Parte 1

O Aniversário

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— Parabéns, Haymitch!

A vantagem de nascer no dia da ceifa é que podemos dormir até tarde no dia do nosso aniversário. A partir daí, tudo piora. Um dia de folga da escola não compensa o horror do sorteio dos nomes. Mesmo que sobrevivamos a isso, ninguém quer um bolo depois de ver dois miúdos serem levados para o Capitólio para serem abatidos. Viro-me para o outro lado e puxo o lençol sobre a cabeça.

— Parabéns! — O meu irmão de dez anos, o Sid, abana-me o ombro. — Disseste para ser o teu galo e que querias chegar ao bosque ao amanhecer. É verdade. Espero terminar o meu trabalho antes da cerimónia para poder dedicar a tarde às duas coisas de que mais gosto — perder tempo e estar com a minha namorada, a Lenore Dove. A minha mãe faz com que o desfrute de qualquer dessas coisas seja um desafio, afirmando constantemente que nenhum trabalho é demasiado difícil, sujo ou complicado para mim, e que até as pessoas mais pobres conseguem juntar alguns tostões para descarregar a sua miséria nos outros. Mas, tendo em conta os dois acontecimentos do dia, penso que ela me permitirá um pouco de liberdade desde que conclua as minhas tarefas. São os Produtores dos Jogos que me podem estragar os planos.

— Haymitch! — berra o Sid. — O sol está a levantar-se!

— Está bem, está bem! Também já estou levantado. — Rebolo diretamente do colchão para o chão e visto à pressa uns calções feitos a partir de um saco de farinha distribuído pelo governo. As palavras CORTESIA DO CAPITÓLIO aparecem estampadas no meu rabo. A minha mãe não desperdiça nada. Tendo ficada viúva muito cedo, quando o meu pai morreu num incêndio na mina de carvão, ela criou-me a mim e ao Sid lavando roupa suja e fazendo com que cada pedaço de tudo contasse. As cinzas de madeira da lareira são guardadas para fazer sabão de lixívia. As cascas dos ovos são trituradas para fertilizar a horta. Um dia, estes calções serão rasgados em tiras e transformados num tapete.

Francisco Mota Saraiva junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de abril, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Morramos ao menos no Porto", publicado pela Quetzal.

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"Morramos ao menos no porto" pediu o título emprestado a Séneca e venceu o Prémio José Saramago no final de 2024. É "um romance que abala os fundamentos da narrativa clássica, um fogo que alastra até consumir todas as suas personagens e que revela o seu autor como uma voz poderosa na literatura portuguesa".

Pode ler um excerto aqui.

Acabo de me vestir e mando o Sid de volta para a cama, onde ele desparece debaixo da colcha de retalhos. Na cozinha, agarro num pedaço de pão de milho, que é uma melhoria para o meu aniversário, em vez do pão escuro e granuloso feito com a farinha do Capitólio. Nas traseiras, a minha mãe já está a mexer uma caldeira fumegante de roupa com um pau, retesando os músculos quando revira um fato-macaco de mineiro. Ela tem apenas trinta e cinco anos, mas as agruras da vida já lhe deixaram marcas no rosto, como é normal.

A minha mãe vê-me à porta e limpa a testa.

— Parabéns pelos teus dezasseis anos. Há compota no fogão.

— Obrigado, mamã. — Encontro uma caçarola com compota de ameixa e ponho um pouco no meu pão antes de sair. Encontrei as ameixas no bosque no outro dia, mas é uma bela surpresa tê-las todas quentes e açucaradas.

— É preciso encher a cisterna hoje — lembra a minha mãe quando passo por ela.

Nós temos água fria corrente, que só sai num fluxo tão fino que levaria séculos a encher um balde. Há um barril especial de água pura da chuva pela qual ela cobra mais porque a roupa fica mais macia, mas, para a maior parte da roupa, ela usa a água do nosso poço. Como tenho de dar à bomba e acartar os baldes, encher a cisterna é um trabalho de duas horas, mesmo com a ajuda do Sid.

— Não pode esperar até amanhã? — pergunto.

— A água está a acabar e tenho um monte de roupa para lavar — responde ela.

— Hoje à tarde, então — digo, tentando esconder a minha frustração. Se a ceifa terminar à uma e, partindo do princípio de que não faremos parte do sacrifício daquele ano, consigo tratar da água até às três e ainda ver a Lenore Dove.

— Um manto de nevoeiro envolve as casas gastas e cinzentas do Jazigo, como se estivesse a protegê-las. Seria apaziguador se não fossem os choros dispersos de crianças sendo perseguidas nos seus sonhos. Nas últimas semanas, com a aproximação dos Quinquagésimos Jogos da Fome, esses ruídos tornaram-se mais frequentes, um pouco como os pensamentos ansiosos que me esforço por afastar. O Segundo Quarteirão do segundo trimestre. O dobro dos miúdos. Não adianta preocupar-me, digo a mim mesmo. Não há nada que possas fazer. Como dois Jogos da Fome num só. É impossível controlar o resultado da ceifa ou do que se lhe segue. Portanto, não alimentes os pesadelos. Não te deixes levar pelo pânico. Não ofereças isso ao Capitólio. Eles já levaram o suficiente.

Sigo pela estrada de cinzas deserta para a colina com o cemitério dos mineiros. Uma miscelânea de marcos toscos salpica a encosta. Há de tudo, desde lápides com datas e nomes esculpidos em tábuas com a tinta a descascar. O meu pai está enterrado no talhão da família. O canteiro dos Abernathys, com um marco de calcário servindo para todos.

Depois de verificar rapidamente se há testemunhas — nunca há muita gente por ali, e certamente não de madrugada —, rastejo por baixo da vedação para o bosque na orla do Distrito 12 e inicio a caminhada para a destilaria. Fabricar aguardente branca com a Hattie Meeney é um negócio arriscado, mas um piquenique comparado com matar ratazanas ou limpar latrinas. Ela espera que eu trabalhe no duro, mas ela própria também o faz e, apesar de nunca mais voltar a ter sessenta anos, consegue fazer mais do que uma pessoa com metade da sua idade. Há muito trabalho pesado. Apanhar lenha, carregar cereais, despachar garrafas cheias e recolher as vazias para as encher de novo. É aí que eu entro. Sou a mula de carga da Hattie.

Paro junto ao que chamamos de depósito, um pedaço de terreno descoberto escondido pelos ramos pendentes de um salgueiro, onde a Hattie deixa as provisões. Dois sacos de doze quilos de milho quebrado aguardam-me, e atiro um para cima de cada ombro.

Levo cerca de meia hora a chegar à destilaria, onde encontro a Hattie a mexer uma caldeira de mosto ao lado dos restos de uma pequena fogueira.

Ela oferece-me a sua colher de pau de cabo comprido.

— Porque não mexes isto um bocado?

Largo os sacos de milho por baixo de um alpendre onde guardamos as provisões e levanto a colher num gesto de vitória.

— Ena, uma promoção!

Eu ser autorizado a mexer o mosto é uma novidade. Talvez a Hattie esteja a preparar-me para ser seu sócio um dia. Os dois a trabalhar a tempo inteiro aumentaria a produção, e há sempre mais procura do que aquela que ela pode satisfazer, mesmo da zurrapa ardente que ela faz com os cereais do Capitólio. Especialmente disso, porque é barato o suficiente para a bolsa dos mineiros. A bebida boa é comprada por soldados desordeiros — ou seja, os Soldados da Paz — e pelos mais ricos da cidade. Mas o contrabando é ilegal de dez formas diferentes, e bastaria um novo comandante dos Soldados da Paz — um que não gostasse de bebidas fortes — para que acabássemos todos no cadafalso ou pior. O trabalho nas minas é duro, mas eles não nos enforcam por isso.

Enquanto a Hattie acondiciona as garrafas de aguardente de meio litro num cesto revestido de musgo, eu ponho-me de cócoras e mexo o mosto de vez em quando. Depois de este esfriar um pouco, despejo-o num balde fundo e ela adiciona a levedura. Coloco o mosto no alpendre para poder fermentar. Ela não vai destilar naquele dia por causa do risco de o fumo poder atrair atenções se o nevoeiro se dissipar. Os nossos Soldados da Paz locais podem fazer vista grossa à destilaria da Hattie e à sua banca no Forno, um velho armazém que funciona como o nosso mercado negro, mas ela teme que os congêneres deles do Capitólio, na sua aeronave de voo baixo e camuflada, nos vejam do ar. Como também não tenho de levar as garrafas, ela atribui-me a tarefa de cortar lenha para a semana. Depois de repor a pilha, pergunto se é preciso fazer mais alguma coisa, mas ela limita-se a abanar a cabeça.

A Hattie afeiçoara-se a mim dando-me uma gorjeta de vez em quando. Não com o meu salário, que entrega diretamente à minha mãe, mas passando-me sorrateiramente qualquer coisinha. Um punhado de milho quebrado que posso levar à Lenore Dove para os seus gansos, um pacote de fermento que posso trocar no Forno e, naquele dia, meio litro de aguardente branca para o meu próprio consumo. Ela mostra-me o seu sorriso de dentes partidos e diz:

— Feliz aniversário, Haymitch. Achei que se já tens idade para a fazer, também já tens idade para a beber.

Tenho de concordar e, embora eu não beba, fico contente por receber a garrafa. Posso vendê-la facilmente ou trocá-la ou talvez oferecê-la ao tio da Lenore Dove, o Clerk Carmine, para que ele possa ter uma opinião mais simpática sobre mim. Seria de esperar que o filho de uma lavadeira fosse suficientemente inofensivo, mas nós, os Abernathys, fomos rebeldes conhecidos no passado e, aparentemente, ainda temos o cheiro da rebelião, intimidante e sedutor em partes iguais. Os boatos espalharam-se depois da morte do meu pai, dizendo que o incêndio não tinha sido um acidente. Alguns dizem que ele morreu a sabotar a mina, outros que a equipa dele foi visada pelos patrões do Capitólio por ser um bando de desordeiros. Portanto, deve ser problema de família. Não que o Clerk Carmine goste dos Soldados da Paz, mas também não é pessoa para os provocar. Ou talvez só não goste de que a sobrinha ande com um contrabandista, mesmo que o emprego seja estável. Bem, seja qual for a razão, ele raramente me concede mais do que um pequeno aceno com a cabeça, e disse uma vez à Lenore Dove que eu sou daqueles que morrem jovens, o que não me parece que tenha sido uma recomendação.

A Hattie dá um gritinho quando a abraço impulsivamente.

— Ah, deixa-te disso. Ainda andas a cortejar aquela rapariga dos Coveys?

— Eu bem tento — respondo, rindo-me.

— Vai chateá-la, então. Já não preciso de ti hoje. — Ela despeja uma colher de milho quebrado na minha mão e enxota-me. Meto o milho no bolso e vou-me embora antes que ela mude de ideias em relação ao seu melhor presente: tempo inesperado com a minha namorada. Sei que provavelmente devia ir para casa e começar a encher a cisterna, mas não consigo resistir à ideia de alguns beijos furtivos. É o meu dia de anos e, por uma vez, a cisterna pode esperar.

O nevoeiro começa a dissipar-se quando atravesso o bosque para o Prado. A maioria das pessoas comenta a sua beleza, mas a Lenore Dove designa-o por amigo dos condenados, porque pode esconder-nos dos Soldados da Paz. Ela costuma ter uma visão sombria do mundo, mas talvez isso seja de esperar de alguém com o nome de uma rapariga morta. Bem, metade de uma rapariga morta chamada Lenore num velho poema e metade de um tom de cinzento, como fiquei a saber no dia em que a conheci.

Livro: "Amanhecer na Ceifa"

Autor: Suzanne Collins

Editora: Presença

Data de Lançamento: 16 de abril de 2025

Preço: € 19,90

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Era o outono depois do meu décimo aniversário e a primeira vez que passara por baixo da vedação que cerca o nosso distrito. Nunca o fizera porque era proibido e por causa da ameaça de predadores selvagens, que são raros mas reais. O meu amigo Burdock acabara por me convencer, dizendo que o fazia sempre, que era fácil e que ainda havia maçãs se soubéssemos trepar às árvores. E eu sabia trepar e adorava maçãs. Além disso, o facto de ele ser mais novo do que eu fazia com que me sentisse um grande medricas se não o fizesse.

— «Queres ouvir uma coisa?», perguntou o Burdock, quando nos embrenhámos no bosque. Ele inclinou a cabeça para trás e começou a cantar com aquela sua voz espantosa. Aguda e suave como a de uma mulher adulta, mas mais límpida, sem qualquer trinado. Tudo pareceu quedar-se e depois os mimos-gaios começaram a imitá-la. Eu sabia que eles cantavam para outros pássaros, mas nunca os ouvira cantar para uma pessoa. Foi impressionante. Até que uma maçã caiu em cheio na cabeça do Burdock, interrompendo-o.