Gusten junto à água

Podíamos começar aqui. Uma manhã de setembro de 2014.

Gusten Grippe dirige-se para a água. O lago Kallsjön e o bairro das moradias térreas: há muito tempo que não vinha cá sozinho, muito tempo mesmo. Deixou este bairro onde cresceu há vários anos, e tinha feito a promessa de nunca voltar. Nesse caso, o que está aqui a fazer agora, precisamente nesta manhã de setembro, no início de um outono que o vai obrigar a voltar para algo que deixou para trás há muito tempo? Resposta certa: nada. Nenhum pensamento, nenhum plano. De repente, aterrou aqui durante a sua volta de jogging matinal. Sim, de facto acontece de vez em quando que vem correr por aqui, neste bairro, pega no carro e conduz desde o subúrbio vizinho onde vive hoje em dia, luxuosamente instalado num apartamento dúplex de solteiro (Gusten desempenha as funções de agente imobiliário, diz-se dele que é um profissional do caraças, uma maneira carinhosa de dizer que é excelente profissional). Talvez seja um presságio, um sinal, algo que tem que ver com o sexto sentido. Ou então será só uma coincidência, uma ironia do destino.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

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Porém, este fora em tempos o mundo da criança Gusten: o bairro das moradias térreas, o lago Kallsjön e as praias que o rodeavam, as quintinhas à volta do lago, a pequena floresta, as tábuas soltas de madeira barata que permitiam circular sem se molhar os pés na água barrenta do lago, que não é funda, fria nem perigosa, como Gusten gostava de imaginar quando era pequeno – ele e o seu melhor amigo, Nathan. Quando ficavam aí juntos, de pé, vestindo bonés iguais. Fechavam os olhos e inventavam histórias excitantes de coisas que PODIAM ser verdadeiras, contos que nunca acabavam, que ficavam pendurados, apenas fios soltos. E quando abriam novamente os olhos, viam o que era: fantasias, ideias que não correspondiam em nada à realidade – não passavam de águas rasas, castanhas, de pouca profundidade, cor da terra. E as quintinhas à volta do lago – era a própria mãe de Gusten, Angela, que tinha por hábito dizer isto, mesmo aqui, sobre as tábuas de madeira soltas, que era onde ela e o filho faziam os seus passeios matinais, um pouco teatralmente, porque ela era assim. Ou continua a ser: como se viesse diretamente da ópera, viesse do palco mesmo antes de fazer parte do elenco. Se alguém hoje resolvesse escrever uma biografia sobre Angela Grippe, estes episódios da primeira infância de Gusten no bairro pertenceriam ao primeiro capítulo que se chamaria «Preparação» e trataria dos anos durante os quais a futura estrela de ópera, porventura apreciada por um número bastante reduzido de admiradores, que é como quem diz, nenhuma Callas que canta Verdi para um vasto público, com muita determinação trabalhava a voz com vista à sua futura estreia. Dava voltas e mais voltas ao lago, ela e o filho, que teria quatro, cinco, seis anos (Gusten agora tem vinte e seis). E de repente, naquele preciso lugar, Gusten dá-se conta de que ainda hoje lhe parece que isso acontecera ontem: «... aquilo era nosso, e aquilo e mais aquilo», Angela sobre as tábuas de madeira barata, falando alto, e o dedo indicador que aponta para aqui e acolá, em todas as direções, as bordas do lago cobertas por densos juncos impossíveis de penetrar.

«E aquilo...» Porque o que ela queria dizer era que, no passado, todos os terrenos em redor do lago haviam pertencido à sua família – algo que o próprio Gusten, quando ainda era criança, não tinha a certeza se era verdade ou se não passava de uma brincadeira, ou se ela, a mãe, Angela, que tinha muito jeito para brincadeiras, só escolhia esta maneira de dizer, porque de facto existiam poucas provas concretas nas circunstâncias factuais da infância de Gusten de que isto realmente tivesse sido propriedade da sua família. Gusten não se lembra de outra coisa a não ser que ele e a mãe viviam sozinhos no mesmo T2, no único edifício de vários pisos do centro do bairro de casas térreas – o único edifício alto que havia naquele sítio, que, como o nome indica, consistia em moradias térreas, o que era algo de especial. Quanto à família, Gusten nunca encontrou nem conviveu com nenhum parente. Mas, apesar disto, ele gosta da ideia e alinha no jogo. «Era tudo nosso!» A mãe, Angela, sobre a tábua, aponta, ri-se e ele também se ri, a situação repete-se muitas vezes porque isto é uma tradição que volta a ser encenada sempre neste mesmo local, uma abertura na densidade dos juncos com um rochedo que se pode subir e de onde se tem uma vista desimpedida sobre o lago e as praias. E mais, ele já sabe o que vem depois: que Angela vai apontar o dedo para o lado oposto do lago, aproximadamente entre Kråkskeppet, que é a casa de Häggert, e o ancoradouro comprido do lar feminino Grawell com os seus banhos (estes dois pontos sendo as únicas construções perto do lago visíveis a olho nu), e indicar um matagal de sabugueiros denso como uma selva... A seguir, baixa a voz para um sussurro, mas bastante audível, e isto também Gusten consegue, se lhe apetece, acompanhar como numa velha canção de embalar: «E aí, precisamente aí... encontrava-se o casebre onde morava o Encarregado dos estábulos com a mulher e a filha» – uma pausa teatral e uma piscadela de olho para Gusten: «A filha do Encarregado, Gusten. Muito inteligente, e o meu pai, que era um good-for-nothing, mas tinha bom coração, fez os possíveis para a ajudar...Quero dizer, enquanto havia dinheiro. Porque depois perdeu quase tudo ao jogo.

Ajudava-a desde sempre, na minha opinião. Pagava-lhe os estudos, e tudo o que ela pudesse precisar. Extremamente inteligente, ambiciosa, aquela filha, brilhante, mas, como se costuma dizer, of slender means.» E então, naquele preciso momento, sobre a «passerelle» ouve-se um farfalhar vindo dos arbustos, e passos e vozes que se aproximam, e Angela escuta, com ar contente. «A high achiever, em bom rigor, Gusten, e o seu nome era –

Annelise!», exclamam ambos ao mesmo tempo. «Annelise», como uma invocação; porque o mais engraçado é que ele quase sempre aparece precisamente naquele momento. Annelise Häggert, a melhor amiga da mãe: têm a mesma idade e conhecem-se há muitos anos. Encontram-se frente a frente sobre a tábua de madeira, ela com o filho, Nathan, atrás e depois seguem-se muitas exclamações de alegria, olá, olá, beijinhos para as mulheres, a piada sendo, claro, que Angela Grippe e Annelise Häggert são amicíssimas, antigas colegas da escola do bairro, apesar de as suas escolhas profissionais as terem levado em direções distintas, a vida tão, tão stressante, sobre a qual falam muitas vezes, nestes precisos termos. Mas naqueles tempos, na infância de Gusten, é Annelise que viaja imenso, faz palestras e apresentações em conferências e simpósios em todo o mundo – é advogada corporativa e economista e presidente de vários conselhos de administração, apesar de só ter vinte e sete anos, e acabou de ser nomeada professora catedrática numa das universidades mais prestigiadas do país. Angela, pelo contrário, é mais parada. Ganhara um importante concurso internacional de canto de música clássica, mas depois não acontecera grande coisa, algo que é considerado normal. Uma voz para cantar ópera, a fim de atingir o seu potencial máximo, precisa primeiro de amadurecer e crescer e praticar na calma longe dos palcos e das luzes dos holofotes; significa ficar em casa e treinar, treinar, e com a ajuda de grandes pedagogos ir-se preparando para o palco da ópera. E, com o tempo, Angela vai ganhar fama, principalmente como intérprete, numa tradição pós-modernista, de obras do duo de compositores experimentais Schuck & Gustafson. Precisamente agora, quer dizer AGORA, no outono de 2014, Angela Grippe faz sucesso no papel principal na estreia mundial de Dissections of the Dark Part III, numa das pequenas salas de ópera de Viena, onde este fim de semana o próprio Gusten acabou de assistir à representação – na companhia de uma amiga, Saga-Lill (a melhor amiga da sua ex-namorada Emmy Stranden. Ele desenvolveu com Saga-Lill uma relação sexual intermitente, não isenta de complicações – let’s face it – quando Emmy o deixara por outro quase três anos antes, facto que ele ainda não conseguira esquecer nem ultrapassar).

Mas voltemos à infância e às tábuas de madeira. Primeiro Annelise, seguida pelo filho Nathan. Nathan Häggert, o filho único de Annelise e Albinus «Abbe» Häggert. Têm a mesma idade e, possivelmente por causa da longa amizade das mães, ele e Gusten são os melhores amigos e colegas de escola durante os anos que passaram no bairro, até ao penúltimo ano do liceu, que acabou numa catástrofe.

Sim. Uma catástrofe. Sem exagero – nem há desculpas nem circunstâncias atenuantes. É um estrago total. Para sempre. E sem explicações possíveis: A culpa é dele. E de Nathan (principalmente).

«Violação em grupo na casa de Annelise Häggert.»
«Uma jovem foi violada durante horas no apartamento de rés do chão de um edifício de luxo num subúrbio elegante.»
«Os quatros perpetradores, os “meninos”, pertencem ao mesmo gangue e são todos colegas do liceu.»
«O instigador seria Nathan Häggert.»

Nathan. Mas agora, aqui ainda na infância, só o Pequeno Nathan, o retardatário. E, verdade seja dita, nesta altura ele ainda é de pequeno porte. «Alguém que cabe numa caixa de fósforos», dizem ambas as mães, sorrindo cheias de bonomia e gentileza, sobre as tábuas de madeira. Baixinho, pálido e calado.

Lá está ele, o eterno atrasado, com o boné quase a tapar-lhe os olhos (algo que vai fazer com que Gusten, inexplicavelmente, insista com a mãe assim que chegam a casa: «também quero um assim!» – e obtém-no).
Nathan vai crescer – e deixará de ser calado. Mas o seu silêncio, de uma maneira estranha, também aumentará.
Irá ficar ameaçador.
«Time.»
«Time» – Nathan dançando, dançando sozinho, sobre uma pista de dança enorme. Aquela música, Prince, sempre Prince, Nathan adora Prince –
olhos fechados
E abre os olhos no meio do dançar e apercebe-se da presença de Gusten – não há maneira de escapar – «GRIPPEE!» Nathan anos mais tarde, já adolescente, com o seu primeiro amor (que o abandona). Chama-se Sascha, nova na escola vinda do lar feminino de Grawell.
Nathan.
Não, I have X-ed you out of my world (pensa Gusten agora).
Não existe outra solução.

Por isso, presentemente sobre a tábua de madeira: ponto final. Os risos das mulheres desaparecem na memória, extinguem-se. Está tudo diferente, não subsiste nada.

A casa do outro lado da pequena baía e que mal se vê entre o arvoredo. A casa dos Häggert. Que silêncio. Kråkskeppet. Um ninho de corvos. Ou um barco. Agora quase em ruínas, abandonado: vidros partidos no primeiro andar. A relva alta, os arbustos, a vegetação invasora em toda a parte, o terreno à volta da casa cheio de entulho e lixo de toda a espécie. Como um monumento inútil (sobre o quê?) – A casa é um organismo, mexe-se na escuridão como um ninho de corvos (Kråkskeppet)... E simultaneamente continua a lembrar-se, aquela sensação voltou agora com muita força: quanto adorava aquela casa.

Como um ninho de corvos no crepúsculo – pensava, em criança, em jovem – estava fascinado por aquela arquitetura exclusiva, pelo seu estilo muito próprio. O luxo discreto, e ao mesmo tempo original, não parecia real se observado do outro lado da pequena baía, pois, daqui, a escassas centenas de metros talvez, visto a partir deste rochedo no meio dos juncos a que ele e Nathan tinham por hábito trepar, contemplar as bordas do lago –

E imaginar:

A casa é um organismo vivo (uma canção da infância)
Mexe-se na escuridão como um ninho de corvos ou um barco
Sótão, sala de estar e cave
O menino no sótão, O menino na cave
A casa que avança
até parece um barco
Dois meninos com bonés iguais
Que eram amigos (e as suas mães, Angela e Annelise, tão orgulhosas da amizade dos filhos).
Dois meninos de boné (ou «Os Comutáveis», uma das suas brincadeiras).
À mercê um do outro.

Nathan sobre o rochedo, observando a moradia que é a sua casa (uma lembrança de infância):

– Vou ser arquiteto quando for grande. E tu, Grippe?

Gusten hesita um momento, porque de repente sente-se estranhamente oco, vazio, aclara a garganta:

– Não sei.

E depois, mais tarde durante a sua juventude, nos últimos anos do liceu, acontece que Gusten também vai morar naquela casa durante longos períodos. A escolha é sua – não quer andar atrás da mãe de cidade em cidade, de palco em palco no estrangeiro, quando finalmente a carreira desta começa a ir de vento em popa. Quer ficar no bairro, acabar o liceu lá, conviver com os amigos, com tudo o que lhe é familiar.

– Mas claro que sim – diz a mãe de Nathan, Annelise. – Sem problema, és sempre bem-vindo em nossa casa, Gusten.

A casa é um organismo vivo
Sótão sala de estar e cave
Um ninho de corvos que se movimenta como um barco no crepúsculo

Ali, algures no meio da casa, na cozinha, por pouco tempo, naquele outono antes que tudo se estrague, ouve-se música. Música de ópera normal. Gusten e Annelise (quando estão em casa), apenas eles os dois, sentados à mesa da cozinha.

«A sua mão está tão fria, madame
Dois pobres boémios em Paris cantam.
Verdi. Só para o povo, como dizia às vezes a mãe.

– Mas, Gusten – diz Annelise na cozinha –, não deve ter piada cantar UNICAMENTE aquelas composições contemporâneas e experimentais: «Dissections of the Dark.»
(ri-se ligeiramente)
– INTERESSANTE, sim, esta música, mas sentes alguma coisa? Eu não.
Quero dizer: eu penso que a música NOS deve fazer sentir algo no coração, certo?
Aumenta o som.
«Tocou a minha mão, madame
E ele pega na sua mão –
enquanto da cave se ouve o bater duro de um contrabaixo – neste outono, o último, Nathan está no seu átrio, e às vezes também Sascha.

Mas que porra – memórias, fantasias –, tudo isto pertence ao passado (a vida continua, aquilo já esvoaçou).

Annelise morreu, foi um cancro agressivo que a levou, em agosto, há dois anos. No obituário, unicamente um nome por baixo das palavras: Amada. Saudades eternas, do teu filho Nathan.

«Sabes, Gusten, uma pessoa considera-se uma sobrevivente. Mas, em consequência disso, sentimo-nos como uma imitação de nós mesmos.»
A mãe ocupa o ecrã todo do computador, com turbante e grandes óculos de sol escuros (ela e Gusten comunicam via Skype o verão todo; ela está no lugar «Secreto», o tal sítio onde passa as férias nas raras vezes que regressa à terra natal. Agora tem uma vida nova, vive num outro local, tem uma casa, um cão e alguém com quem vive e a quem chama companheiro).

Mãe. A sua pele cheia de rugas, esticada, seca. Quantos anos terá? (Resposta certa, depois de pensar: a mesma idade de Annelise quando morreu, mais ou menos cinquenta e dois).

Nos últimos anos depois da catástrofe, Annelise e Nathan moravam sozinhos na casa, no barco dos corvos. O pai, Albinus «Abbe», abandonou a nave, desertou. A vida profissional de Annelise foi ao ar. «Ela caiu de muito alto», como Angela dizia nas raras vezes que falavam de Annelise, mas sem referir o que acontecera com o seu verdadeiro nome. Angela nunca admitira a violação em grupo, os abusos, os maus-tratos – só dizia (se fosse necessário) «o caso».

Todos aqueles anos que se seguiram, quando as relações entre ela e Annelise – e Nathan e Gusten e Gusten e Annelise foram à sua vida – se mantiveram cortadas (e Sascha Anckar, a vítima da violação, se foi abaixo devido à toxicodependência, algures nos Estados Unidos).

Pois sim, e pssst, outra coisa que precisa de ser esclarecida: aquilo do Responsável dos estábulos e da filha do Responsável dos estábulos que Angela foi repetindo durante os passeios sobre as tábuas de madeira quando Gusten era criança: efetivamente, fora apenas uma maneira de dizer. Nunca houvera nenhum Responsável dos estábulos com família, nunca houvera família nenhuma. Porque Annelise era casada com um Häggert (um dos nomes mais respeitados e antigos do bairro), e durante uma temporada considerada a mascote e menina querida do bairro por causa da sua carreira brilhante, algo que fazia reluzir todos os habitantes, aqueles anos em que realmente fora muito famosa, eleita a Mulher do Ano, a Mulher de Negócios do Ano, a Fredrika e Ulrika do Ano e por ai adiante – pois, sim, ela na realidade era uma órfã, que crescera no lar para meninas órfãs, Grawell, aquele lar que também estava aqui, na borda do lago. Por outras palavra, ela era uma daquelas miúdas do orfanato. Quando, anos mais tarde, Sascha morou ali durante o outono de 2007 e parte da primavera de 2008, até à catástrofe, o Grawell, como se chamava, já não era um orfanato mas um lar privado para meninas e raparigas com problemas e que por várias razões não podiam morar com as respetivas famílias, ou que não tinham onde ficar. Era o caso de Sascha, que tinha estado envolvida em várias atividades ilegais ligeiras, como furtos em lojas, toxicodependência, e por isso tinha sido obrigada a sair da casa onde morava com o pai, aquele monte de merda.

Nathan ficara na casa. Ainda lá vive. Não não não... não convivem, ele e Nathan cortaram relações, nunca mais o quer ver, mas Gusten mantém-no debaixo de olho, faz parte da sua profissão, como agente imobiliário que é. E chega a ter mais informações graças a outro amigo da infância que se chama Cosmo Brant. Ele insiste em ligar para Gusten, mandar mensagens, marcar encontros. E convencê-lo da necessidade de o acompanhar até ao lago Kallsjön (1).

– A casa chama-se Mau Carma, ou a vida desleixada, não é, Grippe? Ainda te lembras?

Gusten fica calado, mas claro que se lembra.

E Gusten... – continua Cosmo, o membro deste gangue de jovens brilhantes the-least-likely-to-succeed-guy do bairro e ao qual ambos haviam pertencido no passado (embora Cosmo tivesse sido um daqueles que só se pendurara) – Cosmo que agora é produtor de filmes. Ele talvez seja o mais bem-sucedido e conhecido de todos eles; isto começara já na universidade onde estudava cinema, e neste momento não só dirige como produz tanto documentários como longas-metragens, tem a sua própria empresa, vai a festivais, ganha prémios.

E o único dos amigos do bairro com quem Gusten ainda mantém o contacto – por razões desconhecidas (talvez porque Cosmo insiste em manter este contacto, mesmo depois de ter tido tanto êxito na vida profissional).

«... Às vezes parece que o passado nos INUNDA...»
A voz de Cosmo, que ele de propósito torna mais fina, a imitar Truman Capote (é a sua especialidade) num dos seus telefonemas. Ou durante um dos passeios nas ruas do bairro, ou até ao lago Kallsjön, algo que de facto acontece de vez em quando – porque Cosmo quer a toda força que Gusten o acompanhe até aqui, para poder desabafar e falar sobre aquilo que aconteceu.

Quem Matou Bambi?
créditos: Casa das Letras

Livro: "Quem Matou Bambi?"

Autor: Monika Fagerholm

Editora: Casa das Letras

Preço: €14,40

E parece que Cosmo muda de personalidade, já não é o homem de sucesso na sua profissão, com uma identidade e autoconfiança, mas volta a ser quem fora na altura (aquele de quem se fazia troça, fazia pouco, se ria). Ele era o tipo que, contra tudo e todos, já naquela altura (era muitas vezes intimidado e humilhado, sobretudo por Nathan) possuía uma energia e resiliência admiráveis, uma certa loucura e uma grande persistência; tinha centenas de ideias para negócios para fazer no «escritório» de casa na encosta dos Brant, onde todo o clã Brant tinha as suas casas, térreas ou não, na parte oeste do bairro (onde Cosmo dirigia um cineclube não oficial, a funcionar naquele «escritório» para meia dúzia de eleitos, onde mostrava filmes de qualidade ou de arte – tipo Haneke, Pasolini).

An Entrepreneur at Heart.
Um durão velhote no corpo de um miúdo.
Vestia-se «descontraidamente» – com fato e gravata de nó apertado de seda verdadeira (uma marca supercara).
An Entrepreneur at Heart. Mandou imprimir estas palavras nos cartões-de-visita que mandou fazer, 500 exemplares, numa fotocopiadora de supermercado. Algo que (para alguns) só dava razões para mais risotas e troça.
Ao mesmo tempo, porém, quando Gusten pensava em Cosmo, também pensava num aspirador.
Os olhos, os ouvidos abertos, quer absorver tudo –
Era uma vez uma careta, que se encostava aos vidros das janelas, às portas fechadas, às paredes, para ouvir, não deixar passar nada.
Alguém que absorviaabsorviaabsorvia – deixa ver o que podemos ganhar com isto. Cosmo, the-least-likely-to-succeed-guy, super-humilhado às escondidas na escola (e nos tempos livres, pelos colegas, sobretudo Nathan).
Stefan-o-cu até mudar de nome. Era Nathan quem lhe chamava assim antes de lhe partir a cara com tanta força que acabou no hospital.
E quando Cosmo saiu do hospital tinha mudado de nome.
Para: Cosmo «fuckin» Brant («soa quase cosmológico, Grippe, não achas?»)

Mas agora, esta manhã de setembro, de novo.

A casa. Que mal se vê entre as árvores – calma como o lago, como a sensação intemporal que reina aqui em baixo. Kråkskeppet. As janelas escuras, nada se movimenta sobre a propriedade. O abandono – é fácil imaginar –
nota-se em toda a parte
Bad Karma
(a vida desleixada) –
«quase como uma violação... tão estragado. Não achas, Grippe?»
«Pensar que Nathan ainda vive aí, no meio desta merda toda» (diz Cosmo Brant).
«E às vezes, Grippe, é como se tudo me inundasse. O passado todo, pá...
Então. O que vamos fazer, Grippe?»
«Quê?»
«Grippe, achas mesmo que vamos deixar aquele velho urso continuar adormecido?»
«Que queres dizer?»
«O filme...podia chamar-se “Bad Karma”, por exemplo. Ou “A Rapariga na Cave”, um conceito metafórico, claro. E podia falar sobre, pois... estás a ver, Grippe?»
«O quê?»
«Não, agora já sei», continua Cosmo. «“Quem matou Bambi?” Aquele veado. A virgem perfeita... Who killed Bambi, uma velha música dos Pistols, estou a lembrar-me.»
«Não estás a ver?»
«Ver o quê?»
«O SILÊNCIO. Está tão calmo outra vez, a superfície tão lisa –»
E
Plop
Cosmo lança uma pedra
E depois plop plop
Por um curto instante, a superfície é estilhaçada. Depois o silêncio volta.
«Mas... Nathan?»
«Nathan uma porra. Achas que tenho medo dele?»
De repente, Gusten nota o seu coração aos saltos, a adrenalina a aumentar. E sente cada vez com mais força: não, realmente, não tenho nada a fazer aqui.
E Gusten Grippe, 26, um adulto por estes dias, um agente imobiliário de sucesso, etc. – dá meia-volta, desata a correr.
O telefone dá sinal. Uma sms. Obrigada por um fim de semana maravilhoso! Saga-Lill.
E, por um curto momento, a recordação de uma noite travessa: doçura, escuridão, corpo, proximidade – eles dão-se bem na cama, ele e Saga-Lill, mas –
de outra maneira não
não de dia, não aqui.
Apaga a mensagem sem responder.
A inércia é quebrada. Gusten continua a correr na manhã.

Notas:

1 Lago Frio. (N. da T.)