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Quero deixar isto bem claro desde o início: não matei o Hugh Henry Van Boren.

Nem sequer ajudei. Bem, não intencionalmente.

A minha mãe acha que sofro de algum trauma latente. Ela não é psicóloga nem nada – só vê um monte de documentários e acredita que isso faz dela uma especialista em tudo. Ao que parece, escrever sobre o que aconteceu vai ajudar-me a processar. Acho que isso não passa de um monte de tretas, mas quando o disse em voz alta e de forma educada, a minha mãe ficou com aquela expressão severa no olhar que significava: É melhor fazeres o que eu digo, Jess Choudhary, ou vou bater-te com este chinelo.

A minha mãe nunca me bateu. Só ameaça com O Chinelo.

Seja como for, vou desabafar toda a verdade neste caderno, embora preferisse esquecer tudo.

Vamos começar com a minha história de infortúnio e aflição.

Na semana que antecedeu a morte do Hugh, testemunhei o primeiro sinal de que se avizinhavam problemas.

Estava sentada sozinha na ponta de uma das longas mesas de madeira polida do refeitório. A minha melhor e única amiga, Clementine-Tangerine Briggs, decidiu saltar o jantar para poder passar mais tempo a concentrar-se no seu novo empreendimento – um podcast minucioso sobre a triste situação da rã-do-titicaca. O bicho tinha a alcunha de «rã escroto» e, ao que parecia, encontrava-se muito perto da extinção (a Clem estava convencida de que as criaturas feias também mereciam ser salvas). E sim, Clementine-Tangerine é o seu nome verdadeiro – os pais dela disseram que a fruta era o que mais vendia na sua rede de hipermercados de produtos biológicos, e os produtos mais vendidos rendiam-lhes bom dinheiro, e os pais da Clem adoram dinheiro.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Eu tinha um livro apoiado no jarro de cristal com sumo de laranja à minha frente. Na verdade, não estava a ler, mas trouxera-o comigo para que as pessoas pensassem que me tinha sentado sozinha intencionalmente, para ficar a sós com os meus pensamentos. Misteriosa, demasiado fixe para ter amigos. Tenho a certeza de que os enganei a todos.

Havia um grande espaço vazio em meu redor na mesa, como se eu repelisse as pessoas. Mais ao fundo na mesa, a minha colega de quarto estava a bisbilhotar em voz alta com as amigas. As suas risadas estridentes arranhavam-me os ouvidos, mas mesmo assim eu ainda queria poder deslizar no banco e juntar-me a elas.

Porém, isso nunca aconteceria. Eu não me integrava no Colégio Heybuckle. Fizesse o que fizesse, ou por muito simpática que fosse, toda a gente me veria sempre como a miúda pobre, o caso de caridade.

De vez em quando, virava uma página do livro, para dar credibilidade à minha encenação da solitária misteriosa.

Quando ia a meio do peixe com batatas fritas, a Millicent Cordelia Calthrope-Newton-Rose (também, por incrível que pareça, um nome verdadeiro) fez a sua entrada triunfal, abrindo com força as portas de madeira do refeitório.

A Millie desfilou pelo espaço vazio no meio do refeitório, bamboleando as ancas como se estivesse numa passarela. Os caracóis loiros pendiam-lhe soltos sobre os ombros, e os seus profundos olhos azuis estreitaram-se enquanto ela examinava a multidão. A saia cinzenta do uniforme estava subida em volta da cintura para mostrar as pernas esbeltas, e a gravata balançava em volta do pescoço como um acessório de moda. Usava sempre o uniforme assim – nem os professores ousavam repreendê-la.

– Onde está o Hugh? – exigiu saber.

A sua voz foi ouvida em todo o refeitório, mas ninguém falou.

Eu estava do outro lado, o mais longe possível dela. Ainda assim, encolhi-me. O Hugh levantou-se de onde estava sentado, rodeado confortavelmente pelo seu grupo de amigos, a poucos metros da Millie. Tal como ela, era incrivelmente bonito, com cabelo loiro encaracolado e faces rosadas. Raramente sorria, o rosto esculpido como uma escultura de pedra, e tinha mais de um metro e oitenta, com ombros largos devido a todo o tempo que passava a exercitar-se. Eram ambos tão bonitos que poderiam ter acabado por ser um casal de modelos famoso. Sabem, se ele não a tivesse traído e depois tivesse sido morto.

– Estou aqui, querida – disse o Hugh, enfiando as mãos nos bolsos. O seu tom era enfadado. – O que se passa?

– O que se passa? – A voz da Millie saiu estrangulada. – Seu mentiroso, sacana hipócrita...

– Oh. Descobriste. – O Hugh tirou as mãos dos bolsos e alisou a gravata vermelha e dourada de Heybuckle. A sua expressão era indiferente, quase resignada, como se já esperasse que este dia chegaria. – Talvez não devêssemos falar sobre isso aqui...

– TRAÍSTE-ME – vociferou a Millie. – Seu canalha mentiroso, seu monte de esterco. ESTERCO. – Ela ficou cara a cara com ele, gritando a palavra uma e outra vez como um brinquedo de corda partido.

O Hugh encolheu os ombros, parecendo despreocupado ao debitar as palavras.

– Sinto que nos tornámos duas pessoas diferentes – disse.

Livro: "Este Livro Mata"

Autor:Ravena Guron

Editora: ASA

Data de Lançamento: 16 de janeiro de 2024

Preço: € 19,90

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Agia com tanta razoabilidade que metade do refeitório parecia concordar com ele, embora ele fosse o trapaceiro e a Millie tivesse razão. Ela pareceu sentir a mudança de humor a favor do Hugh, porque gritou, pegou num jarro de sumo de laranja e atirou-lhe com a bebida à cara. Uma parte do sumo caiu-lhe na camisa.

– Que diabo! – exclamou o Hugh, esfregando freneticamente os olhos. – Alguém me traga um pouco de água... ela acertou-me nos olhos... estão a arder...

O Eddy, amigo do Hugh, estendeu a mão para o jarro de água à frente dele, mas a Millie foi mais rápida e atirou com a água para cima do Hugh.

– Vocês querem saber com quem este merdoso me traiu? – Ela agitou o jarro vazio acima da cabeça.

Com um lenço húmido, o Hugh enxugou ineficazmente as manchas amarelas na sua camisa anteriormente branca e engomada, com as bochechas a ficarem vermelhas.

– Isto vai deixar nódoas – queixou-se. – Caramba, é nojento, vou ter de a deitar fora. – Parecia mais transtornado com a camisa suja do que com o facto de a namorada com quem andava há três anos estar a acabar a relação.

Os professores na mesa principal estavam paralisados, alguns com os garfos parados a meio caminho da boca. O pessoal da cozinha juntara-se perto dos passa-pratos, observando, atónito. Nenhum dos adultos deteria a Millie antes que ela contasse a verdade. Eu sabia o que estava por vir e não podia fazer nada a esse respeito.

A Millie estava a olhar em volta de novo, e eu desejei ainda mais ter amigas sentadas ao meu lado. Sozinha, era vulnerável, como uma gazela fraca prestes a ser apanhada por uma chita. Tentei encolher-me ainda mais, mas o olhar da Millie fixara-se em mim.

– Tu – bufou ela, encaminhando-se a passos pesados na minha direção.

Todos se viraram para nós. As minhas faces ficaram vermelhas. As pessoas começaram a sussurrar, o refeitório encheu -se com o barulho de folhas a balançar numa brisa suave.

Raios.

Nunca estive tão consciente da minha língua. Sempre se pressionara contra os meus dentes daquela maneira?

– Onde está ela? – A Millie agigantava -se sobre mim, o seu perfume com aroma de rosas (definitivamente de marca, sem dúvida incrivelmente caro) quase avassalador. – Onde está aquela vadiazinha que rouba namorados?

A minha mente ficou em branco e a garganta fechou-se-me. Eu não conseguia falar, mesmo que quisesse.

O Hugh ergueu os olhos da camisa arruinada.

– Deixa a Jade em paz – disse com um suspiro, e atirou o lenço de papel ensopado para cima da mesa. – É comigo que estás zangada.

Teria sido heroico se ele não continuasse a pingar sumo de laranja diluído. E não era eu quem me ia pôr a corrigi -lo diante de todos, mas o rapaz estava na maioria das minhas aulas desde que tínhamos treze anos, e três anos depois ainda não sabia o meu nome. Não é que Jess fosse assim tão difícil de memorizar.

A Millie atirou a cabeça para trás e soltou um grito gutural. O cabelo voou-lhe descontroladamente para cima do rosto, enquanto os olhos corriam por toda a parte.

– Escumalha! – gritou. – Escumalha!

Perguntei-me porque gostaria ela tanto da palavra escumalha e porque ainda não tinha usado um palavrão normal, mas descobri que estava apenas a começar, como um cantor a aquecer a voz para o grand finale de uma música. Começou a atirar todos os palavrões ao Hugh, a sua voz tornando-se cada vez mais rouca porque ele não reagia a nenhum dos insultos.

– Tu humilhaste-me...

– Tu é que te humilhaste a ti própria, querida – cortou o Hugh num tom de voz amável.

– Não te atrevas a chamar-me querida. Eu mato-te – gritou ela, o rímel borrado fazendo com que parecesse ter dois olhos negros. – Eu... mato... te.

E então matou-o.

Não, estou a brincar, não foi isso que aconteceu. Embora essa história fosse muito mais curta e muito menos stressante para mim, se tudo tivesse acontecido dessa maneira.

Em vez disso, a porta do refeitório abriu-se e a minha melhor amiga Clem entrou. Todos olharam para ela, inclusive a Millie, que soltou um grito tão alto que aposto que alguns cães a dez quilómetros de distância espetaram as orelhas e se puseram a ladrar.

A Clem parou, confusa.

E a Millie atacou.