Em 1985 estreava o primeiro filme da saga 'Back to the Future' ('Regresso ao Futuro'), e vários miúdos portugueses sonhavam ser Marty McFly, o que não estava nos seus sonhos é que em 2024 seria um português que todos os dias ia subir ao palco para o representar, no musical londrino.

Com apenas 22 anos, o lisboeta Vasco Emauz acabou a licenciatura no Institute of the Arts Barcelona em 2023, e no ano seguinte já era protagonista em West End, depois de assinar contrato a famosa agência britânica Lowy Hamilton Artists.

"Nunca tive grandes esperanças de isto acontecer tão cedo na minha carreira, especialmente por causa do Brexit. Porque com o Brexit, obviamente, que a maior parte dos diretores de casting cá nem sequer quer ver pessoas que não tenham visto", recorda em entrevista ao SAPO24.

Foi com dificuldade e com muito pouca esperança que participou nos primeiros castings, mas acabou por conseguir uma audição. "Já estavam na terceira ronda de audições em que chamaram não sei quantas pessoas para a primeira, e não encontraram ninguém. Depois, chamaram outra vez para a segunda, não encontraram ninguém. E à terceira, a minha agência conseguiu meter-me na sala. E pronto, fiz uma self-tape, cantei as músicas. E depois chamaram-me para me verem pessoalmente", lembra.

"A partir daí foi muito rápido. Fiquei com o papel e eles trataram-me do visto. E acho que a minha última audição foi no dia 1 maio, e em junho já me trouxeram para Londres para fazer um bootcamp de skateboarding", uma vez que o famoso personagem se desloca assim,  aponta. "Em julho, mudei-me para Londres. E ainda não voltei desde essa altura".

O musical está atualmente em cartaz no Adelphi Theatre, em Londres, alcançando sucesso continuadamente desde a estreia em 2021. Conhecido pela sua energia vibrante e atuações memoráveis, este espetáculo já foi galardoado com múltiplos prémios, incluindo o Best New Musical nos Olivier Awards de 2022.

O português, que nem há um ano começou o caminho como Marty McFly, já chama a atenção do público e da crítica e está agora nomeado para os 25th Annual WhatsOnStage Awards, na categoria "Best Professional Debut", podendo qualquer pessoa votar aqui.

Sobre a duração deste sonho, do qual o jovem diz não conseguir acordar, não existem previsões e lembra entre risos: "Ainda tenho tempo, existem datas à venda até dia 27 de julho".

Tudo começou com um boneco de neve

Sobre como se chega até aqui, Emauz não sabe ainda: "Tem sido surreal. É difícil de aceitar como realidade".

Tudo começou nas aulas de piano quando tinha 15 anos: "Eu gostei imenso do filme 'Frozen'. Quando eu era mais novo, via estes filmes em inglês a partir de uma certa idade, porque eu gostava de ouvir as versões originais. Então gostei imenso da voz da Idina Menzel [na personagem Elsa] e pensei: O que é que ela fez mais? Depois encontrei o 'Wicked', que consegui ver online e a partir daí fiquei mesmo apegado a essa ideia de teatro musical e comecei a trazer as minhas músicas para as aulas de piano".

"Depois, a minha professora disse-me que havia aulas de teatro musical em Portugal. Coisa que eu, na altura, não sabia de todo. Acabei então por trocar o piano por essas aulas. Eram umas aulas semanais aos sábados. A partir daí, percebi que era a única coisa que eu queria fazer e decidi arriscar e ir para Barcelona tirar o curso", sublinha.

Curso acabado e depois de uma operação à anca com seis meses de recuperação, começou a ir em força a audições até ao papel que hoje representa.

Nunca pensou duas vezes quando surgiu a possibilidade de abandonar Portugal pela sua arte: "É uma coisa que eu sempre quis. Portanto, a partir daí, foi só, mesmo de cabeça".

"Comecei e não parei desde que comecei. Porque o papel é tão grande que os ensaios começaram e eu, basicamente, não tinha muito tempo fora", recorda, e lembra que no início só tinha mesmo um dia de folga.

"O musical que eu estou a fazer nunca seria feito em Portugal"

Sempre com o estrangeiro no horizonte, ser ator em Portugal nunca esteve nos objetivos de Vasco. "O musical que eu estou a fazer nunca seria feito em Portugal", diz, sublinhando a panóplia de efeitos especiais em cena e o investimento necessário.

"Eu sempre quis ir para fora. Para ser completamente honesto, sempre foi o meu objetivo. Até porque, em teatro musical, nós não temos muita coisa. Acho que, agora, cada vez há mais. Mas, normalmente, é raro", destaca.

Sobre a preparação para o papel, diz que o que ajudou principalmente é o facto de não ter grandes medos e ser impulsivo. "Estou sempre a saltar de coisas muito altas. E estou sempre a cair no chão não sei quantas vezes. Eu ativo-me sempre e depois espero que resulte".

"Este papel é puxado física e vocalmente. Portanto, é questão de viver isto como lifestyle", algo que é possível porque a companhia lhe proporciona todo o apoio, desde fisioterapia gratuita, aulas de skateboard e aquecimento vocal e físico diário.

Além disso, o facto do papel de Marty McFly ser o principal faz com que raramente saia do palco, ou seja, nunca deixa de estar quente.

Quanto aos colegas, a maior parte são ingleses, escoceses ou irlandeses e dois americanos, no papel de Doc Brown e de Mayor Goldie Wilson. São de todas as idades, entre os 21 e os 50. "Já encontrei pessoas que sei que vão ser amigos para a vida também", diz Emauz, que lembra os primeiros dias no estrangeiro, quando foi um bocadinho difícil para conseguir fazer amigos: "Estava sempre em palco ou a ensaiar. Mas agora com o tempo tem mudado bastante".

"A vida mudou 180 graus"

'Back to the Future' é um musical com música e letra de Alan Silvestri e Glen Ballard, e texto de Robert Zemeckis e Bob Gale, adaptado do guião original também de ambos. Baseado no filme, o musical apresenta músicas originais juntamente com sucessos do filme.

O musical estava originalmente previsto fazer a sua estreia mundial em West End, em Londres, em 2015. No entanto, depois do encenador Jamie Lloyd deixar a produção em agosto de 2014 devido a "diferenças criativas" com Zemeckis, a data de lançamento da produção foi adiada para 2016. Em maio de 2019, foi anunciado que a peça estrearia no Manchester Opera House em fevereiro de 2020, antes de uma transferência prevista para West End. O musical foi originalmente protagonizado por Olly Dobson, que interpretou Marty McFly, e Roger Bart, como Doc Brown, vencedor do Tony Award naquele ano na produção entretanto transferida para Nova Iorque.

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O musical estreou depois no Winter Garden Theatre na Broadway em agosto de 2023, de onde irá sair em janeiro de 2025.

Para quem não conhece os filmes, a história aborda o momento em que Marty McFly se vê transportado de volta ao ano 1955 numa máquina do tempo construída pelo cientista Doc Brown, e acidentalmente muda o curso da história. Durante todo o musical, o objetivo é estar numa corrida contra o tempo para consertar o presente, sobreviver ao passado e regressar ao futuro.

Para Vasco, ser Marty McFly foi uma mudança de 180 graus. "Não se compara o que estava a fazer antes com o que estou a fazer. Planeio ficar em Londres porque já sei que, a partir de agora que tenho o visto para ficar cá, o mundo fica mais aberto, apesar de ser um mercado tão competitivo".

"Agora tenho um sabor do que é estar a fazer isto, este nível de produção. Por isso, só me passa pela cabeça ficar", afirma.

Sobre lidar com os fãs, diz que ainda não é o seu dia a dia, mesmo com a cara em cartazes por toda a capital do Reino Unido: "Eu não diria que tenho um grupo de fãs. Mas o musical em si tem um grande núcleo de fãs muito ativo. Vêm muitas vezes à porta dos atores e falam connosco, e são muito simpáticos".

"Normalmente, quando ocorre uma mudança de elenco deste género, às vezes pode ser algo intimidante mudar porque as pessoas ficam muito apegadas a quem está a fazer os papéis. Mas senti muito o apoio do público e a porta dos atores é sempre uma coisa bastante gratificante porque as pessoas vão lá literalmente só porque apreciaram o que fizeste, para tirar fotografias. Especialmente quando são crianças", aponta.

O que dizer a um jovem ator? "Tentar"

Sobre conselhos para outros jovens artistas, não desvenda muito: "É continuar a tentar! E dar 100% em tudo".

"Estas oportunidades eu não posso dizer que sejam uma coisa super comum. Portanto, não consigo garantir a ninguém que isto vai acontecer. Porque foi mesmo no right place, right time e right fit ("no sítio certo, à hora certa e ser a pessoa certa", em tradução livre) na personagem", sublinha.

"Quando recebi esta audição, comecei a ver os filmes do 'Back to the Future' logo de seguida. Fiquei a estudar o texto todo para que, se tivesse a hipótese de ser chamado, estar cada vez mais preparado. E acho que esta é a mentalidade certa", recorda.

Acrescenta ainda que uma das coisas que o ajudou foi ser um rapaz. "Para ser completamente honesto, não sei se isto me teria acontecido isto se fosse uma rapariga", destaca. "Há menos rapazes cá e este papel é muito específico. Não há muitas pessoas que encaixem neste papel. Portanto, todos estes fatores também me ajudaram a chegar aqui. O mercado está mais saturado de raparigas e vai ser naturalmente mais difícil de ter estas oportunidades iguais", acrescenta.

E como é ser o Marty McFly? "Eu vi o musical em janeiro de 2024 e, literalmente, no intervalo disse à minha amiga que queria fazer aquele papel". Já com meses de representação admite que entre o Vasco e o Marty as diferenças não são muitas neste momento.

Por fim, salientou ainda ao SAPO24 a pena que tem de não se falar muito em Portugal da sua ida para West End. "Só me fez ficar a pensar como Portugal não valoriza o teatro musical". Hoje diz que gosta de pensar que representa um pouco Portugal no estrangeiro: "Tenho sempre pessoas portuguesas que às vezes vêm falar comigo e dizer que é um orgulho ver um português em palco no West End e isso faz-me sentir bastante bem, porque é um orgulho de onde venho e eu sou português, não sou inglês, e é bom ver as pessoas a falar português comigo".