1
A serpente negra aproximou-se da sua perna e Quim sentiu o corpo paralisar de pânico. A respiração parou e o suor inundou-lhe ainda mais o uniforme alagado. Grande, quase retangular, a cabeça do bicho, a língua a auscultar o ar, levando-lhe notícias do homem caído na sua frente.
De todos os medos, das várias possibilidades de coisas que gelavam a alma de Quim, materializara-se, ali, a pior de todas.
Ansiou, por um momento, que a cobra desse meia-volta e desaparecesse entre as ervas altas, mas o corpo levantado do réptil, transportado por uma conjugação perfeita de mús- culos e ossos, continuou a deslizar na sua direção. Caído, as duas mãos apoiadas atrás das costas, não poderia fazer nada, antes que as presas venenosas se lhe cravassem na perna, enchendo-o de veneno mortal. Sentiu o corpo da serpente a subir pelo seu, a cauda a enrolar-se em volta da perna, da bota pesada, e esperou que ela lhe desferisse, súbita, um ataque em pleno rosto.
À sua volta, a floresta densa exalava um odor de plantas apodrecidas e seiva nova. Por cima, o sol escaldante aquecia a humidade brutal que o começara a consumir desde que o navio carregado se aproximara da costa africana.
Quim fechou os olhos, o desespero de ir morrer tão longe a sufocar-lhe a garganta. Pensou na mãe, no aniversário que deveria celebrar, dali a dois dias («Já vinte e dois, filho, vinte e dois... Não hei de eu estar a ficar velha...»), na namorada, com quem nunca tinha trocado um beijo e que não o voltaria a ver.
A arma que caíra a menos de dois metros de si brilhava tão negra e mortal como o réptil, mas impossível de alcançar. Uma música suave começou a surgir-lhe na cabeça. Vinha do final da sua infância, dos dias em que se sentava na taberna a ouvir os homens. Estes bebiam para tirar o peso da terra de cima ou afastar a ideia de que se havia amor no mundo, a nenhum deles tinha tocado. E, geralmente, ao fim de uma hora de vinho e acerto de conversa, uma voz elevava-se, hesitante:
«Dá-me uma gotinha d ́água, dessa que eu ouço correr. Entre pedras e pedrinhas, entre pedras e pedrinhas, alguma gota há de haver.»
O aperto da cobra na perna tornava-se agora mais forte, e mesmo sem abrir os olhos, Quim sentiu que a luz começava já a desaparecer para si. O seu rosto jovem, quase imberbe, empalidecera para lá do possível. Ia morrer. Disse adeus aos rostos queridos, a todos de uma vez, com medo de não dar tempo se os evocasse, um a um.
E juntaram-se vozes, na sua cabeça.
«Ah, Quim, não há ninguém como tu, na nossa aldeia.» «Se o meu marido deixasse, casava contigo, magano.» «Só uma voltinha naquele avião, tio...»
Sorriam-lhe, de lá, essas caras. Todas, sem exceção.
A cobra silvou, agressiva.
«Quero cantar como a rola, quero cantar como a rola... como a rola, ninguém canta.»
2
Havia um macaco no Bairro. Não sei qual seria a espécie. Nesse tempo, bastava dizer «macaco» e já se varriam todas as denominações que fossem de gorila a saguim. Este, vivia acorrentado a um poste, preso pela perna esquerda. Não tinha pelo, nessa parte, porque a argola comia-lhe a pele e, abria, frequentemente, uma chaga. Havia sempre cascas de banana e de outros frutos caídas no chão. Talvez tivesse uma casota de madeira no topo. Eram comuns, estas pequenas casas elevadas onde os animais se abrigavam do tempo mais frio ou dos olhares dos visitantes.
Não me lembro se sim, se não.
Parece-me lógico, mas posso estar a imaginar um conforto para o bicho que este nunca teve.
Costumávamos ir, a medo, vê-lo ao quintal onde a dona velha o deixava estar por não saber o que lhe haveria de fazer. Ouvi, uma vez, contar que quando ele chegou de África, quase uma cria, vinha mansinho. As pessoas pegavam-lhe ao colo e ele saltava de um para outro, sempre à procura de amendoins que ali se chamavam «ervilhanas». Isso foi muito antes de mim. Eu sempre o vi temível, a mostrar os dentes, tal como a dona, mulher que nos tolerava, apenas uns momentos no quintal, mais por amor à paz social com as vizinhas nossas mães. Estas mostravam-se sempre zelosas em armar briga com quem lhes enxotasse os filhos. Que seria o mesmo que as enxotar a elas. A dois passos da cidade, o Bairro, agora operário, continuava a ser uma aldeia. Feita com os retalhos de várias outras. Todas as pessoas daquele lugar tinham vindo das terras em volta: São Mansos, Montrigo, Oriola... Tinham trazido o controlo social a que estavam habituadas, com elas. As mulheres já se permitiam não usar lenço na cabeça quando saíam à rua, mas levavam-no quando iam «lá acima», à cidade. Sempre pensada em maiúscula, por não lhe quererem pertencer por inteiro. As mais novas, como a minha mãe e as minhas tias, tinham-se desfeito da trança longa, atada atrás em carrapiço. Tinham um corte quase moderno feito numa das cabeleireiras de pobres por ocasião de um casamento ou batizado. No resto do tempo, limitavam-se a usar a tesoura da costura para aparar as pontas dos cabelos. Viviam numa aurora da modernidade, mas de olho umas nas outras. Como se aquele chão de lama ou pó seco, com que conviviam diariamente, ainda fosse feito de calçada de xisto e o ar cheirasse a bosta de animais e ao barro das casas de adobe. Viviam dentro e fora de ambos os lugares.
O macaco do Bairro, esse, não havia dúvidas de que viera de longe. Trazido por um soldado que já não era jovem. Viera como um retrato vivo de alguma coisa boa que se pudesse resgatar do Inferno. Mas, ali em cima daquele poste, era ele o anjo caído. Ficava a olhar-nos de cima fazendo às vezes um gesto que interpretávamos como se pedisse amendoins. «Dá-me, aproxima-te à vontade. Não te faço mal», parecia dizer. Mas tínhamos aprendido à custa de incidentes que isso era apenas uma armadilha. O primeiro que se colocasse ao alcance da corrente, seria mordido. Devorado, até, desconfiávamos nós, os mais novos, com pavor.
Um dia, no ano anterior a embarcar para o Ultramar, o meu tio fora comigo ver o macaco. Apontara para o bicho, a boca ainda adolescente, toda aberta de troça.
«Já viste aquele par de tomates! Maiores que os meus!», gracejou. E riu-se de imediato naquele timbre rápido, ansioso, a assegurar-se de que eu e todos quantos o escutássemos saberíamos que estava a brincar.
«Queres vê-lo de mais perto?», perguntou-me.
Eu respondi que não, com a cabeça.
«Vá lá, homem. Não estejas com medo que eu levanto-te no ar.»
E antes que eu conseguisse voltar a recusar, pegou-me ao colo e correu para o animal. Gritei, aterrorizado, e esperneei, deixando-o sem fôlego com o meu peso, mas dei por mim, a chegar perto do bicho. Demasiado perto. Enquanto soltava o grito, senti-lhe o cheiro a animal preso, a fezes, e vi o pelo enruçado e os olhinhos zangados a fitarem-me. Os dentes à mostra.
Quim puxou-me para trás, mas já não a tempo de evitar que a pequena pata de unhas crescidas me roçasse a cara. Senti o arranhão e o calor na pele que se seguiu, antes de me ver abraçado pelo meu tio.
«Deixa ver, deixa ver. Arranhou-te, o cabrão?»
Pegou numa pedra e atirou-a, acertando certeiro no bicho que soltou um guincho, procurando esconder-se (talvez houvesse uma casa, sim, talvez...).
«Filho da puta de macaco, que levas outra pedrada! Fizeste mal ao menino, cabrão.»
A mulher veio de dentro da cozinha, brandindo os braços.
«Ó Quim, até parece mentira, um rapaz desse tamanho, já um homem, a atiçar-me o bicho. Mas tu, agora, voltaste a ser como os gaiatos?»
Sim. Por dentro. Toda a vontade de correr, brincar, esconder-se entre as plantas silvestres que nasciam junto ao Forno da Cal, e que lhe tinha sido amputada pela necessidade de trabalhar, ficara lá dentro. A criança não estava morta, mesmo se esmagada a pontapé e gritos. Mas, isso, não poderia contar.
Carregou-me nos braços, exageradamente, como se eu tivesse sido ferido de morte.
«Desculpe, vizinha. Era só uma brincadeira. Não me pare- cia que o macaco lhe fizesse mal... Como ele ainda é gaiatinho, pensei que o bicho compreendesse.»
E desapareceu, a correr, comigo, deixando a mulher a gritar, zangada. Uns metros mais à frente, depois de dobrar uma esquina de quintais, pôs-me no chão e voltou a examinar-me. Era ele quem tinha a cara vermelha e tremia. Parecia querer, também, começar a chorar.
«Deixa ver, deixa ver... Deve ser só um arranhão, já pomos um álcool.»
«Álcool, não!», gritei. «Dói muito.»
«Dói, mas cura. O álcool cura tudo. Tudo.»
Eu gritei mais e ele apiedou-se.
«Ou água oxigenada, está bem. Já vemos, tá calado.
Mas não digas nada à tua mãe, que ela ainda te bate, por cima... Já vemos, já vemos.»
Ainda ia dentro dos braços dele e já tinha vontade de contar à minha mãe. Às mães deveria poder contar-se tudo. Mas, não foi preciso dizer nada. Ela tinha cheirado a ferida à distância, e já vinha ter connosco à entrada do pátio. Retirou-me dos braços dele, para onde tinha voltado, e pôs-me no chão. Depois, sem dizer uma palavra ao irmão, arrastou-me pela mão para casa. Na mesa da cozinha, abriu a gaveta para medicamentos, guardanapos fora de uso e rolhas de garrafa.
Só aí falou. O tom, irritado.
«Andas sempre a cair, tu. Estou farta de te dizer, mas tu não olhas por onde andas e depois é isto. Qualquer dia, abres a cabeça toda, morres e eu é que fico por má mãe.»
O meu tio tinha ficado entre portas, um pé dentro e um pé fora.
«E tu, vadio, não soubeste tomar conta dele? Não viste que ia acabar por se espojar? Sempre cego e a bater em tudo, como anda? O juízo de um é o juízo de outro.»
Tinha tirado a água oxigenada e o álcool, mas usou o último porque doía mais. Eu gritei com o ardor.
«Cala-te. Para a outra vez olhas por onde andas.»
Em seguida, procurou o mercurocromo e pintalgou-me de vermelho.
«Pareces um índio», disse-me o meu tio, aliviado.
«E é. Um dos piores que deve haver.» Mas, mesmo contrariada, sorriu.
Era ainda nova, nesse dia em que se deixou sorrir.
Ao ver a cara dela desanuviar, e apesar da dor, também eu soltei um pequeno riso, involuntário, no meio de lágrimas. O Tio entrou totalmente na cozinha, deu-me um beijo na cabeça e abraçou-me. «Já passou, já passou.»
Quim nunca desmanchou a história da minha queda. Mesmo quando a minha mãe se lembrou de a evocar junto de outros, para justificar as ralações constantes que tinha comigo. Eu olhava para o meu tio e também me calava, intuindo ser mais seguro guardar para nós a verdade. O silêncio como forma de preservar da dor. Um dos dois, com o tempo, aprendeu que não era bem assim. O outro, não chegou lá.
Um mês mais tarde, o macaco apareceu morto. Caído ao pé do poste, a corrente lassa, como se tivesse desistido de a puxar. A língua a sair-lhe da boca, misturada com uma espuma esverdeada. Talvez tivesse sido a dona a envenená-lo, farta de visitas e de limpar as porcarias. Ou porque a sua visão a fizesse pensar em África, não pelo filho que já tinha regressado da guerra, e lhe legara o bicho, quase nunca a visitando, mas pelo mais novo. O irmão que ainda lá permanecia, enfiado na savana, entre macacos iguais àquele. O que lhe escrevia aerogramas, uma vez por mês, em que se queixava da comida, do calor, mencionava um ou outro colega que tinha ficado ferido – sempre num acidente de unimogue, ou numa coisa qualquer que também na metrópole poderia ter acontecido, mas nunca em combate. E que acabava, como todos os que por lá andavam, a falar das saudades. E dela, mãe, com amor. Amor de mãe. O maior para todos os filhos embarcados para ir matar. Era do regresso desse filho que ela precisava, não da sua lembrança constante na forma de um animal que guinchava dia e noite no quintal.
Ou, porventura, foi outra pessoa qualquer. Quem sabe um dos rapazes que costumava atirar pedras, o vizinho do lado que se queixava de não dormir de noite com os guinchos do bicho, ou ainda uma mulher que quando vinha da missa se horrorizava com a forma como o primata expunha os genitais ao sol.
Fosse quem fosse, nunca se chegou a saber. O poste ficou lá, mas vazio. Acabou derrubado por uma intempérie mais forte, num dos invernos seguintes ao final da guerra.
O fantasma do macaco, a lembrança do seu cheiro, contudo, levaram mais tempo a desaparecer das lembranças daqueles que o viram e sentiram.
A começar pelas minhas.
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