Respostas

Acordas com a resposta à pergunta que toda a gente faz. A resposta é Sim, e a resposta é Tal como Aqui, mas Pior. É a única revelação que alguma vez terás. Portanto, mais vale tornares a adormecer.

Nasceste sem batimentos cardíacos e mantiveram-te vivo numa incubadora. E, mesmo sendo um feto fora de água, sabias o que o Buda pretendia descobrir quando se sentava debaixo das árvores. É melhor não reencarnar. Mais vale não nos darmos a essa maçada. Devias ter seguido a tua intuição e morrido na caixa onde te enfiaram à nascença. Mas não o fizeste.

Portanto, desististe de todos os jogos que te obrigaram a jogar. Duas semanas de xadrez, um mês nos Lobitos, três minutos no râguebi. Deixaste a escola com um ódio a equipas, a jogos e a atrasados mentais que os têm em grande estima. Abandonaste as aulas de arte e a mediação de seguros e os mestrados. Tudo jogos que não tiveste cu que aguentasse jogar. Deste com os pés em toda a gente que te viu nu. Abandonaste todas as causas por que lutaste. E fizeste muitas coisas das quais não podes falar com ninguém.

Se tivesses um cartão de visita, eis o que este diria.

Maali alMeida
Fotógrafo. Jogador. Putinha.

Se tivesses uma lápide, esta diria:

Malinda albert Kabalana
1955-1990

Só que não tens nem uma coisa nem outra. E nesta mesa acabaram-se-te as fichas. E sabes agora o que os outros não sabem. Tens a resposta às seguintes perguntas. Há vida após a morte? E como é?

Em Breve Acordarás

Começou há uma eternidade, há mil séculos, mas saltemos todos esses evos e comecemos na terça-feira passada. É um dia em que acordas ressacado e com a cabeça oca, como de resto te acontece a maior parte dos dias. Acordas numa sala de espera interminável. Olhas à volta e é um sonho e, por uma vez, sabes que se trata de um sonho e não te importas de esperar que passe. Tudo passa, sobretudo os sonhos.

Vestes um casaco estilo safári e calças de ganga desbotadas, e não te recordas de como chegaste aqui. Tens um sapato calçado e três correntes e uma máquina fotográfica ao pescoço. A máquina é a fiel Nikon 3ST, mas a lente está partida e o corpo rachado. Espreitas pelo visor e vês apenas lama. Hora de acordar, Maali, vá lá, meu rapaz. Beliscas-te e dói: assemelha-se menos a uma pequena pontada e mais à dor surda provocada por um insulto.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Conheces a sensação de não confiar na própria mente. Aquela trip de LSD no Smoking Rock Circus em 1973, abraçado durante três horas a um frangipâni no Viharamahadevi Park. A maratona de póquer de noventa horas, na qual ganhaste dezassete lakhs e depois perdeste quinze. O teu primeiro bombardeamento, em Mullaitivu, em 1984, encatrafiado num bunker com pais aterrorizados e crianças aos gritos. Acordares no hospital aos dezanove anos, sem qualquer memória da cara da tua amma ou do quanto a detestavas.

Estás numa fila, aos gritos com uma mulher de sari branco sentada atrás de um balcão de fibra de vidro. Quem é que nunca se enfureceu com mulheres sentadas atrás de balcões? Tu então... No Sri Lanka, a maior parte das pessoas ferve em silêncio, mas tu gostas de reclamar a plenos pulmões.

— Não digo que a culpa é sua. Não digo que a culpa é minha. Mas toda a gente comete erros, não? Sobretudo em repartições públicas. Que se há de fazer?

— Isto não é uma repartição pública.

— Não quero saber, tia. Só estou a dizer que não posso estar aqui, tenho fotografias para partilhar. Estou numa relação séria.

— Não sou sua tia.

Olhas à volta. Atrás de ti, uma fila de pessoas serpenteia em redor dos pilares e ziguezagueia ao longo das paredes. O ar é nebuloso, embora, à primeira vista, ninguém exale fumo ou dióxido de carbono. Parece um parque de estacionamento sem carros, ou um mercado sem nada para vender. O teto é alto e suportado por pilares de betão dispostos a intervalos irregulares de uma ponta à outra de um recinto espaçoso. O que parecem ser portas de elevadores industriais balizam o extremo mais afastado, e figuras humanas entram e saem deles aos montões.

Mesmo ao perto, as silhuetas aparentam contornos turvos, pele cor de talco e olhos que resplandecem numa paleta nada habitual em pessoas de pele castanha. Algumas vestem batas hospitalares; outras têm sangue seco na roupa; a outras faltam membros. Todos gritam com a mulher de branco, que parece manter conversas com cada um de vós ao mesmo tempo. Talvez toda a gente esteja a fazer as mesmas perguntas. Se fosses de apostar (e és pessoa para isso), apostarias cinco para oito em como se trata de uma alucinação, provavelmente induzida pelos comprimidos de Jaki.

A mulher abre um livro de registos enorme. Olha-te de cima a baixo sem interesse nem desprezo.

— Primeiro tenho de confirmar alguns detalhes. Nome? — Malinda Albert Kabalana.

— Uma sílaba, por favor.

— Maali.

— Sabe o que é uma sílaba?

— Maal.

— Obrigada. Religião?

— Nenhuma.

— Que estupidez!... Causa da morte?

— Não me lembro.

— Há quanto tempo morreu?

— Não sei.

Aiyo!

O magote de almas comprime-se, admoestando e importunando a mulher de branco. Contemplas os rostos pálidos, os olhos cavados em cabeças destroçadas, semicerrados de raiva, dor e confusão. As pupilas lucilam os tons de hematomas e crostas. Uma mescla de castanho, azul e verde; e todos te ignoram. Viveste em campos de refugiados, visitaste mercados de rua ao meio-dia e adormeceste em casinos apinhados. O tropel da humanidade jamais é pitoresco. Este tropel aflui na tua direção e regurgita-te para longe do balcão.

No Sri Lanka, as pessoas não sabem fazer fila. A menos que a definição de fila seja uma curva amorfa com múltiplos pontos de entrada. Aquela em que te encontras parece ser uma área de ajuntamento para quem tem perguntas sobre a própria morte. Existem numerosos balcões e os clientes irados amontoam-se em frente a guichés para injuriar quem se encontra atrás deles. O além é uma repartição de finanças e toda a gente reclama o reembolso.

És empurrado para o lado por uma amma que segura uma criança na anca. A criança olha para ti como se lhe tivesses destruído o brinquedo favorito. O cabelo da mãe está empapado em sangue seco, que lhe mancha também a roupa e a cara.

— Então, e o nosso Madura? Que lhe aconteceu? Estava ao nosso lado no banco de trás. Viu o autocarro antes do condutor.

— Quantas vezes tenho de repetir, minha senhora? O seu filho ainda está vivo. Não se rale, seja feliz.

Isto é dito pelo homem do balcão ao lado, que veste uma bata branca, ostenta uma afro e se assemelha ao Moisés do livro sagrado. A voz dele ribomba como o oceano e os olhos são amarelo-pálidos, da cor de ovos mexidos. Repete o título da canção mais irritante do ano passado e depois abre um livro-mestre.

Tiras outra fotografia, o teu costume quando não sabes mais o que fazer. Tentas captar o caótico parque de estacionamento, mas o que vês são as rachas na lente.

É fácil perceber quem trabalha ali e quem não trabalha. Os primeiros são portadores de livros de registo, os segundos têm um ar desconcertado. Andam de um lado para o outro, depois param e a seguir contemplam o vazio. Alguns abanam a cabeça e pranteiam-se. Os funcionários não olham diretamente para nada, menos ainda para as almas que estão a aconselhar.

Agora seria uma excelente altura para acordares e esqueceres tudo. Raramente te lembras dos teus sonhos e, seja lá isto o que for, as probabilidades de que te fique na memória são menores que as de um flush ou de um full house. Não te recordarás de ter estado aqui, da mesma maneira que não te lembras de aprender a andar. Tomaste os comprimidos de Jaki e apanhaste uma grande moca. Que mais poderia ser?

É então que reparas numa figura apoiada num letreiro a um canto, vestida com o que se assemelha a um saco de lixo preto e que não crês ser nem um funcionário nem um cliente. A figura examina a multidão e os seus olhos verdes brilham como os de um gato encandeado por faróis. Recaem sobre ti e detêm-se mais tempo do que seria necessário. A cabeça acena e o olhar mantém-se fixo.

Por cima da figura, um letreiro diz:

NÃO VISITE CEMITÉRIOS

Ao lado está um aviso com uma seta:

EXAMES AURICULARES: NÍVEL QUARENTA E DOIS

Viras-te novamente para a mulher atrás do balcão e tentas outra vez.

— Isto é um erro. Não como carne. Só fumo cinco por dia.

A mulher parece-te familiar, como lho serão, porventura, as tuas mentiras. Por um momento, cessam os encontrões, ou assim parece. Por um momento, é como se não houvesse mais nada além de ti.

Aiyo! Já ouvi todo o tipo de desculpas. Ninguém quer ir, nem sequer os suicidas. Acha que eu queria morrer? As minhas filhas tinham oito e dez anos quando levei um tiro. Que se há de fazer? Reclamar não ajuda em nada. Tenha paciência e aguarde a sua vez. Desculpe qualquer coisinha. Temos pouco pessoal e pro- curamos voluntários.

Olha para cima e ergue a voz, dirigindo-se à fila.

— Têm todos sete luas.

— O que é uma lua? — pergunta uma rapariga com o pescoço partido. Segura pela mão um rapaz com o crânio rachado.

— Sete luas são sete noites. Sete ocasos. Uma semana. Mais do que tempo suficiente.

— Pensei que uma lua fosse um mês.

— A lua está sempre lá em cima, mesmo quando não conseguimos vê-la. Acham que deixa de andar à volta da Terra só porque vocês param de respirar?

Não entendes nada, pelo que tentas outra abordagem.

— Olhem para esta chusma. Deve ser por causa da matança que grassa no Norte. Os Tigres e o Exército que matam civis. A força de paz indiana que instiga guerras.

Olhas à volta e reparas que ninguém te dá ouvidos. Os olhos continuam a ignorar-te e a cintilar naqueles seus tons de verde- -azulado. Procuras a figura de preto, mas desapareceu.

— Não é só lá em cima, no Norte. Aqui em baixo é a mesma coisa. O Governo combate o partido JVP e o número de cadáveres aumenta. Entendo perfeitamente. Há de andar ocupada, ultimamente. Compreendo.

— Ultimamente? — A mulher de branco carrega o sobrolho e abana a cabeça. — Um cadáver a cada segundo. Às vezes, dois. Fez o Exame Auricular?

— A minha audição está ótima. Tiro fotografias. Testemunho crimes que mais ninguém vê. Sou necessário.

— Aquela mulher tem filhos para alimentar. Aquele homem tem hospitais para gerir. Você tem fotografias? Sha! Realmente impressionante.

— Não são fotografias de férias. São fotos capazes de derrubar governos. Que podem travar guerras.

Ela faz-te uma careta. Do cordão que tem à volta do pescoço pende uma cruz egípcia, um ankh, em tempos usada por um rapaz que te amou mais do que tu a ele. Ela brinca com a cruz e torce o nariz.

Só então a reconheces. O seu sorriso Colgate apareceu em todos os jornais durante grande parte de 1989. A professora universitária assassinada por extremistas tâmiles pelo crime de ser uma tâmil moderada.

— Eu conheço-a. É a doutora Ranee Sridharan. Não a reconheci sem o megafone. Os seus artigos sobre o Tigres do Eelam Tâmil eram magníficos. Mas usou as minhas fotografias sem autorização.

O que, acima de tudo, faz de ti cingalês não é o apelido do teu pai ou o lugar sagrado onde te ajoelhas, tão-pouco o sorriso que colas na cara para esconder os medos. É conheceres outros cingaleses, e conheceres os cingaleses desses cingaleses. Algumas tias, se lhe dermos um apelido e o nome de uma escola, conseguem identificar qualquer cingalês até a um primo direito. Moveste-te em círculos que se sobrepunham e em vários outros que se mantiveram fechados. Foste amaldiçoado com o dom de jamais esquecer um nome, uma cara ou uma sequência de cartas.

— Fiquei triste quando a mataram. A sério que sim. Quando é que foi? Em oitenta e sete? Sabe, conheci um tigre da fação Mahatiya. Dizia que tinha organizado o seu assassinato.

A Dra. Ranee levanta os olhos do livro de registo, faz um sorriso abatido e encolhe os ombros. Tem as pupilas toldadas de branco, como se sofresse de cataratas.

— Tem de ir fazer o Exame Auricular. As nossas orelhas têm padrões tão pessoais como as impressões digitais. As pregas revelam traumas passados, os lóbulos desvelam pecados, a cartilagem esconde a culpa. Tudo coisas que nos impedem de entrar na Luz.

— O que é a Luz?

— A resposta é: O Que Quiser Que Ela Seja. A resposta longa é: não tenho tempo para dar respostas longas.

Entrega-te uma ola. Uma folha seca de palmeira, que, diz-se, foi usada por sete rishis há três mil anos para escrever o destino de toda a gente viva. As incisões angulares romperiam a textura granulosa da folha, por isso os escribas sul-asiáticos desenvolveram caracteres cheios de curvas sensuais para impedir que a folha se rasgasse.

— Tirou fotografias do que se passou em 1983?

— Tirei, sim. Que é isto?

A ola exibe as mesmas palavras nas três línguas. Cingalês circular, tâmil angular, inglês garatujado, e nem um rasgão à vista.

ORELHAS __________________
MORTE ____________________
PECADOS __________________
LUAS _____________________
CARIMBADO POR ____________

— Mande analisar as orelhas, contar as mortes, codificar os pecados e registar as luas no Nível Quarenta e Dois. E a ola é para ser carimbada por um Auxiliar. — A Dra. Ranee fecha o livro e, com isso, encerra a conversa também. A fila passa então a ser encabeçada por um homem coberto de ligaduras, que tosse sem parar.

Viras-te e enfrentas as pessoas atrás de ti. Levantas as mãos como um profeta. Sempre gostaste de dar nas vistas. Sempre espalhafatoso, exceto quando não o eras.

Livro: "As Sete Luas de Maali Almeida"

Autor: Shehan Karunatilaka

Editora: Clube do Autor

Data de Lançamento: 20 de setembro de 2023

Preço: € 22,00

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— Nenhum de vocês existe, cambada de espíritos malignos! Não passam de fantasmas criados pelo meu cérebro dormente. Engoli os comprimidos da Jaki. Isto é uma alucinação. Não existe vida após a morte, merda nenhuma. Se fechar os olhos, vocês desaparecem como peidos!

Prestam-te tanta atenção como a que o Sr. Reagan dedica às Maldivas. Nem as vítimas de acidentes de viação, nem as vítimas de rapto, nem os idosos de bata hospitalar, nem sequer a falecida e carpida Dra. Ranee Sridharan, fazem caso do teu acesso de raiva.

As probabilidades de encontrar uma pérola numa ostra são de uma em 12 mil. As chances de sermos atingidos por um raio são de uma em 700 mil. As hipóteses de a alma sobreviver à morte do corpo são de uma em nada, uma em népia, uma em nicles batatoides. Só podes estar a dormir, disso tens a certeza. Em breve acordarás.

E depois ocorre-te um pensamento terrível. Mais terrível do que esta ilha selvagem, este planeta ímpio, este Sol moribundo e esta galáxia dormente. E se, na realidade, estiveste foi a dormir até agora? E se, a partir deste momento, tu, Malinda Almeida, fotógrafo, jogador, putinha, nunca mais puderes fechar os olhos?

Segues a turba que avança aos tropeções pelo corredor. Um homem caminha com ambas as pernas partidas, uma mulher es- conde a cara cheia de nódoas negras. Muitos parecem vestidos para um casamento, porque é dessa maneira que os cangalheiros decoram os cadáveres. Mas muitos outros exibem andrajos e confusão. Olhas para baixo e vês apenas um par de mãos que não te pertencem. A tua vontade é examinar a cor dos teus olhos e a cara que ostentas. Interrogas-te se os elevadores têm espelhos. Resulta que mal têm paredes sequer. Uma a uma, as almas entram no poço vazio e elevam-se como bolhas na água.

Isto é absurdo. Nem o Banco do Ceilão tem quarenta e dois pisos.

— O que há nos outros pisos? — perguntas a qualquer pessoa com orelhas, examinadas ou não.

— Salas, corredores, janelas, portas, o habitual — diz um Auxiliar especialmente prestável.

— Contabilidade e finanças — responde um idoso, apoiado numa bengala. — Uma chafarica destas não se financia sozinha.

— É tudo igual — lamenta-se a mulher morta com o bebé morto. — Todos os universos. Todas as vidas. É sempre a mesma história, a mesma velha história.

Raras vezes sonhas, e menos ainda tens pesadelos. Flutuas jun- to à orla do poço e há qualquer coisa que te empurra. Gritas como uma donzela num filme de terror e o vento sopra-te em direção ao céu. A figura de preto, a pairar atrás de ti, sobressalta-te. A sua capa de sacos do lixo negros parece adejar num vento embravecido. Fica a ver-te ascender e faz uma vénia ao perder-te de vista.

Ensaias uma nova pergunta e demandas o que é a Luz, mas obténs apenas insultos e um encolher de ombros. Uma criança assustada chama-te ponnaya, uma injúria que engloba ao mesmo tempo homossexualidade e impotência, mas tu apenas te confessarias culpado de uma dessas acusações. Questionas os funcionários acerca da Luz e recebes respostas diferentes de cada vez que perguntas. Uns dizem céu, outros renascimento e outros oblívio. Uns, como a Dra. Ranee, dizem que é o que quisermos que seja. Nenhuma das opções te entusiasma, tirando porventura a última.

Chegado ao Nível Quarenta e Dois, encontras um letreiro com uma palavra escrita.

ENCERRADO

Por este vasto corredor flutuam silhuetas, que só se apercebem das paredes quando nelas embatem. Há uma receção vazia e uma fila de portas vermelhas, que obedecem ao letreiro mantendo-se fechadas.

No meio do vestíbulo está a figura de preto, indiferente aos andarilhos que colidem ao seu redor. Fixa o olhar em ti e acena-te para que te aproximes. Os seus olhos seguem-te à medida que te afastas; desta feita, o seu brilho é amarelo.

O universo boceja no tempo que demoras a regressar ao balcão da Dra. Ranee. Lá fora, a noite enche-se de ventos e sussurros. Neste sítio só há balcões e confusões.

A Dra. Ranee repara em ti e abana a cabeça.

— Precisamos de mais Auxiliares. De menos queixinhas. Toda a gente faz o melhor que pode.

Olha para ti.

— Exceto aqueles que não fazem.

Esperas que ela termine o seu raciocínio, mas parece que era só aquilo. Saca de um megafone de debaixo do balcão. Agora sim, é a Dra. Ranee de que te recordas, a berrar para a multidão no campus quando havia câmaras de televisão por perto.

— Por favor, não se percam. Se ainda não fizeram o Exame Auricular, não se dirijam aqui. O Nível Quarenta e Dois reabre amanhã. Voltem nessa altura. Lembrem-se de que têm sete luas. Há que alcançar a Luz antes do alvorecer da última lua.

Preparas-te para lançar uma rajada de palavrões quando reparas nela uma vez mais, a figura envolta em plástico preto, que agora te faz sinal com ambas as mãos. Os seus olhos tremeluzem como velas e segura a sandália que te falta, ou assim parece. A Dra. Ranee segue o teu olhar e o seu sorriso esfuma-se.

— Tirem aquela coisa daqui. Maal, onde é que vai?

Dois homens de branco pulam por cima dos seus balcões e precipitam-se para a figura de preto. O homem da afro que parece Moisés levanta os braços e berra numa língua que nunca ouviste. Ao lado dele está um culturista trajando de branco, que desata a correr na tua direção.

Confundes-te com a multidão, vagueias por entre as pessoas destroçadas, cujo hálito cheira a sangue, e alcanças a figura que tem a tua sandália.

Flutuas na direção dela, desse anjo da morte amortalhado em sacos do lixo, tal como no passado deambulaste rumo a tantas coisas das quais te devias ter mantido afastado. Ouves a Dra. Ranee guinchar, mas ignoras-las, como ignoraste a tua amma logo a seguir a o teu dada se ter ido embora.

Um sorriso dengoso põe a descoberto os dentes da figura, tão amarelos quanto os seus olhos.

— Caro senhor, saiamos deste lugar. É uma burocracia ao serviço da lavagem cerebral. Como todos os edifícios neste estado opressivo.

A figura encapuzada está cara a cara contigo. Se bem que tenha o rosto ensombrado, reparas que se trata de um rapaz, mais jovem do que em tempos foste. Um dos olhos é amarelo e o outro parece verde, e ignoras que comprimidos poderiam provocar uma alucinação destas. A voz parece ser fruto de uma garganta inflamada.

— Sei que o seu nome é Maali, senhor. Não perca aqui o seu tempo. E, por favor, mantenha-se longe da Luz.