O caso das gémeas brasileiras e o alegado envolvimento do presidente

Manuel Ribeiro
Manuel Ribeiro

De acordo com uma investigação transmitida pela TVI na sexta-feira, o presidente da República é suspeito de ter influenciado politicamente um tratamento raro e extremamente caro a duas bebés luso-brasileiras no Hospital Santa Maria, em Lisboa.

Este sábado, o presidente da República negou que tivesse intercedido junto do Hospital de Santa Maria, ou de qualquer outra entidade, para que as crianças luso-brasileiras pudessem beneficiar de tratamentos no Serviço Nacional de Saúde.

A reportagem refere que o Hospital de Santa Maria "abriu uma auditoria para perceber como é que duas gémeas que vivem no Brasil receberam em Lisboa um tratamento de quatro milhões de euros", havendo "suspeitas de que isso tenha acontecido por influência do presidente da República".

O que aconteceu?

Segundo a referida reportagem, em 2019, duas bebés gémeas diagnosticadas com Atrofia Muscular Espinhal (AME) vieram diretamente do Brasil para receber um tratamento raro em Portugal através da administração de um medicamento chamado Zolgensma, que custa dois milhões de euros cada dose.

Assim que aterrou em Lisboa, a mãe das gémeas, Daniela Martins, dirigiu-se ao Santa Maria para uma consulta marcada. Mas foi-lhe recusado o tratamento. No hospital, “ninguém conseguia explicar como as bebés chegaram do Brasil com consulta marcada”.

Além disso, os médicos “não concordaram em administrar o referido medicamento porque as gémeas já estavam a receber tratamento no Brasil”, não fazendo sentido para os médicos “duplicar o tratamento em Portugal”.

Em declarações à TVI, Daniela Martins afirmou que “o tratamento lhe foi recusado e que teve de recorrer aos seus contactos”. Foi aí que Daniela Martins referiu a nora, o filho do presidente da República, o ministro da saúde, que “tinham interferido” a esse respeito.

O presidente da República nega ter interferido

"Eu ontem disse que não tinha feito isso. Não fiz. Não falei ao primeiro-ministro, não falei à ministra [da Saúde], não falei ao secretário de Estado, não falei ao diretor-geral, não falei à presidente do hospital, nem ao conselho de administração nem aos médicos", afirmou este sábado Marcelo Rebelo de Sousa, em declarações aos jornalistas.

Segundo o chefe de Estado, o que está em causa é saber "se interferiu, ou não interferiu, isto é, se pediu um empenho, pediu uma cunha para que sucedesse uma determinada solução favorável a uma pretensão de duas crianças gémeas doentes".

Na reportagem, numa pós-entrevista no Brasil, ouve-se a mãe a falar na referida cunha (“pistolão”, o termo utilizado e que significa o mesmo), do presidente e do ministro da saúde (na altura, Marta Temido).

Na reportagem, fica-se ainda a saber que o “processo” com o caso das meninas de 2019 “desapareceu”. Na altura, os neuropediatras escreveram uma carta à administração do Hospital Santa Maria a “lembrar que haviam mais casos à frente e a necessitar do mesmo tratamento”. Essa carta também desapareceu. Nessa missiva, os médicos também alertavam para o “perigo de uma abertura de precedentes”, dado que as gémeas já estavam a ser tratadas no seu país de origem.

Apesar da oposição, os médicos acabaram por ter de observar as meninas e o tratamento acabou por se concretizar. “Era por influência do presidente da República”, ouve-se um clínico a dizer à reportagem da TVI que contactou com a mãe das meninas já no Brasil e que negou a alegada influência do presidente, conhecer o seu filho e a nora.

Daniela Martins confirmou que as então bebés, que viviam no Brasil, entraram no hospital Santa Maria em finais de 2019, tendo entretanto conseguido obter a naturalização portuguesa, para que fossem tratadas em Lisboa.

"Vendo a reportagem, ninguém aparece a dizer que eu falei com essa pessoa. Ninguém. Diz-se, consta, parece que sim, parece que, parece que havia família [do Presidente] que estava empenhada, por amizade, nisso. Mas ninguém em relação ao Presidente. E só há um Presidente. A família do Presidente não foi eleita, não é Presidente", salientou Marcelo Rebelo de Sousa, citado pela agência Lusa.

"Se alguém aparece a dizer: olhe, o Presidente falou comigo, achou que, por razões humanas ou razões de outra natureza, se justificava aquilo; se aparecer alguém - que até agora não apareceu -, eu aí não tenho outro remédio senão, eventualmente, ir a tribunal -- não contra a comunicação social, que não é responsável por isso -, para comparar a minha verdade com a verdade dessa pessoa. Não é um dever de defesa da minha honra. É a defesa da honra do Presidente da República", disse Marcelo Rebelo de Sousa este sábado.

Segundo disse, o Presidente da República não pode estar sujeito a uma "suspeição que interfere em decisões da cadeia administrativa, ordenando, recomendando, pedindo, metendo uma cunha para ninguém, muito menos aquilo que possa ser mais próximo de amigos de conhecidos".

Os médicos afirmam que o caso que ocorreu há quatro anos foi muito grave, se houve interferência numa decisão médica. O mesmo disseram os advogados consultados pela TVI, se houve interferência política “é crime público”.

O que é Atrofia Muscular Espinhal?

Considerada uma doença rara e grave, a Atrofia Muscular Espinhal (AME) é uma “doença genética rara, neurodegenerativa que envolve a perda progressiva de células nervosas chamadas neurónios motores, responsáveis pelos movimentos voluntários do corpo”, escreve a Novartis.

A AME é a “principal causa genética de mortalidade infantil e é causada por um gene ausente ou com defeito do neurónio de motor da sobrevivência”, acrescenta.

“Bebés com AME, Tipo 1, geralmente apresentam sintomas antes dos seis meses de idade; a fraqueza muscular progressiva torna-os incapazes de atingir marcos motores, como a capacidade de sentar, andar e até engolir e, sem intervenção médica significativa, a grande maioria morre ou depende de suporte permanente de ventilação antes de completar dois anos de idade”.

Com uma única administração, "a terapia de substituição genética aprovada, atua na raiz da doença. O bebé recebe uma cópia do gene SMN1 não funcionante e o organismo passa a produzir a proteína necessária à sobrevivência dos neurónios motores, o que permite parar a progressão da doença".

Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo

Produzido pela suíça Novartis, o Zolgensma tem sido utilizado desde 2019 na Europa para tratar crianças com Atrofia Muscular Espinhal e promete neutralizar os efeitos da atrofia muscular espinhal quando administrado, numa única dose, em crianças até aos dois anos de idade.

O Spinraza, da Biogen é outro medicamento utilizado para o tratamento da doença. No Brasil, o primeiro tratamento para a AME surgiu depois de 2017 apenas com o Spinraza, da Biogen. O Zolgensma chegou ao Sistema Único de Saúde (equivalente ao SNS), em dezembro de 2022.

A diferença entre os dois medicamentos é que o Spinraza deve ser aplicado de quatro em quatro meses, através de uma injeção na medula até ao resto da vida. O seu "preço começa nos 659 mil euros durante o primeiro ano de administração e baixa depois para os 375 mil".

Enquanto o Zolgensma, suportado pelo SNS, é administrado uma única vez... pelo preço de dois milhões de euros.

*com Lusa

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