Prólogo

«Tenho informações fidedignas de que é um símbolo sexual da Geração Z.»

Quase deixo cair o telemóvel.

OK: deixo mesmo cair o telemóvel, mas salvo-o antes que mergulhe numa proveta cheia de amoníaco. De seguida, olho à volta do laboratório de Química, sem saber se mais alguém ouviu. 

Os outros alunos estão a enviar mensagens ou andam às voltas com os equipamentos. A professora Agarwal está sentada à secretária, a fingir que corrige testes, mas provavelmente a ler fanfiction erótica sobre o Bill Nye. Paira um cheiro a ácido etanoico, esperemos que não letal, que se evola da minha bancada, mas ainda tenho os AirPods metidos nos ouvidos.

Ninguém está a prestar atenção à minha pessoa ou ao vídeo que tenho no telemóvel, por isso carrego no play para o retomar.

«Essa informação apareceu na revista Time há duas semanas. Na capa. Uma imagem do seu rosto e o título “Um símbolo sexual da Geração Z”. Que sensação dá?» 

Eu esperava ver a Zendaya. O Harry Styles. A Billie Eilish. Todos os elementos da banda pop sul-coreana BTS, apinhados no sofá do programa do fim da noite que o algoritmo automático do YouTube decidisse apresentar-me depois de terminar o tutorial sobre a experiência do pH. Mas é apenas um tipo qualquer. Um rapaz? Parece deslocado no sofá de veludo vermelho, de camisa escura, calças escuras, cabelo escuro, expressão sombria. Intensamente inescrutável quando diz numa voz grave e séria: 

Madalena Sá Fernandes junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de novembro, pelas 21h00. A autora traz "Leme", o seu primeiro livro, editado pela Companhia das Letras.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Madalena Sá Fernandes nasceu em Lisboa, em 1993. Licenciou-se em Línguas, Literaturas e Culturas pela Universidade Nova de Lisboa e escreve crónicas no jornal Público.

Este livro apresenta "o relato da vivência de uma rapariga que assiste, durante anos, à erosão dos pilares que sustentam as ligações humanas: vê a mãe subjugada à violência do homem com quem mantém uma relação amorosa disfuncional; vive na pele a distorção dos papéis desempenhados por pais e filhos; alimenta-se da solidão para ultrapassar um quotidiano de medo e fúria; disputa um lugar só para si no meio do caos familiar; aprende a reconhecer o consolo das pequenas vitórias; e, por fim, reconstrói-se a si e às suas memórias", é referido na sinopse.

"Nenhuma criança conhece de antemão os nomes das coisas, mas todas as crianças reconhecem instintivamente o perigo. Para a protagonista desta história, o perigo tem o nome de um homem, e é sinónimo de obsessão, desequilíbrio, solidão, desamparo, poucas certezas e muitas dúvidas", pode ler-se.

Assim, "Leme" é entendido como "um golpe de escrita para regressar à vida. Uma cintilação plena de vida e um soco no escuro que nos engole: eis um livro que aponta diretamente aos limites do bem e do mal".

«Parece-me mal.» 

«Parece?», pergunta o entrevistador, Jim ou James ou Jimmy.

«A parte de ser da Geração Z está correta», diz o convidado. «Mas a parte de ser um símbolo sexual, nem tanto.» 

A assistência adora aquilo, bate palmas e ri, e é então que decido ler a legenda. Nolan Sawyer, diz. Há uma descrição a explicar quem ele é, mas não preciso dela. Posso não reconhecer a cara, mas não consigo lembrar-me de um momento na minha vida em que não soubesse o nome.

Conheça o Matador do Rei: O jogador de xadrez número um do mundo. 

«Deixe que lhe diga uma coisa, Nolan: ser inteligente é o que está a dar quando se fala em sex appeal 

«Continuo a não ter a certeza de que se aplica a mim.» 

O tom é seco, leva-me a interrogar-me: como é que o publicista dele o convenceu a dar esta entrevista? Mas a assistência ri-se e o entrevistador também. Inclina-se para a frente, obviamente encantado com este jovem que tem a constituição de um atleta, pensa como um físico teórico e tem o rendimento de um empresário de Silicon Valley. Um prodígio atraente e fora do comum que se recusa a admitir que é especial. 

Pergunto-me se o Jim-Jimmy-James ouviu dizer o que eu ouvi. As bisbilhotices. As histórias segredadas. Os boatos sombrios sobre o menino de ouro do xadrez.

«Concordemos apenas que o xadrez é o novo sexy. E que foi o Nolan quem o tornou sexy — houve um ressurgimento do xadrez desde que começou a jogar. Alguém estava a passar comentários dos seus jogos, e tornaram-se virais no ­TikTok — no ChessTok, como me dizem os meus guionistas que se chama —, e mais pessoas do que nunca andam a aprender a jogar. Mas vamos primeiro ao mais importante: o Nolan é um Grande-Mestre, que é o título mais elevado que um jogador de xadrez pode alcançar, e acabou de ganhar o seu segundo Campeonato Mundial contra» — o entrevistador tem de olhar para o cartão, porque os grandes-mestres normais não são tão famosos como o ­Sawyer — «Andreas Antonov. Parabéns.» 

O Sawyer acena com a cabeça, uma vez. 

«E acabou de fazer dezoito anos. Quando, recorde-me?» 

«Há três dias.»

Há três dias, eu fiz dezasseis. 

Há dez anos e três dias, recebi o meu primeiro jogo de xadrez — peças de plástico, cor-de-rosa e roxas — e chorei de alegria. Usava-o todo o dia, levava-o para todo o lado e depois aconchegava-o enquanto dormia. 

Agora nem consigo lembrar-me da sensação que dá ter um peão na mão.

«Começou a jogar muito novo. Os seus pais ensinaram-no?»

«Foi o meu avô», diz o Sawyer. O entrevistador parece abalado, como se pensasse que o Sawyer não iria por , mas recupera rapidamente.

«Quando se apercebeu de que era suficientemente bom para ser profissional?»

«Eu sou suficientemente bom?»

Mais risos da assistência. Reviro os olhos.

«Sabia que queria ser jogador profissional de xadrez desde o princípio?» 

«Sim. Soube desde sempre que não havia nada de que gostasse tanto como de ganhar um jogo de xadrez.» 

O entrevistador levanta as sobrancelhas. 

«Nada?» 

O Sawyer não hesita. 

«Nada.»

«E…» 

— Mallory? — Uma mão pousa-me no ombro. Dou um salto e arranco do ouvido um dos auscultadores. — Precisas de ajuda? 

— Não! — Sorrio à professora Agarwal, metendo o telemóvel no bolso de trás das calças. — Acabei de ver o vídeo informativo.

— Oh, perfeito. Não te esqueças de calçar luvas antes de adicionares a solução ácida. 

— Não me esqueço. 

O resto da turma já quase terminou a experiência. Franzo a testa, apressando-me a apanhá-los, e daí a uns minutos, quando já não sou capaz de encontrar o funil e derramo o bicarbonato de sódio, paro de pensar no Sawyer ou na maneira como a sua voz soava quando disse que nunca tinha querido nada tanto como o xadrez. E não volto a pensar nele durante um pouco mais de dois anos. Ou seja, até ao dia em que nós os dois jogamos pela primeira vez. 

E em que o arraso.

PRIMEIRA PARTE

Aberturas

Capítulo Um 

Dois anos depois

A Easton é esperta, porque me atrai com a promessa de um bubble tea, de graça. Mas também é parva, porque não espera até eu estar a beber o chá de chocolate espumoso e queijo creme antes de dizer: 

— Preciso de um favor. 

— Não.

Sorrio. Tiro duas palhinhas do cesto. Estendo-lhe uma, que ela ignora. 

— Mal. Ainda nem sequer ouviste o que…

— Não.

— Tem que ver com o xadrez. 

— Bem, nesse caso…

Sorrio a agradecer à rapariga que me está a entregar o chá. Saímos juntas duas ou talvez três vezes no verão passado, e tenho recordações vagas e agradáveis dela. Lábios com batom do cieiro com sabor a framboesa; o Bon Iver a ronronar no seu Hyundai Elantra; uma mão macia e fresca debaixo da minha T-shirt sem mangas. Infelizmente, nenhuma dessas recordações inclui o nome dela. Mas também não se lembra do meu: escreveu Melanie no copo do meu chá, por isso está tudo bem. 

Partilhamos um sorriso breve e secreto, e viro-me para a Easton.

— Nesse caso, não a dobrar. 

— Falta-me um jogador. Para um torneio de equipas. 

— Eu já não jogo. — Olho para o telemóvel. São 12h09, vinte e um minutos até eu ter de voltar para a oficina. O Bob, o meu patrão, não é propriamente um ser humano bondoso e clemente. Por vezes, duvido até de que seja um ser humano. — Vamos beber isto lá fora, antes de eu passar a tarde debaixo de um Chevy Silverado.

Livro: "Check & Mate - Xeque-Mate ao Amor"

Autor: Ali Hazelwood

Editora: Presença

Data de Lançamento: 15 de novembro de 2023

Preço: € 17,90

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— Vá lá, Mal. — Fulmina-me com o olhar. — É xadrez. Tu ainda jogas.

Quando a professora do sexto ano da minha irmã Darcy anunciou que ia mandar o porquinho-da-índia da turma para uma «quinta no norte do estado», a Darcy, como não tinha maneira de saber se a quinta existia realmente, decidiu raptá-lo. O porquinho, não a professora. Coabito com o Goliath, o Raptado, há um ano — um ano passado a negar-lhe os restos dos nossos jantares desde que o veterinário para que não temos posses nos suplicou de joelhos que o puséssemos a dieta. Infelizmente, o Goliath tem a capacidade extraordinária de me fitar até eu ceder sempre. 

Tal como a Easton. A expressão de um e da outra irradia a mesma teimosia pura, obstinada.

— Ná. — Bebo o chá pela palhinha. Divinal. — Já me esqueci das regras. O que é que faz o cavalinho, recorda-me. 

— Muito engraçada. 

— Não, a sério, como é isso do xadrez? A rainha conquista Catan sem passar pela Partida… 

— Não te estou a pedir que faças o que costumavas fazer. 

— O que é que eu costumava fazer?

— Lembras-te de quando tinhas treze anos e tinhas vencido todos os outros miúdos do PCC, depois os adolescentes e depois os adultos? E trouxeram pessoas de Nova Iorque para tu as humilhares? Não preciso disso.

De facto, eu tinha doze anos quando aquilo aconteceu. Lembro-me bem, porque o meu pai se pôs ao meu lado, com a mão quente no meu ombro ossudo, a proclamar, cheio de orgulho: Não ganho um jogo contra a Mallory desde que ela fez onze anos, há um ano. É extraordinária, não é? Mas não o lembro à Easton, atirando-me antes para um pedaço de relva ao lado de um canteiro cheio de zínias às portas da morte. O mês de agosto na Nova Jérsia não é o lugar favorito seja de quem for.

— Lembras-te daquela altura a meio do torneio? Quando eu estava quase a desmaiar e tu mandaste toda a gente recuar…

— …e passei-te o meu sumo.

Senta-se ao meu lado. Olho de relance para o risco perfeito de eyeliner, de seguida para o meu fato-macaco manchado de óleo, e é agradável, a maneira como algumas coisas nunca mudam. A perfecionista Easton Peña, sempre com um plano, e a sua parceira enxovalhada Mallory Greenleaf. Andámos na mesma turma desde o primeiro ano, mas não interagimos realmente até ela se inscrever no PCC aos dez anos. De certa maneira, ela já estava completamente formada. Já era a pessoa espantosa e teimosa que é hoje. 

Gostas realmente de jogar esta porcaria?, perguntou-me ela quando nos emparelharam para um jogo. 

Tu não?, perguntei-lhe, por meu turno, abismada. 

É claro que não. Só preciso de uma gama vasta de atividades extracurriculares. As bolsas de estudo para a universidade não caem do céu. Dei-lhe xeque-mate em quatro jogadas e adoro-a desde então. 

É engraçado que a Easton nunca tenha gostado do xadrez como eu, mas tenha continuado a jogar durante muito mais tempo. Que estranho triângulo amoroso nós os três formamos.

— Estás-me a dever pelo sumo, então… vem ao torneio — ordena. — Preciso de uma equipa de quatro. Toda a gente está de férias ou não sabe a diferença entre o xadrez e as damas. Nem sequer tens de ganhar… e é para fins de beneficência. 

— Para que instituição de beneficência? 

— Isso importa? 

— É claro que sim. É para um grupo de reflexão de direita? Para o próximo filme do Woody Allen? Para uma doença inventada, tipo histeria ou sensibilidade ao glúten?

— A sensibilidade ao glúten não é inventada. 

— A sério? 

— Sim. E o torneio é para… — Escreve furiosamente no telemóvel. — Não a consigo encontrar, mas podemos abreviar esta coisa? Ambas sabemos que vais dizer que sim.

Faço-lhe má cara.

— Não sabemos tal coisa. 

— Talvez tu não saibas. 

— Eu tenho coluna vertebral, Easton.

— Com certeza.

Mastiga as bolinhas de tapioca, agressiva, ousada, de repente mais urso feroz do que porquinho-da-índia.

Lembra-se do nono ano, quando me convenceu a ser a sua número dois quando concorreu para chefe de turma. (Uma derrota. Arrasadora.) E do décimo ano, quando a Missy Collins andava a espalhar boatos e a Easton me recrutou para entrar na conta dela do Twitter. Do décimo primeiro ano também, quando fiz o papel de Mrs. Bennett no musical de Orgulho e Preconceito que ela escreveu e levou à cena — apesar de eu saber que não devia e que tinha uma capacidade vocal reduzida. Provavelmente, também teria concordado fazer alguma coisa disparatada no último ano do secundário se as coisas em casa não estivessem… bem, de um ponto de vista financeiro, menos do que boas. E se eu não tivesse passado cada segundo livre a trabalhar na oficina de reparação de automóveis.

— Todos sabemos que és incapaz de dizer que não — recorda-me a Easton. — Portanto, limita-te a dizer que sim. 

Olho para o telemóvel — ainda me restam doze minutos do meu intervalo. Hoje, faz um calor abrasador, já despachei o meu boba e olho para o copo dela com interesse. Meloa: o meu segundo sabor preferido. 

— Estou ocupada. 

— Ocupada como? 

— Tenho um encontro. 

— Com quem? Com o tipo das plantas carnívoras? Ou com a sósia da Paris Hilton? 

— Nem um nem a outra. Mas hei de encontrar alguém.

— Vá lá. É uma maneira de passarmos tempo juntas antes da universidade. 

Sento-me direita e dou-lhe uma cotovelada. 

— Quando é que partes? 

— Daqui a menos de duas semanas. 

O quê? Nós acabámos agora as aulas, tipo… 

— Tipo há três meses? Tenho de estar no Colorado em meados de agosto para a apresentação.

— Oh. — É como acordar de uma sesta a seguir ao almoço e descobrir que já anoiteceu. — Oh — repito, um pouco chocada. Já contava com isto, mas algures entre a mononucleose da minha irmã, a semana da minha mãe no hospital, a mononucleose da minha outra irmã e todos os turnos extras que aceitei, devo ter perdido a noção do tempo. Isto é aterrador: eu nunca não vivi na mesma cidade que a Easton. Eu nunca não a vi uma vez por semana para jogarmos Dragon Age, falarmos do Dragon Age ou vermos jogos do Dragon Age. 

Talvez precisemos de passatempos novos. 

Esforço-me por sorrir. 

— Suponho que o tempo voa quando uma pessoa se está a divertir. 

Estás, Mal? A divertir-te?

Fita-me com os olhos semicerrados e eu rio-me. 

— Não te rias. Estás sempre a trabalhar. Quando não estás a trabalhar, estás a levar as tuas irmãs de carro a sítios ou a tua mãe a consultas médicas, e… — Passa a mão pelos caracóis escuros e deixa-os despenteados, um bom indicador de quão exasperada está. Sete numa escala de zero a dez, diria eu. — Foste a melhor da nossa turma. És um génio da matemática e consegues memorizar tudo. Tiveste três ofertas de bolsas de estudo, uma delas para vires para Boulder comigo. Mas decidiste não ir, e agora pareces encalhada aqui, sem nenhum fim à vista, e… sabes que mais? A escolha é tua, e respeito-te por isso, mas pelo menos podias permitir-te fazer uma coisa divertida. Uma coisa de que gostas. 

Fito as suas faces coradas por um, dois, três segundos, e quase abro a boca para lhe dizer que as bolsas de estudo pagam para estudares, mas não o empréstimo da casa ou o acampamento de roller derby da tua irmã ou a ração com suplemento de vitamina C para o animal de estimação raptado da tua outra irmã, ou o que quer que seja necessário para dissipar a sensação de culpa que está agarrada ao fundo do teu estômago. Quase. No último momento, desvio o olhar, por acaso, para o meu telemóvel. 

São 12h24. Merda. 

— Tenho de me ir embora. 

— O quê? Mal, ficaste zangada? Eu não tinha a intenção de… 

— Não. — Disparo-lhe um sorriso. — Mas o meu intervalo acabou. 

— Tu acabaste de chegar. 

— Pois. Mas o Bob não é grande fã de horários humanos e de uma relação equilibrada entre o trabalho e a vida. Por acaso estarás a pensar em não acabar de beber esse bubble tea?

Revira os olhos com força suficiente para distender um músculo, mas estende-me o copo. Levanto e fecho a mão quando me afasto. 

— Diz-me qualquer coisa sobre o torneio! — grita a Easton nas minhas costas. 

— Já te disse. 

Um gemido. E depois um «Mallory» sério e intencional que me faz virar, apesar da ameaça do hálito fedorento do Bob a berrar que cheguei atrasada. 

— Ouve, não quero forçar-te a fazer nada. Mas antes o xadrez era toda a tua vida. E agora nem sequer queres jogar por uma boa causa.

— Como a sensibilidade ao glúten?

Volta a revirar os olhos e eu corro para o trabalho a rir-me. Chego mesmo em cima da hora. Estou a pegar nas ferramentas antes de desaparecer por baixo do Silverado quando o meu telemóvel toca. É a captura de ecrã de um folheto. Diz: Torneio de equipa do Clubs Olympic. Zona da cidade de Nova Iorque. Em parceria com Médicos Sem Fronteiras.

Sorrio.

MALLORY: OK é uma boa organização de beneficência.

BRET EASTON ELLIS: Bem te disse. E também disse isto: 

Envia-me uma ligação para a página da WebMD sobre sensibilidade ao glúten, que, ao que parece, sempre existe. 

MALLORY: OK, então. É uma coisa real. 

BRET EASTON ELLIS: Bem te disse. 

MALLORY: Sabes que essa é a tua frase feita, certo.

BRET EASTON ELLIS: Essa é: «Eu tinha razão.» Então, entras no torneio? 

Resfolego e quase escrevo que não. Quase lhe recordo por que razão, exatamente, já não jogo xadrez. 

Mas depois imagino-a a ir para a faculdade e ficar lá durante meses — e eu aqui sozinha, a tentar ter uma conversa sobre o jogo mais recente do Dragon Age numa saída com alguém que só quer curtir. Penso nela a regressar para o Dia de Ação de Graças: talvez tenha um penteado novo, talvez se tenha tornado vegana, talvez tenha passado a gostar de roupas com estampados de manchas de vaca. Talvez se tenha tornado diferente. Vamos encontrar-nos nos lugares do costume, ver o programa do costume, trocar mexericos sobre as pessoas do costume, mas não vai ser a mesma coisa, porque ela terá feito novos amigos, terá visto coisas novas, terá criado novas recordações.

O medo apunhala-me o peito. Medo de que ela mude e desabroche e nunca mais seja a mesma. Mas eu continuarei a ser a mesma. Aqui em Paterson, a estagnar. Não o diremos, mas saberemos que sim.

Por isso, escrevo: 

MALLORY: OK. Última volta.

BRET EASTON ELLIS: Vês? Eu tinha razão. 

MALLORY: 

MALLORY: Pagas-me levando as minhas irmãs ao acampamento na semana que vem para eu poder fazer mais turnos. 

BRET EASTON ELLIS: Mal, não. 

BRET EASTON ELLIS: Mal, por favor. Qualquer outra coisa. 

BRET EASTON ELLIS: Mal, elas são ATERRADORAS.

MAL: 

— Eh, Greenleaf! Não te pago para estares no Instagram ou a comprar sanduíches de abacate. Ao trabalho.

Reviro os olhos. Por dentro.

— É a geração errada, Bob. 

— Seja como for. Ao. Trabalho.

Meto o telemóvel dentro do fato-macaco, suspiro e faço exatamente isso. 

*

— Mal, a Sabrina beliscou-me o braço e chamou-me bafo de pila!

— Mal, a Darcy bocejou na minha cara com o seu bafo de pila malcheiroso e nojento. 

Suspiro e continuo a preparar as papas de aveia das minhas irmãs. Canela, leite magro, nada de açúcar ou «Eu espeto-te uma faca, Mal. Alguma vez ouviste falar de uma coisa chamada saúde?» (Sabrina); manteiga de amendoim, Nutella de marca branca, banana e «podes pôr um bocadinho mais de Nutella, por favor? Estou a tentar crescer trinta centímetros antes do oitavo ano!» (Darcy).

— Mallory, a Darcy acabou de dar um pum em cima de mim!

— Não… a Sabrina é um penso higiénico que se pôs ao alcance do meu rabo! 

Saboreio distraidamente a Nutella económica da colher, fantasiando que deito acetona nas papas. Só uma gota. Talvez duas. 

Haveria alguns contras, tais como a morte extemporânea das duas pessoas de quem mais gosto no mundo. Mas os prós? Imbatíveis. Fim às dentadas nos dedos dos pés a meio da noite, provavelmente infetadas com raiva, do Goliath. Fim aos insultos cruéis por lavar o sutiã cor-de-rosa da Sabrina, por arrumar fora do sítio o sutiã cor-de-rosa da Sabrina, por alegadamente roubar o sutiã cor-de-rosa da Sabrina, por não me manter a par do paradeiro do sutiã cor-de-rosa da Sabrina. Fim aos cartazes do Timothée Chalamet a fitar-me sinistramente das paredes.

Apenas eu, a afiar a minha naifa no silêncio tranquilo de uma cela prisional na Nova Jérsia. 

— Mallory, a Darcy está a ser um cocó total… 

Deixo cair a colher e rumo à casa de banho. São uns três passos — a propriedade Greenleaf é pequena e não exatamente próspera.

— Se vocês as duas não se calarem — digo com a minha voz mais autoritária das oito da manhã —, levo-vos ao mercado e troco-vos por uvas docinhas.

Aconteceu uma coisa esquisita no ano passado: quase da noite para o dia, os meus bombons doces, que costumavam ser grandes amigas uma da outra, tornaram-se umas horrendas bruxas rivais. A Sabrina fez catorze anos e começou a comportar-se como se fosse demasiado fixe para ser geneticamente aparentada connosco; a Darcy fez doze anos e… bem. A Darcy ficou como era. Sempre a ler, sempre precoce, sempre demasiado observadora para o seu próprio bem. O que, creio eu, é a razão pela qual a Sabrina investiu a semanada num cadeado e a expulsou do quarto que partilhavam. (Eu acolhi a Darcy — daí o efeito Mona Lisa dos olhos do Timothée Chalamet e a possibilidade de contrair raiva.) 

— Oh, meu Deus. — A Darcy revira os olhos. — Relaxa, Mallory. 

— Sim, Mallory. Relaxa o olho do rabo. 

Oh, sim: a única ocasião em que estas ingratas conseguem dar-se bem? Quando se juntam contra mim. A mãe diz que é a puberdade. Eu inclino-me mais para estarem possuídas pelo Diabo, mas quem sabe? O que sei ao certo é que implorar, ralhar ou mesmo tentar fazê-las ver a razão não são técnicas eficazes. Elas agarram-se a qualquer demonstração de fraqueza, exploram-na e acaba sempre tudo comigo a ser chantageada para lhes comprar coisas ridículas, como almofadas grandes estampadas com o Ed Sheeran ou chapéus de formatura para porquinhos-da-índia. O meu lema é governar pelo medo. Jamais negociar com estes tubarões hormonais, anárquicos, sedentos de sangue. 

Meu Deus, adoro-as tanto que até me dá vontade de chorar. 

— A mamã está a dormir — segredo num tom sibilante. — Juro, se não se calarem vou escrever bafo de pila e penso higiénico nas vossas testas com caneta de feltro permanente e mandar-vos para o mundo assim.

— Talvez queiras repensar isso — lembra-me a Darcy, acenando-me com a escova dos dentes — ou ainda te denunciamos aos Serviços de Proteção de Menores.

A Sabrina acena com a cabeça.

— Possivelmente, até à polícia. 

— Ela tem posses para as custas judiciais? 

— De maneira nenhuma. Boa sorte com o teu advogado de defesa nomeado pelo tribunal, esfalfado de trabalho e mal pago, Mal. 

Encosto-me à ombreira da porta. 

Ora bem, vocês as duas puseram-se de acordo em relação a alguma coisa.

— Nós sempre concordámos que a Darcy é um bafo de pila.

— Não sou nada… tu é que és uma galdéria.

— Se acordarem a mamã — ameaço —, enfio-vos na sanita e puxo o autoclismo…

— Eu estou acordada! Não há necessidade de entupir a canalização, querida. — Viro-me. A mãe está a vir pelo corredor, em passos trémulos, e sinto um nó no fundo do estômago. As manhãs têm sido difíceis no último mês. Durante todo o verão, realmente. Olho de relance para a Darcy e para a Sabrina, que pelo menos têm a decência de parecer contritas. — Agora que me levantei com as galinhas, posso ter uns abraços das minhas bonecas russas favoritas?

A mamã gosta de dizer na brincadeira que eu e as minhas irmãs, com o nosso cabelo louro-branco, olhos azul-escuros e rostos ovais rosados, somos versões em três tamanhos umas das outras. Talvez a Darcy tenha ficado com todas as sardas e a Sabrina tenha adotado por completo a estética das redes sociais, e eu… Se não houvesse tantas indumentárias alternativas chiques nas lojas de caridade, não pareceria uma imitadora da personagem Alexis Rose da série Schitt’s Creek. Mas não há dúvida de que as três raparigas da família Greenleaf foram feitas com o mesmo molde — e não é o da mamã, dado o seu cabelo em tempos escuro, agora grisalho, e a sua pele morena. Se ela se importa que nós tenhamos saído tanto ao lado do pai, nunca falou disso.

— Porque é que já se levantaram? — pergunta com a boca encostada à testa da Darcy antes de passar para a Sabrina. — Têm treino?

A Sabrina contrai-se. 

— Eu só começo na semana que vem. De facto, nunca vou começar se alguém não me inscrever na Associação de Roller Derby Júnior, que tem de ser até à próxima sexta-feira 

— Eu pago a inscrição até sexta — tranquilizo-a. 

Lança-me um olhar cético, desconfiado. Como se eu lhe tivesse partido o coração demasiadas vezes com o meu mísero salário de mecânica de automóveis.

— Porque é que não podes pagar já? 

— Porque gosto de brincar contigo, como uma aranha com a sua presa.

E porque preciso de fazer turnos extras na oficina para pagar a inscrição. 

Semicerra os olhos. 

— Não tens o dinheiro, pois não? 

Sinto um aperto no peito. 

— É claro que tenho. 

— Porque eu sou basicamente adulta. E a McKenzie está a trabalhar naquele sítio de gelados de iogurte, por isso eu podia pedir-lhe que… 

— Tu não és uma adulta. — A ideia de a Sabrina se preocupar com dinheiro é fisicamente dolorosa. — De facto, dizem por aí que és um penso higiénico.

— Já que estamos a pedir e a receber coisas — interrompe a Darcy, com a boca cheia de pasta dos dentes —, o Goliath continua a sentir-se sozinho e deprimido, e a precisar de uma namorada. 

— Hum. — Penso de passagem no número de cocós que dois Goliaths poderiam produzir. Que nojo. — Seja como for, a Easton ofereceu-se para vos levar às duas de carro ao acampamento na próxima semana. E eu não vos vou pedir que sejam simpáticas ou normais, ou até corretas com ela, porque também gosto de brincar com ela. Não têm de me agradecer.

Saio da casa de banho e fecho a porta, mas não antes de reparar no olhar esbugalhado que as minhas irmãs trocam. O seu afeto pela Easton é histórico e intenso.

— Estás gira hoje — diz-me a mãe na cozinha. 

— Obrigada. — Mostro-lhe os dentes. — Usei fio dental. 

— Que chique. Também tomaste duche? 

— Eh lá, calma. Não sou uma influenciadora de moda. 

Ri-se. 

— Não estás com o fato inteiro. 

— Chama-se fato-macaco… mas obrigada por fazeres de conta. — Olho para a T-shirt branca que enfiei numa saia amarelo-vivo bordada. — Não vou para a oficina. 

— Tens um encontro? Já não tinhas um há algum tempo. 

— Não é um encontro. Prometi à Easton que ia…

Calo-me.

A minha mãe é fantástica. A pessoa mais bondosa e mais paciente que conheço. Provavelmente, não se importaria, se eu lhe contasse que vou a um torneio de xadrez. Mas anda apoiada a uma bengala esta manhã. Parece ter as articulações inchadas e inflamadas. E eu não uso a palavra começada por um xis há três anos. Porquê interromper agora? 

— Ela vai para Boulder daqui a duas semanas, por isso vamos passar o dia em Nova Iorque.

Fica com uma expressão sombria. 

— Gostava mesmo que reconsiderasses a hipótese de continuar a estudar… 

— Mamã… — gemo, no tom mais magoado que consigo arranjar. 

Depois de várias tentativas e de muitos erros, descobri finalmente a melhor maneira de a minha mãe não insistir: dar a entender que quero tão pouco ir para a faculdade que, sempre que ela aborda o assunto, me sinto tragicamente magoada pela sua falta de respeito pelas minhas opções de vida. Pode não ser verdade, e não sou grande fã de lhe mentir, mas é para o bem dela. Não quero que ninguém na minha família pense que me deve alguma coisa ou que se sinta culpada pelas minhas decisões. Não deviam sentir-se culpadas, porque nada disto é culpa delas. 

É exclusivamente minha.

— Certo. Sim, desculpa lá. Bem, é empolgante que vás passar o dia com a Easton. 

— É? 

— Claro que sim. Estás a ser jovem. A fazer coisas típicas de uma rapariga de dezoito anos. — Lança-me um olhar melancólico. — Fico contente por tirares um dia de folga… YALO!

— É YOLO, mamã. 

— Tens a certeza?

Rio-me enquanto pego na minha mala de mão e lhe dou um beijo. 

— Volto esta noite. Ficas bem sozinha com as ingratas? Deixei três opções de refeições no frigorífico. E a Sabrina portou-se mesmo mal na semana passada, por isso, se a McKenzie ou outra a amiga a convidar, não a deixes ir para a casa delas. 

A minha mãe suspira. 

— Tu sabes que também és minha filha, certo? E não devias ter a obrigação de criar as tuas irmãs comigo? 

— Eh. — Franzo a testa, na brincadeira. — Não estou a fazer um bom trabalho? Devia meter mais calmantes no pequeno-almoço das pestinhas? 

Quero que a minha mãe se ria de novo, mas ela limita-se a abanar a cabeça. 

— Não me agrada ter ficado surpreendida por teres tirado um dia de folga. Ou que a Sabrina olhe para ti quando precisa de dinheiro. Isto não… 

— Mamã. Mamã. — Faço um sorriso tão convincente quanto posso. — Juro-te, está tudo bem. 

Provavelmente não está. Bem, quero dizer.

Há algo supremamente nada bem no facto de a minha família ter a entrada da Wikipédia sobre artrite reumatoide memorizada. Que podemos saber se é um dia mau pelas rugas à volta da boca da mãe. Que no ano passado tive de explicar à Darcy que crónico significa para sempre. Incurável. Nunca vai passar. 

A minha mãe tem um mestrado em Biologia e é autora de artigos sobre Medicina — e muito boa. Já escreveu textos educativos, documentos da agência que regulamenta os medicamentos, pedidos de bolsas que fizeram ganhar milhões de dólares aos seus clientes. Mas trabalha como freelancer. Quando o meu pai estava por cá e ela conseguia trabalhar regularmente, não era grande problema. Infelizmente, já não é uma opção viável. Em alguns dias, a dor é tão forte que ela mal consegue sair da cama, quanto mais aceitar projetos, e o pedido impossivelmente complicado à Segurança Social de um subsídio por incapacidade já lhe foi negado quatro vezes. Mas, pelo menos, eu estou aqui. Pelo menos, eu posso tornar as coisas mais fáceis para ela.

Por isso, talvez, só talvez, fique. Tudo bem, quero dizer.

— Descansa, OK? — Seguro o seu rosto nas minhas mãos em concha. Tem cerca de sete círculos de olheiras por baixo dos olhos. — Volta para a cama. As criaturinhas entretêm-se sozinhas. 

Quando saio, ouço a Sabrina e a Darcy queixarem-se das papas de aveia na cozinha. Anoto mentalmente que devo reforçar o stock de acetona, e quando avisto o carro da Easton ao virar da esquina aceno-lhe e corro pela rua acima. 

E isto, suponho, é o princípio do resto da minha vida.