ateado 18 fogos neste concelho em 2020 porque, não podendo recorrer a metadados, o tribunal de Bragança ficou sem provas para usar.

Mais recentemente, o processo E-toupeira também foi afetado pela impossibilidade da acusação de utilizar metadados. E o Público noticiou que há juízes a recusar o acesso a bases de facturação. Mas o caso de Tancos é, de todos, o mais mediático a ser afetado pelo acórdão.

De resto, isto demonstra que os temores da procuradora-geral da República, Lucília Gago — de que havia "efetivamente o perigo" de o acórdão do Tribunal Constitucional ter efeitos retroativos e afetar condenações e investigações —, tinham razão de ser.

E agora?

Há várias propostas legislativas em cima da mesa, mas nenhuma delas avançou ainda. Como confessou ao Expresso André Coelho Lima, deputado do PSD e coordenador do grupo de trabalho a cargo desta questão na Assembleia da República, “é um equilíbrio difícil”.

Este grupo está a tentar uniformizar as propostas do PSD, Chega, PCP e do Governo que baixaram à especialidade, não tendo ainda sido apresentadas de volta à Assembleia da República nem havendo prazo para tal.

Além disso, há ainda a questão da revisão constitucional em curso: PS, PSD e Chega apresentam propostas para resolver o problema do acesso aos metadados das comunicações.

  • O PSD quer incluir na Constituição que “a lei pode autorizar o acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais”.
  • O PS introduz uma exceção ao princípio geral de proibição de ingerência das autoridades à correspondência e telecomunicações, permitindo “o acesso, mediante autorização judicial, pelos serviços de informações a dados de base, de tráfego e de localização de equipamento, bem como a sua conservação”, quando está em causa “a defesa nacional, a segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada”.
  • Na mesma linha, o Chega admite a violação à proteção das comunicações “por razões de segurança pública no âmbito de investigação de criminalidade especialmente grave”, salvaguardando igualmente que tal tem de ser “autorizado por autoridade judicial”.

*com Lusa

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