A startup Neuroelectrics, sediada em Barcelona, criou uma “touca elétrica neuroestimulante”, a Starstim, que procura reduzir significativamente as convulsões em pacientes com epilepsia resistente ao tratamento. Isto porque os medicamentos para epilepsia atualmente disponíveis não funcionam com todos os pacientes e embora a estimulação elétrica ofereça outra opção para reduzir as convulsões, é uma opção invasiva.

Assim, esta startup está a desenvolver uma abordagem de estimulação cerebral menos invasiva e angariou 17,5 milhões de dólares para financiar um ensaio clínico de Fase 3 que pode transformar a vida de milhões de pessoas que sofrem de epilepsia (entre outras doenças).

A epilepsia é uma das doenças neurológicas com maior prevalência, e afeta diversas funções mentais e físicas. Estima-se que cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo sofram da doença. De acordo com a Liga Portuguesa Contra a Epilepsia, em Portugal, estima-se que o número de pessoas que sofrem da doença esteja entre os 40 000 a 70 000.

A Neuroelectrics, que também tem com operações nos EUA em Cambridge e Massachusetts, afirmou ter concluído recentemente um pequeno estudo piloto para avaliar a capacidade da Starstim no tratamento de pacientes com epilepsia focal refratária-epiléptica que não respondem à medicação. O estudo contou com 20 participantes (adultos e crianças) que realizaram 10 sessões de tratamento, com uma duração de 20 minutos cada, por um período de duas semanas. Segundo a Neuroelectrics, verificou-se uma redução média de 44% da frequência das convulsões e quatro dos pacientes registaram até uma redução de 75% na frequência de convulsões.

Agora a startup pretende alargar os testar a este dispositivo num estudo maior - que, tal como estudo piloto, pretenderá avaliar o impacto do tratamento na frequência das convulsões - recorrendo também a um tratamento “placebo” como controlo.

Mas como funciona?

Os elétrodos do dispositivo recolhem sinais eletroencefalográficos (EEG) e transmitem os dados, via WiFi, para um computador com o software da empresa, realizando uma estimulação elétrica transcraniana.

Caso o ensaio da Fase 3 da Neuroelectrics seja bem-sucedido, a empresa poderá obter a tão esperada aprovação da Food and Drug Administration (FDA), o que significa que a touca Starstim ficaria disponível para tratamentos médicos nos Estados Unidos.

"Nós e os nossos pacientes aguardamos com expectativa uma opção não invasiva e não farmacológica para aqueles cujos ataques não tenham sido controlados através de medicação ou cirurgia", afirmou Alexander Rotenberg, Professor de Neurologia no Boston Children's Hospital e Harvard Medical School, e líder do estudo.

O estudo central da Startstim em casos epilepsia deverá começar no terceiro trimestre deste ano, porém, já está em curso um estudo-piloto, conduzido por investigadores da Universidade de Harvard, que avalia o funcionamento do dispositivo em pacientes com perturbações depressivas que não responderam à medicação. Atualmente, uma terapia promissora para estes pacientes é a estimulação magnética transcraniana (EMT ou TMS), que utiliza um dispositivo médico computadorizado colocado sobre a cabeça que emite impulsos eletromagnéticos (semelhantes aos utilizados pela ressonância magnética) que atuam nas áreas específicas do cérebro relacionadas com o que se pretende tratar.

Devido à pandemia, por estarem impossibilitados de se deslocarem livremente aos hospitais, muitos pacientes deixaram de realizar este tratamento. Mas a empresa viu aqui uma oportunidade.

"Os pacientes com grandes perturbações depressivas não podiam ir aos hospitais para receberem EMT durante a pandemia", afirmou Ana Maiques, fundadora e diretora executiva da Neuroelectrics, citada pela publicação Sifted. A CEO conta ainda que, neste sentido, foram contactados por psiquiatras de Harvard que questionaram se poderiam ser desenvolvidos “dispositivos [Starstim]” para os doentes fazerem em casa.

“Assim o fizemos, e a FDA concordou, e deu luz verde a este estudo de 50 pacientes", remata. Estes pacientes estão agora a receber regularmente neuroestimulação para a depressão em casa, mas são monitorizados à distância por um profissional médico.

Paralelamente à Starstim original, a Neurolecetrics desenvolveu a Starstim-Home, um dispositivo híbrido, multicanal para uso doméstico.

"Ponha um homem a angariar dinheiro para si"

Em dez anos de funcionamento, esta foi a primeira vez que a Neuroelectrics angariou capital privado, até aqui a empresa tem dependido de bolsas de investigação públicas e tem vendido a sua touca Starstim a investigadores.

"Vender a investigadores foi uma boa estratégia de arranque: em vez de angariar capital, basta ir e implantar o seu produto", explica a CEO. "Acabou por ser uma ideia muito boa, porque os investigadores também estão a recolher dados piloto sobre indicações clínicas. Assim, à medida que vemos estes dados evoluir, podemos estabelecer parcerias com outras áreas e investir em ensaios clínicos. Foi assim que chegámos à epilepsia e à depressão".

Os dados-piloto dos investigadores têm mostrado resultados iniciais promissores no tratamento de doenças como o autismo, Alzheimer e Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade com o dispositivo.

Maiques acrescenta que a touca é capaz de "recolher dados do cérebro em tempo real, cada vez que estimulamos o paciente. Portanto, se me perguntarem, daqui a cinco ou 10 anos vamos ter uma janela incrível para o cérebro".

A Neuroelectrics Starstim não está apenas a ser utilizada por investigadores clínicos, mas também para estudos em torno de interfaces cérebro-computador (BCI - Brain Computer Interfaces) - o foco do projeto Neuralink de Elon Musk.

Contudo, embora Maiques esteja entusiasmada com as potenciais implicações dos BCI em pacientes com doenças como o pseudocoma (também conhecido como síndrome de encarceramento - condição resultante de lesão cerebral em que o doente, apesar de se manter consciente e mentalmente ativo, é incapaz de falar ou de se mexer devido à paralisação de todos os músculos do corpo) está ciente de que a investigação científica neste campo é frequentemente direcionada para aplicações mais comerciais como gaming.

"Podia ter decidido entrar no gaming com os BCI, mas nunca quisemos passar as nossas vidas apenas a fazer um vídeojogo estúpido. Se tiver boa ciência e talento, use-o para o melhor", afirma a CEO, reiterando que "a saúde mental, alterações climáticas, energia, todas essas coisas precisam de ciência e tecnologia".

Esta é mentalidade que Maiques assume também no seu novo papel no conselho consultivo do Conselho Europeu de Inovação (EIC- European Innovation Council), um fundo da UE que investirá 10 mil milhões de euros em startups europeias até 2027.

"Quando falo na comissão sobre a Europa, há uma frase que adoro, que é ‘resolver problemas relevantes de uma forma responsável’ ", conta.

“Penso que o EIC aborda realmente um grande problema na Europa: como se pode gerar tanta boa ciência e, no entanto, estar tão atrasado nas empresas que lideram o mundo?".

Maiques acredita que é necessário fazer mais para melhorar a diversidade na comunidade empresarial, particularmente nos fundos de investimento, mas confessa que "não é fácil angariar dinheiro como mulher CEO” e partilha: "Foi-me dito por uma capitalista de risco: 'Ponha um homem a angariar dinheiro para si'”.

"Penso que precisamos realmente de garantir que diversas pessoas tenham acesso a dinheiro e poder, para que possam distribuí-lo de forma mais equitativa".