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Quero deixar isto bem claro desde o início: não matei o Hugh Henry Van Boren.
Nem sequer ajudei. Bem, não intencionalmente.
A minha mãe acha que sofro de algum trauma latente. Ela não é psicóloga nem nada – só vê um monte de documentários e acredita que isso faz dela uma especialista em tudo. Ao que parece, escrever sobre o que aconteceu vai ajudar-me a processar. Acho que isso não passa de um monte de tretas, mas quando o disse em voz alta e de forma educada, a minha mãe ficou com aquela expressão severa no olhar que significava: É melhor fazeres o que eu digo, Jess Choudhary, ou vou bater-te com este chinelo.
A minha mãe nunca me bateu. Só ameaça com O Chinelo.
Seja como for, vou desabafar toda a verdade neste caderno, embora preferisse esquecer tudo.
Vamos começar com a minha história de infortúnio e aflição.
Na semana que antecedeu a morte do Hugh, testemunhei o primeiro sinal de que se avizinhavam problemas.
Estava sentada sozinha na ponta de uma das longas mesas de madeira polida do refeitório. A minha melhor e única amiga, Clementine-Tangerine Briggs, decidiu saltar o jantar para poder passar mais tempo a concentrar-se no seu novo empreendimento – um podcast minucioso sobre a triste situação da rã-do-titicaca. O bicho tinha a alcunha de «rã escroto» e, ao que parecia, encontrava-se muito perto da extinção (a Clem estava convencida de que as criaturas feias também mereciam ser salvas). E sim, Clementine-Tangerine é o seu nome verdadeiro – os pais dela disseram que a fruta era o que mais vendia na sua rede de hipermercados de produtos biológicos, e os produtos mais vendidos rendiam-lhes bom dinheiro, e os pais da Clem adoram dinheiro.
Eu tinha um livro apoiado no jarro de cristal com sumo de laranja à minha frente. Na verdade, não estava a ler, mas trouxera-o comigo para que as pessoas pensassem que me tinha sentado sozinha intencionalmente, para ficar a sós com os meus pensamentos. Misteriosa, demasiado fixe para ter amigos. Tenho a certeza de que os enganei a todos.
Havia um grande espaço vazio em meu redor na mesa, como se eu repelisse as pessoas. Mais ao fundo na mesa, a minha colega de quarto estava a bisbilhotar em voz alta com as amigas. As suas risadas estridentes arranhavam-me os ouvidos, mas mesmo assim eu ainda queria poder deslizar no banco e juntar-me a elas.
Porém, isso nunca aconteceria. Eu não me integrava no Colégio Heybuckle. Fizesse o que fizesse, ou por muito simpática que fosse, toda a gente me veria sempre como a miúda pobre, o caso de caridade.
De vez em quando, virava uma página do livro, para dar credibilidade à minha encenação da solitária misteriosa.
Quando ia a meio do peixe com batatas fritas, a Millicent Cordelia Calthrope-Newton-Rose (também, por incrível que pareça, um nome verdadeiro) fez a sua entrada triunfal, abrindo com força as portas de madeira do refeitório.
A Millie desfilou pelo espaço vazio no meio do refeitório, bamboleando as ancas como se estivesse numa passarela. Os caracóis loiros pendiam-lhe soltos sobre os ombros, e os seus profundos olhos azuis estreitaram-se enquanto ela examinava a multidão. A saia cinzenta do uniforme estava subida em volta da cintura para mostrar as pernas esbeltas, e a gravata balançava em volta do pescoço como um acessório de moda. Usava sempre o uniforme assim – nem os professores ousavam repreendê-la.
– Onde está o Hugh? – exigiu saber.
A sua voz foi ouvida em todo o refeitório, mas ninguém falou.
Eu estava do outro lado, o mais longe possível dela. Ainda assim, encolhi-me. O Hugh levantou-se de onde estava sentado, rodeado confortavelmente pelo seu grupo de amigos, a poucos metros da Millie. Tal como ela, era incrivelmente bonito, com cabelo loiro encaracolado e faces rosadas. Raramente sorria, o rosto esculpido como uma escultura de pedra, e tinha mais de um metro e oitenta, com ombros largos devido a todo o tempo que passava a exercitar-se. Eram ambos tão bonitos que poderiam ter acabado por ser um casal de modelos famoso. Sabem, se ele não a tivesse traído e depois tivesse sido morto.
– Estou aqui, querida – disse o Hugh, enfiando as mãos nos bolsos. O seu tom era enfadado. – O que se passa?
– O que se passa? – A voz da Millie saiu estrangulada. – Seu mentiroso, sacana hipócrita...
– Oh. Descobriste. – O Hugh tirou as mãos dos bolsos e alisou a gravata vermelha e dourada de Heybuckle. A sua expressão era indiferente, quase resignada, como se já esperasse que este dia chegaria. – Talvez não devêssemos falar sobre isso aqui...
– TRAÍSTE-ME – vociferou a Millie. – Seu canalha mentiroso, seu monte de esterco. ESTERCO. – Ela ficou cara a cara com ele, gritando a palavra uma e outra vez como um brinquedo de corda partido.
O Hugh encolheu os ombros, parecendo despreocupado ao debitar as palavras.
– Sinto que nos tornámos duas pessoas diferentes – disse.
Agia com tanta razoabilidade que metade do refeitório parecia concordar com ele, embora ele fosse o trapaceiro e a Millie tivesse razão. Ela pareceu sentir a mudança de humor a favor do Hugh, porque gritou, pegou num jarro de sumo de laranja e atirou-lhe com a bebida à cara. Uma parte do sumo caiu-lhe na camisa.
– Que diabo! – exclamou o Hugh, esfregando freneticamente os olhos. – Alguém me traga um pouco de água... ela acertou-me nos olhos... estão a arder...
O Eddy, amigo do Hugh, estendeu a mão para o jarro de água à frente dele, mas a Millie foi mais rápida e atirou com a água para cima do Hugh.
– Vocês querem saber com quem este merdoso me traiu? – Ela agitou o jarro vazio acima da cabeça.
Com um lenço húmido, o Hugh enxugou ineficazmente as manchas amarelas na sua camisa anteriormente branca e engomada, com as bochechas a ficarem vermelhas.
– Isto vai deixar nódoas – queixou-se. – Caramba, é nojento, vou ter de a deitar fora. – Parecia mais transtornado com a camisa suja do que com o facto de a namorada com quem andava há três anos estar a acabar a relação.
Os professores na mesa principal estavam paralisados, alguns com os garfos parados a meio caminho da boca. O pessoal da cozinha juntara-se perto dos passa-pratos, observando, atónito. Nenhum dos adultos deteria a Millie antes que ela contasse a verdade. Eu sabia o que estava por vir e não podia fazer nada a esse respeito.
A Millie estava a olhar em volta de novo, e eu desejei ainda mais ter amigas sentadas ao meu lado. Sozinha, era vulnerável, como uma gazela fraca prestes a ser apanhada por uma chita. Tentei encolher-me ainda mais, mas o olhar da Millie fixara-se em mim.
– Tu – bufou ela, encaminhando-se a passos pesados na minha direção.
Todos se viraram para nós. As minhas faces ficaram vermelhas. As pessoas começaram a sussurrar, o refeitório encheu -se com o barulho de folhas a balançar numa brisa suave.
Raios.
Nunca estive tão consciente da minha língua. Sempre se pressionara contra os meus dentes daquela maneira?
– Onde está ela? – A Millie agigantava -se sobre mim, o seu perfume com aroma de rosas (definitivamente de marca, sem dúvida incrivelmente caro) quase avassalador. – Onde está aquela vadiazinha que rouba namorados?
A minha mente ficou em branco e a garganta fechou-se-me. Eu não conseguia falar, mesmo que quisesse.
O Hugh ergueu os olhos da camisa arruinada.
– Deixa a Jade em paz – disse com um suspiro, e atirou o lenço de papel ensopado para cima da mesa. – É comigo que estás zangada.
Teria sido heroico se ele não continuasse a pingar sumo de laranja diluído. E não era eu quem me ia pôr a corrigi -lo diante de todos, mas o rapaz estava na maioria das minhas aulas desde que tínhamos treze anos, e três anos depois ainda não sabia o meu nome. Não é que Jess fosse assim tão difícil de memorizar.
A Millie atirou a cabeça para trás e soltou um grito gutural. O cabelo voou-lhe descontroladamente para cima do rosto, enquanto os olhos corriam por toda a parte.
– Escumalha! – gritou. – Escumalha!
Perguntei-me porque gostaria ela tanto da palavra escumalha e porque ainda não tinha usado um palavrão normal, mas descobri que estava apenas a começar, como um cantor a aquecer a voz para o grand finale de uma música. Começou a atirar todos os palavrões ao Hugh, a sua voz tornando-se cada vez mais rouca porque ele não reagia a nenhum dos insultos.
– Tu humilhaste-me...
– Tu é que te humilhaste a ti própria, querida – cortou o Hugh num tom de voz amável.
– Não te atrevas a chamar-me querida. Eu mato-te – gritou ela, o rímel borrado fazendo com que parecesse ter dois olhos negros. – Eu... mato... te.
E então matou-o.
Não, estou a brincar, não foi isso que aconteceu. Embora essa história fosse muito mais curta e muito menos stressante para mim, se tudo tivesse acontecido dessa maneira.
Em vez disso, a porta do refeitório abriu-se e a minha melhor amiga Clem entrou. Todos olharam para ela, inclusive a Millie, que soltou um grito tão alto que aposto que alguns cães a dez quilómetros de distância espetaram as orelhas e se puseram a ladrar.
A Clem parou, confusa.
E a Millie atacou.
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