
3
Na manhã seguinte, Alex sentia-se mais ou menos normal.
As cortinas estavam fechadas, mas a luz do sol que incidia por detrás delas era intensa. Portanto, já era bastante tarde. Uma dor de cabeça parecia querer apoderar-se dela, mas sem se fazer anunciar por completo. Deslizou para o lado mais fresco da cama. Estava vazio: Simon estava a trabalhar ou a pedalar na bicicleta do ginásio, a ver algum filme enquanto corria na passadeira em trechos de meia hora. Até o facto de se exercitar não parecia ser suficiente para ele: cada momento tinha de ser aproveitado ao máximo, espremido até à última gota.
O corpo de Alex conservava os indícios da noite anterior. Um cheiro desagradável, suor nas dobras interiores dos joelhos, nas axilas. Dos lençóis desprendia-se um cheiro rançoso. As memórias vieram à tona: ela tinha ido nadar, ou pelo menos tinha estado na piscina.
Simon ficara aborrecido. Alex lembrava-se agora dessa parte, teve um lampejo da viagem de regresso a casa: o aquecimento do carro ligado no máximo e virado para o seu vestido encharcado, ela sentada em cima do casaco de Simon para evitar molhar o estofo do assento.
Ele teria ficado zangado a sério?
Havia muitas maneiras de uma pessoa esconder a verdade de si própria, de não pensar demasiado em coisas que preferia que não fossem confirmadas.
Sentou-se e procurou o telemóvel às apalpadelas. Quando o ligou, os ícones ficaram visíveis, mas depois o ecrã piscou e ficou cinzento. Grande porra: o telemóvel também acabara dentro da piscina. Estaria avariado? Quando voltou a ligá-lo, parecia estar a funcionar bem. As mãos tremiam-lhe. Mas só um bocadinho.
Não se deu ao trabalho de verificar as mensagens, de ver se tinha chegado algum veneno fresco durante a noite. Como é que Dom tinha conseguido descobrir que ela estava ali na costa?
Era desagradável, muito desagradável – ia ter de falar com Simon. Já estava na altura de o fazer.
Escovou os dentes, depois deixou correr a água quente para poder molhar o rosto. Já estava a começar a sentir-se melhor. Com um ar mais desperto. Fez a sua rotina habitual, aplicando maquilhagem para realçar os olhos e dar um pouco de cor às bochechas. Parecia-lhe um esforço virtuoso. E, se deixasse de pensar nisso, as náuseas também pareciam estar a desaparecer. Estava bem. Estava tudo bem. Tinha-se portado como uma idiota na noite anterior, fora imprudente, mas não chegara a fazer nada com Victor. E o seu telemóvel não estava realmente avariado. Teria uma conversa com Simon. Ele saberia o que fazer com Dom.
Ela não havia arruinado nada. O infortúnio tinha-a poupado: aproximara-se apenas o suficiente para ela sentir o sopro frio de um resultado muito diferente a passar-lhe rapidamente ao lado.
A casa estava silenciosa. Lori certamente estivera ali, pois alguém tinha deixado café na cafeteira de êmbolo e uma caneca vazia em cima da bancada da cozinha. O café ainda estava quente. O leite de cânhamo que tirou do frigorífico formou grumos que ficaram a flutuar na superfície. Alex tentou tirá-los com o dedo. Também não estava ninguém no jardim. Voltou a abrir o frigorífico: ali estava o sumo, as compotas. Um pão saudável que, quando era torrado, tinha uma consistência compacta e sabia a frutos secos. Tudo tinha um aspeto e um cheiro demasiado intensos. Fechou a porta do frigorífico. Era melhor não tomar o pequeno-almoço.
O terraço estava vazio. A piscina estava vazia. Simon estava provavelmente a trabalhar.
Depois de falarem, Alex poderia ir à praia, levando uma das bicicletas que havia na garagem. Simon estava sempre a insistir com ela para levar uma das bicicletas, como se o dever dela fosse desfrutar das coisas para que ele não tivesse de o fazer. Ou então poderia simplesmente nadar ali. A piscina parecia particularmente convidativa nesse dia, um retângulo de azul, com a superfície refletindo o céu.
Enfiou o fato de banho de peça única. Um fato de banho de que Simon gostava. Pôs-se a inspecionar um pelo encravado na dobra da coxa, uma borbulha que só piorava quando tentava espremê-la. Forçou-se a parar de a rebentar com a ponta da unha, mas os estragos já estavam feitos.
A porta do escritório de Simon estava fechada. Alex bateu à porta e de seguida começou a abri-la.
– Posso? – disse.
Simon olhou-a por um segundo e voltou a concentrar-se no computador.
– Está tudo bem? – perguntou Simon, de olhos fixos no ecrã.
– Só te vim dizer olá.
Algo no tom de Simon fê-la pensar que se calhar deveria ter posto roupas mais adequadas. Sapatos, pelo menos. Fingiu estar interessada nos livros que havia nas estantes. Ocorreu-lhe que ainda estava a tempo de voltar para dentro da casa, até que a ocasião fosse mais oportuna.
– Tens alguma coisa para me dizer? – perguntou Simon, olhando finalmente para ela.
Como poderia ele saber de Dom? Não, não fazia nenhum sentido. Dom teria descoberto de alguma maneira que ela estava ali?
– Vi o carro hoje de manhã – continuou Simon.
Alex sorriu involuntariamente, um sorriso de puro alívio. Antes que ela pudesse corrigir-se, Simon reparou no sorriso dela. Pareceu desagradar-lhe de maneira bem visível.
– O para-choques – disse Simon –, o farol traseiro.
– O que é que tem?
Simon não respondeu; Alex insistiu.
– Alguém te bateu no carro ontem à noite?
– Alex. – Simon suspirou. – A Lori disse que o carro já estava assim ontem à tarde.
– Não reparei – disse Alex. – Desculpa.
Simon sorriu, de cabeça virada para um canto do teto.
– OK – disse ele. – Não reparaste.
Alex seguiu o olhar de Simon, que evitava cruzar-se com o dela. Começou então a preocupar-se. Estava na altura de sair de cena.
– Só te queria dizer olá – disse Alex. – Desculpa ter-te incomodado.
Virou-se para sair. Estava quase a salvo, quase a chegar à porta.
– Então, grandes planos para hoje? – perguntou-lhe Simon.
– Oh, nada de especial – respondeu Alex, virando-se. – Se calhar vou à praia. Depende.
– Estava aqui a pensar – disse Simon. – Podias voltar hoje para a cidade. Há um comboio daqui a uma hora e meia. Ou mais tarde, se preferires.
– Desculpa? – Alex soltou uma risadinha.
– Tenho de trabalhar, a Caroline pode querer vir cá passar uns dias. – Simon apontou para a secretária, para a forma invisível das suas obrigações.
– Eu consigo tomar conta de mim – disse Alex. – Não preciso de nada, a sério. Se tu e a Caroline quiserem passar tempo juntos.
Era quase excitante, aquela urgência que a dominava, aquela sensação vibrante de que precisava de consertar o que tinha dado para o torto. O que ainda continuava a dar para o torto. Simon não olhava para ela. O fato de banho tinha-lhe ficado entalado na racha do rabo, mas ela forçou-se a não ajustá-lo.
Alex continuou a sorrir com todas as suas forças.
– Ou posso ficar noutro sítio por uns dias – disse ela. – De certeza que deve haver por aí um sítio qualquer, para vos dar espaço.
– Não sei se isso faz sentido – disse Simon.
– Ou eu até podia conhecer a Caroline. Gostava disso.
Simon afastou a cadeira da secretária.
– Agora não é uma boa altura, Alex.
Alex podia imaginar o que ela devia parecer a Simon, ali sentado atrás da sua secretária. Uma rapariga magricela, descalça, com um fato de banho caro que ele próprio lhe tinha comprado. Mais um problema que precisava de ser resolvido.
– Estás zangado comigo?
Era uma pergunta terrível, e soube-o assim que a fez, uma pergunta que continha sempre em si a própria resposta. Alex podia ver que Simon já tinha perdido o interesse, que já não se sentia envolvido no drama que ela estava a criar. Um interruptor tinha sido acionado. Isso era o pior de tudo: ver Simon retirar-se apressadamente daquela situação, deixando prevalecer uma postura profissional.
– Falamos daqui a uma semana, ou daqui a uns dias – disse ele. Falava como se não houvesse ninguém mais exausto do que ele à face da terra. Estava a tentar apaziguar Alex, a geri-la como geria os seus clientes.
– Mas o meu telemóvel ficou avariado – disse Alex. Reparou bem como isso soava patético. Parecia-lhe injusto, criminosamente injusto, que Simon fosse assim tão cruel com ela.
– Enfiaste-te com ele na piscina.
– Foi ele que me empurrou. Tu sabes bem que foi ele que me empurrou.
Simon beliscou a cana do nariz. Alex deu-se conta que lhe restavam poucos minutos, que tudo estava a chegar ao fim tão de repente. Sentiu a cabeça a girar. Pensou na cama de onde se tinha levantado nessa manhã: havia-se habituado à ideia real daquela cama. Mas agora estava tudo a desintegrar-se.
– Não tenho para onde ir – disse Alex.
– Não acredito. Então não tens o teu apartamento?
Alex olhou fixamente para ele, dando voltas à cabeça para tentar encontrar algo a que se agarrar, mas não havia nada. A situação não lhe permitia ventilar a raiva que sentia, ou aquele súbito sentimento de desamparo que se apoderou dela.
– Por favor. – Alex apercebeu-se do abatimento que lhe assomou ao rosto.
– Queres dinheiro? – perguntou Simon. – Estás a pedir-me dinheiro?
– Não – disse ela, de faces afogueadas. Era demasiado horrível pôr-se a fazer cálculos naquele momento; mas obviamente que ia precisar de dinheiro.
– Não era assim que eu queria que as coisas corressem – comentou Simon. Olhou para o ecrã do computador, tentando fazê-lo de forma discreta. – A Lori pode levar-te à estação. Ela compra-te um bilhete.
Simon pegou no telemóvel, pondo-se a digitar freneticamente com os polegares, embora Alex pudesse ver que ele não estava a olhar para nada. Poderia ela ficar ali até que ele mudasse de ideias? Usar o facto bruto da sua presença para esperar que aquilo passasse? Desde que ela não saísse ali do escritório, poderia tudo aquilo seguir um rumo diferente?
Simon olhou para ela, mas a sua expressão era interrogativa, como se ela fosse uma completa estranha que tivesse acabado de lhe entrar no escritório. Depois o seu olhar suavizou-se: só um bocadinho, mas o suficiente para Alex reparar.
– Eu ligo-te um dia destes – disse Simon. – Talvez quando a Caroline se for embora.
Alex juntou as suas roupas enquanto a governanta permanecia junto à porta do quarto como uma sentinela nervosa. Teria Lori colocado a governanta ali? O que é que a mulher deveria supostamente impedir Alex de fazer? Roubar? Alex arrumou as roupas que Simon lhe tinha dado na sua sacola de viagem preta, uma bolsa de ombro de grandes dimensões. Os vestidos de cores baças, as calças com um toque de indumentária de escritório. Pensou em deixar ficar tudo o que Simon lhe tinha comprado – despejando todas as roupas numa pilha em cima da cama –, mas, mesmo enquanto imaginava fazer isso, percebeu que nunca o faria. Se fosse necessário, poderia vender algumas daquelas peças. Tinha sido uma estupidez tirar as etiquetas. Acreditar que aquilo iria durar.
Dobrou cada peça cuidadosamente antes de as colocar na sacola. Viu nódoas em que antes não tinha reparado numa camisa de seda, uma auréola de suor nas axilas. Todas aquelas coisas lindas que ela tinha estragado.
Na casa de banho, arrumou os seus frascos, os cremes. Havia comprimidos no armário dos medicamentos: os comprimidos para dormir e os analgésicos de Simon. Tirou alguns comprimidos para dormir e juntou-os ao resto dos analgésicos. Não havia razão agora para não levar todo o stock com ela. Antes de guardar o frasco na bolsa, engoliu um dos analgésicos com um pouco de água da torneira. Merecia-o.
Por um segundo, teve a sensação de que amava Simon, de que o abismo que se abria perante ela representava a sua vida futura sem essa pessoa, essa pessoa que ela amava. O mundo de Simon fechar-se-ia em si mesmo, as divisões da casa dele esqueceriam a presença dela. Sentira-se bem ali. Sentira-se protegida. Mas mesmo quando se apercebeu de que os seus olhos estavam a ficar marejados de lágrimas, havia um senão, uma apreensão, um asterisco por trás de cada sentimento sincero. Teria de encontrar um sítio para ficar. Teria de manter Dom à distância. O horror de todas essas tarefas quotidianas começou a abater-se sobre ela. A vida achatava-se tão rapidamente face àquela logística monótona – quão estúpida tinha sido ao pensar que poderia viver uma vida relaxada.
Encontrou uma nota de cinquenta dólares num dos bolsos das calças de Simon que ele tinha posto no cesto da roupa suja; depois pegou num dos relógios dele e pousou-o duas vezes antes de o enfiar na bolsa. A bolsa que Simon lhe tinha comprado.
O dia estava luminoso e o céu estava límpido. Lori estava de óculos de sol, uns daqueles óculos baratos que se pode comprar numa estação de serviço, com lentes espelhadas azuis. Estava à espera ao lado do seu carro.
– Pronta para ir?
O carro de Simon já não estava ali.
– Onde é que ele está? – perguntou Alex.
– Não te sei dizer – respondeu Lori.
Em vez de entrar no carro de Lori, Alex afastou-se na direção do escritório.
– Deixa lá isso – bradou-lhe Lori. Mas o que é que Lori podia fazer? Não ia impedi-la fisicamente.
Quando Alex abriu a porta, o escritório estava vazio.
– Eu disse-te – ouviu a voz de Lori atrás dela. Alex não sabia o que esperava: uma última chance, uma oportunidade de apelo. Até então, conseguira sempre alguma coisa.
Lori não esperou que Alex a seguisse até ao carro, mas obviamente que Alex a seguiu.
Mais além do edifício da estação de comboios de ripas brancas e da ampla plataforma de betão, um renque de árvores estremecia sob a brisa numa ondulação de verde. Um verde mais intenso que o próprio verde. Tudo lhe parecia demasiado vívido. Só demoraria algumas horas, sem transbordos, e estaria de volta à cidade. E depois, uma membrana fechar-se-ia sobre aquele verão e selá-lo-ia. Tornar-se-ia uma coisa que já tinha passado, uma coisa que estava acabada. Uma vida de cujo limite ela se tinha aproximado. Alex sabia muito bem a sorte que havia tido: o problema não fora esse.
Lori estava faladora durante o trajeto até à estação, quase maníaca com aquele seu tom de mexericos e voz alegre. Certamente já estava habituada àquele tipo de situação: talvez aquilo acontecesse regularmente, uma mulher jovem, uma rapariga que era preciso fazer desaparecer enquanto Simon se ausentava de forma mais do que óbvia, delegando em Lori a tarefa de arrumar a confusão que ele causara.
Era-se a exceção, até se deixar de o ser.
O carro de Lori estava atravancado de coisas: café a azedar em copos de papel, um guarda-sol de metal dobrado em cima de um saco-cama no banco de trás. O interior da viatura cheirava ao cão de Simon. A ressaca de Alex tinha-se cristalizado, sequestrando-lhe o sistema nervoso.
– Pode ser bom – disse Lori. – Voltar para a cidade.
Alex não respondeu, continuando a olhar pela janela enquanto Lori seguia pelas muitas ruas secundárias ensombrecidas até chegarem perto da estação de comboios, perto da pequena cidade. Passaram por restaurantes onde ela havia ido com Simon, por ruas que levavam às casas dos amigos dele. Agora já não tinha mais acesso a nada disso.
– Sabes – continuou Lori. – A cidade fica vazia. Em agosto. Pode ser ótimo.
Como Alex permaneceu em silêncio, Lori lançou-lhe um olhar.
– Ele é um tipo complicado – disse ela. – Não tem a ver contigo.
Alex não sabia porque é que Lori estava de repente a ser simpática; contrita, até.
– Estou bem – disse Alex.
– Ele é um bocado acriançado, para te ser sincera – continuou Lori. – Totalmente incapaz de viver no mundo real. Um inútil. Provavelmente morria à fome se não me tivesse por perto.
Alex olhou para o rosto da outra. Lori odiava Simon, sempre o odiara – isso era óbvio agora. Era estranho que Alex só se apercebesse disso agora.
Alex deixou que Lori lhe comprasse o bilhete. Lori guardou o recibo – para dar a Simon, supôs ela, para juntar às outras despesas. Ou talvez fosse para ela apresentar como prova de que Alex tinha mesmo partido.
– É só isso? – disse Lori enquanto Alex permanecia ali parada com a sua única bagagem. Não era uma pergunta.
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