Outrora local de abrigo para as embarcações que se quisessem proteger das intempéries de que o Oceano Atlântico é pródigo, atualmente o Porto Judeu tem outras razões para ser visitado que não seja escapar com vida à raiva do mar. No centro da vila, plantado à beira da Estrada Nacional 1-2A, um restaurante atrai gentes de todos os lados, seduzindo não só terceirenses, como até açorianos e outros portugueses de todas as proveniências.

De fora, a fachada anuncia um local despretensioso, mantendo uma matriz mais popular para petiscar e beber umas cervejas. Contudo, é seguindo o olfato que se chega à grande sala de refeições do Boca Negra e se descobre porque é que esta é uma famosa casa de culto ao peixe na ilha Terceira.

No local, são vários os grupos que partem o pão à mesa, em gargalhadas e outras tantas garfadas. Porém, por entre as vozes da sala, há uma que se destaca. Para quem a conhece, o seu timbre é inconfundível, misto de atrevimento e carisma afinados pela experiência de há muitos anos servir. A sua linguagem corre desbragada, como o vinho que se jorra nos copos, e chega a ser um bocadinho picante, com os molhos que fumegam dos pratos. É a de José Leal Soares, dono e cara do Boca Negra.

Quem ali entra, precisa de ter jogo de cintura — é o cliente que se molda a José e não o contrário, com o cozinheiro de 68 anos a tratar os comensais com familiaridade e não se coibindo de condimentar as conversas com um ou dois palavrões. Pela sua boca escapam também “yeahs” e “babys”, sinal de uma vida que foi passada em parte nos Estados Unidos da América a trabalhar.

“Estou aqui desde das sete da manhã até às seis da tarde, sempre a trabalhar peixe", conta, não com cansaço ou mágoa, mas com satisfação. É este o horário que tem regido a sua vida desde que abriu o Boca Negra em 1986, estando a casa prestes a fazer 33 anos (o aniversário é a 3 de agosto).

Ao longo de três décadas, José tem colocado a vila de Porto Judeu no mapa à conta das suas famosas alcatras de peixe. Nas travessas do Boca Negra saem iguarias típicas dos Açores, do do polvo guisado às lapas, passando pelas afamadas cracas, mas é a receita de guisado à moda da ilha Terceira que fez desta casa presença assídua nos guias gastronómicos. 

A sua variante de peixe (também há alcatra de carnes como porco ou galinha) usa várias espécies distintas, mas, no caso do Boca Negra, é com garoupa, congro e o dito espécime que dá nome à casa que se faz magia. Levando uma preparação que demora entre 30 a 40 minutos, as carnes de mar são colocadas numa caçoila no forno e cozinham perto de duas horas num molho tão pecaminoso de rico, cuja fórmula está guardada a sete chaves.

"Todos os dias faço alcatras de peixe e já não as provo há mais de 30 anos", diz com algum orgulho, tendo aperfeiçoado a sua fórmula tal maneira que, segundo José, "é certinho, não falha nada, a mão já tá feita para aquilo". A declaração pode parecer cair numa vanglória excessiva ou até num desleixo, mas a verdade é que quem lá vai, com mais ou menos frequência, atesta que a alcatra sai consistentemente igual. Ou seja, sempre boa. A única alteração que fez à receita, frisa, foi criar uma versão do prato sem espinhas, algo que diz ter sido uma invenção sua para poder servir a alcatra “aos filhos dos imigrantes”. No entanto, diz que atualmente “os grandes já comem assim também".

créditos: Rita Sousa Vieira / MadreMedia

A sua mestria da alcatra surgiu da necessidade, tendo José aprendido a reconhecer os sabores deste prato regional desde cedo num cenário de dificuldades económicas. “Antigamente não se podia comer carne, era só uma vez por semana, mas comia-se peixe todos os dias", lembra o cozinheiro, recordando também que durante a sua juventude era comum as famílias serem numerosas, sendo a alcatra especialmente importante porque “ se comia com pão, para encher a barriga".

A vida de José foi marcada por vários desafios, a começar pela sua chamada para combater durante a Guerra Colonial, onde diz ter sido feito prisioneiro de guerra em Moçambique. Desses tempos, pouco mais adianta, deixando apenas escapar uma nota mordaz: “ainda estou a receber a minha reforma de prisioneiro”, comenta, num sorriso. Retornado no fim do conflito, em 1975, passou apenas três meses nos Açores para se recompor e seguiu para os EUA. O destino foi Sacramento, cidade do estado da Califórnia, e a viagem foi feita com o objetivo já estabelecido de “juntar uns dólares com ideias de voltar”.

Lá, passaria dez anos a trabalhar na agricultura, ocupando-se de tarefas como ordenhar vacas ou a lavoura. “Trabalhava muito, 10, 12 horas por dia. Era tenso”, relata, concedendo, ainda assim, que ao menos tinha a vantagem de trabalhar com um alemão que falava português e de, enfim, estar numa zona que, por proximidade ao México, tinha muita gente que falava espanhol, o que fez da experiência menos difícil pela proximidade linguística.

Uma década de labuta depois, regressaria em definitivo para os Açores em ‘85 com o intuito de ajudar os sogros, ambos diabéticos. “Viemos à sorte”, admite José, que com o dinheiro que tinha acumulado nos EUA, acabaria no ano seguinte por comprar o prédio onde abriu o Boca Negra, dando início a um novo capítulo da sua vida que ainda segue em aberto.

Com o restaurante prestes a fazer 33 anos, José não tem pejo em dizer que tem uma vida “espetacular”. “Eu adoro trabalhar neste ramo, é a minha alegria. Ir para a cozinha, fazer as alcatras e depois vir servir o cliente", refere. E se o segredo do molho não pode ser revelado, o cozinheiro diz que o do negócio é simples. Passa pela velha máxima de “trabalhar com peixe bom”, diz o cozinheiro, para logo a seguir rematar “e tratar bem o cliente também (risos), vá, alguns..."

A boca pode ser negra, mas o coração é verde

Apesar de ser pelo peixe que os bons garfos vêm ao restaurante de José, esta não é apenas uma casa de culto à gastronomia. No Boca Negra, venera-se também uma outra entidade, mas desportiva, de seu nome Sporting Clube de Portugal.

José diz que a sua afiliação ao clube surgiu em pequeno, apesar de apenas ocorrer por intermediação de outro emblema que trajava igual. “O meu irmão jogava no [Sport Clube] Lusitânia, era uma equipa verde. Associámos desde sempre ao Sporting”, conta. A ligação, aliás, não deixa margem para dúvidas, já que o Lusitânia na verdade consta como a Delegação nº 14 do clube de Alvalade. Para José, este facto não é surpreendente, dizendo que o coração de 80% da população da Terceira é como a vegetação que cobre a ilha.  “É tudo verde, aqui”, argumenta.

Na cozinha do Boca Negra há um altar ao Sporting créditos: Rita Sousa Vieira / MadreMedia

Desde então que o seu amor pelo Sporting cresceu, a ponto do próprio se tornar afamado enquanto adepto verde-e-branco, característica essa que chega mesmo a ser referenciada em guias gastronómicos e críticas ao restaurante. Tanto mais é que, segundo José, a história do Boca Negra entrelaça-se com a do Sporting porque foi no ano [1986] em que o restaurante abriu que os leões bateram o Benfica num famoso jogo que acabou 7-1.

“Gosto mais [do Sporting] do que da minha mulher”, diz na brincadeira. No entanto, sabe que a sua afeição tem um preço e que este às vezes resulta em noites de inquietação. "Às vezes levanto-me às quatro da manhã para fazer alcatras, não consigo dormir quando Sporting perde, então quando é com o Benfica...", admite, lembrando que esse hábito madrugador também o acompanhou nos EUA, quando “ordenhava as vacas depressa para ouvir os relatos às 6 da manhã". “É um clube em que sofre-se muito, não tenham dúvidas", diz num tom agridoce, "mas somos felizes".

Mas a paixão pelo futebol José não a viveu apenas fora dos relvados, tendo, nas suas palavras, “passado ao lado” de uma carreira a jogar como médio esquerdo. Como tantos outros da sua geração, José iniciou-se a jogar “descalço na rua" — tendo depois passado para as botas, "cheias de pregos" —, como uma forma de uma distração da labuta diária. "Jogávamos todos os dias. Saíamos da escola, trabalhávamos nas terras ou a vender peixe e depois íamos para o futebol", recorda.

Das ruas foi jogar para o seu clube local, os Leões de Porto Judeu, onde chegou a ser campeão regional, mas a chamada para Moçambique interrompeu-lhe uma potencial carreira. Contudo, o bichinho manteve-se e já do outro lado do Atlântico manteve a redondinha nos pés, ao jogar num clube de Sacramento. Segundo José, apesar de considerar o nível de jogo nos EUA “muito fraco”, ainda chegou a ser sondado para integrar os San José Earthquakes — não a equipa que neste momento se encontra na primeira divisão do país, a Major League Soccer, mas sim uma versão prévia onde António Simões e um George Best em declínio chegaram a jogar. “Fui convidado para lá jogar, não tinha era tempo", adianta.

Plenamente dedicado a uma vida na restauração de volta aos Açores, José pendurou as botas mas manteve o fervor pelo futebol. Pelas portas do seu restaurante já passaram várias figuras do desporto, lembrando-se de servir personalidades que vão desde Pinto da Costa, atual presidente do Futebol Clube do Porto, até ao ex-dirigente leonino José de Sousa Cintra. O cozinheiro, porém, não descansa enquanto não servir uma pessoa em específico, cidadão que, como ele, tem origem insular e percurso ligado ao Sporting. “Falta me servir o Cristiano Ronaldo”, diz um sorriso de orelha a orelha.

[Notícia corrigida às 13:28]

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