Quando o grito chegou aos ouvidos de Stephen Dalton, ele e o noivo estavam há vários minutos em frente do altar, à espera da chegada da noiva.
Laurence não parecia minimamente perturbado com o atraso, passando o tempo a fazer alegre conversa de circunstância com o celebrante. Como era possível estar tão calmo? Stephen era apenas o padrinho e, contudo, aquele desvio do plano estava a deixá-lo ainda mais agitado do que nos minutos que precederam o seu próprio casamento.
Mas era só Laurence a ser Laurence. Nada lhe causara susto algum em todos os anos em que já se conheciam. Com uma centelha de ressentimento, Stephen pôs-se a imaginar que deveria ser esse o resultado de passar a vida inteira a caminhar sobre uma rede de segurança tecida de malha de ouro puro.
O sol caía sobre eles a pique. Castello Fiore já era, por si só, ligeiramente elevado, com um breve trilho que subia do pontão até aos portões. Contudo, uma vez lá dentro, fora ainda necessário subir um lanço íngreme de ancestrais escadas para se alcançar o terraço em que a cerimónia teria lugar. A vista que então se lhes oferecia era de cortar a respiração. A pouco mais de quilómetro e meio, na margem mais próxima, Stephen discernia telhados de terracota e edifícios em tons de pastel. Mais atrás, as montanhas erguiam-se para os céus, criando a impressão de que formavam uma bacia e, quanto à água... No voo para Verona, ele lera que o lago de Garda tinha cinquenta e cinco quilómetros de cima a baixo. Quando o víamos com os próprios olhos, parecia estender-se eternamente, no mais luminoso tom de azul, até que, algures no horizonte, a água e o céu confundiam-se simplesmente num só.
Na frente do terraço, fora montada uma pequena pérgula que lançava a sua sombra sobre uma mesa coberta por uma limpíssima toalha branca, onde havia ainda bancos para a noiva, o noivo e o celebrante. Era sob essa mesma pérgula que estavam agora Stephen e Laurence. Os convidados não haviam sido bafejados pela mesma sorte, as suas cadeiras estavam à mercê do calor do meio-dia. Algumas pessoas no lado inglês estavam a transitar para uma preocupante tonalidade de vermelho, ao passo que até os italianos do outro lado começavam a debater-se com dificuldades. A luz cintilava nos aros dos óculos de marca, pérolas de suor delineavam-lhes a linha do cabelo.
Stephen olhou em volta, registando a pequena comunidade atrás de si, e os seus olhos encontraram os de Abigail. Fez um pequeno sorriso à mulher, que não lho retribuiu. Não a podia censurar. Só estava aliviado por ter conseguido convencê-la a não apanhar o avião de volta para casa.
Voltando-se novamente para a frente, olhou para o outro lado do lago. O quarteto de cordas tocava, mas não havia hipótese nenhuma de a música conseguir distrair os convidados do calor cada vez mais insuportável. Laurence exibia um sorriso rasgado e Stephen percebeu que, no último minuto ou dois, não estava a ouvir nada. Obrigou-se a sorrir e olhou para o relógio.
Dez minutos atrasada.
Que raio estava Eva a fazer? Não era propriamente possível perder-se a caminho; ela e as damas de honor passaram a manhã toda na ilha. Mudou de ideias? Apavorou-se?
O mais provável era estar com a fotógrafa. Afinal de contas, ia aparecer na capa de uma revista. Ela não hesitaria um segundo em deixá-los todos à espera naquele calor se necessário fosse para tirar a fotografia perfeita antes de subir ao altar.
Sentiu um súbito assomo de amargura, desejando mais fervorosamente do que nunca que Laurence e Eva nunca se tivessem conhecido. Mesmo quando andavam na escola, parecia sempre que o que eles tinham eram mais uma parceria, e não tanto uma amizade. Stephen fazia o trabalho todo, enquanto Laurence ficava com os louros. Não era a situação perfeita, mas para Stephen, que só pudera frequentar Rushworth com uma bolsa de estudos pensada para fazer a escola parecer ligeiramente menos elitista, funcionara sempre. Naqueles primeiros tempos, ter Laurence a engraçar assim com ele fora como uma bênção divina. Mais ainda quando, depois da universidade, Laurence o empurrara logo diretamente para o negócio da gestão de fundos especulativos dos Heywood.
Só quando Eva entrou em cena tudo começou a correr mal. Quando Laurence, para lhe agradar, começara a dar rédea solta a alguns dos seus mais obscuros impulsos.
Uma vez mais, Stephen olhou em volta. Ao fazê-lo, detetou a fotógrafa. Estava parada no cimo dos degraus que conduziam ao terraço. À espera.
Stephen franziu o sobrolho. Ou seja, não estava com Eva. E se ela não estava com Eva...
Começou a ser impossível ignorar o seu nervosismo. Alguma coisa não batia certo. Não era capaz de dizer o quê, mas tinha a certeza de que alguma coisa não estava bem.
Uma brisa ondulou pelo terraço, suscitando sonoros suspiros dos convidados. Foi então que lhes chegou o som. Era distante. Mas, sem dúvida nenhuma, vinha da ilha. De algures dentro do castelo.
Harper Bale estava sentada sozinha numa das últimas filas quando ouviu o grito.
Devia estar a acompanhar a fotógrafa, a assegurar que tinha tudo de que precisava. Era essa, afinal, a razão para estar ali. Não era convidada. Jamais ocorreria a Eva fazer um tal convite à sua reles agente. Como sempre, a sua função ali era pouco mais do que a de uma assistente.
Olhou para o outro lado do terraço, observando o corredor central polvilhado de pétalas de rosa, os padrinhos do noivo nos seus fatos de linho, a vista sobre o lago. Harper devia estar encantada. As fotografias seriam, sem dúvida, deslumbrantes. Contudo, naquele momento, tinha preocupações mais importantes do que um artigo de revista. Depois de tudo o que investira em Eva Bianchi... Tanto trabalho. Tanto stresse. Tanto tempo. Quando a agência quis despedir Eva, foi Harper quem lutou para que a mantivessem. Numa altura em que nem uma só marca queria estar associada a ela, foi Harper quem trabalhou noite e dia para resgatar a sua reputação. Quando Eva, com um devastador golpe de ingenuidade, conduzira a sua carreira até à beira da ruína, fora Harper quem, sozinha, a puxara de volta do limiar do abismo.
Oxalá nunca se tivesse dado a esse trabalho. É que, agora, ela sabia exatamente qual o nível de gratidão de Eva pelo seu esforço. Harper sempre compreendera que Eva não dava valor a tudo o que fazia por ela. Suspeitara até, uma vez por outra, que Eva não estava inteiramente ciente disso. Mas nunca, em momento algum, pensou que Eva estivesse tão alheada a ponto de correr o risco de ser despedida. Inspirou fundo, fazendo um grande esforço para evitar entrar em pânico.
Cometera um erro. Explodira de fúria. O melhor que tinha agora a fazer era passar-se por tonta. Esperar até que outra pessoa descobrisse o que acontecera e depois dar tudo para parecer que não sabia de nada. E se, de alguma forma, a culpa recaísse sobre ela — se fosse descoberta —, teria de suplicar misericórdia. Eva traíra-a. Desvalorizara-a e desrespeitara-a durante tanto, tanto tempo. Como era possível alguém a censurar por um momentâneo erro de discernimento?
Harper abanou-se usando como leque um programa da cerimónia, completamente impreparada para o calor basicamente implacável de meados de julho. Olhou com inveja lá para a frente, onde Laurence esperava sob a pérgula com o padrinho, em alegre conversa com o celebrante. Por momentos, chegou mesmo a invejar o chapéu de aba larga da mãe dele. Mais um pouco e mais valia ter posto um guarda-sol na cabeça.
Esbugalhando os olhos na direção do lago, Harper procurou os barcos que os haviam trazido para a ilha. Sabia que era em vão. A outra margem ficava a pouco menos de uma milha, não mais de quinze minutos. Os barcos já teriam chegado de volta ao porto há pelo menos meia hora. Não os voltaria a ver antes da meia-noite, quando terminaria o copo de água e viriam para levar toda a gente de volta.
Praguejou entre dentes. Não havia volta a dar. Estava ali presa.
Tirou o telemóvel para fora e consultou as horas. Eva estava quase dez minutos atrasada. Harper torceu o nariz. Não era propriamente surpresa; um dia, Eva havia de chegar atrasada ao seu próprio funeral. Mas agora outra pessoa teria de lidar com esse problema. Ela garantiria o bem-estar da fotógrafa e nada mais. Os seus dias de andar atrás de Eva Bianchi tinham chegado ao fim.
Contudo, quando o grito ressoou, circulando pelo terraço numa súbita brisa de ar fresco, abriu os olhos num ápice. Os músicos pararam de tocar e todos os pensamentos relaciona- dos com a sessão fotográfica se dissiparam da mente de Harper. Até do calor se esqueceu, o sangue gelou-se-lhe nas veias.
Vito Bianchi já estava em pânico há vários minutos.
— Encontraram-na? — exigiu saber. — Onde é que ela está?
— Não tarda nada aparece, signore — fora a resposta da organizadora do casamento. — É uma ilha pequena. Não há muitos sítios aonde a sua filha pudesse ter ido, e as três damas de honor estão à procura dela. Tenho a certeza de que vamos poder avançar daqui a muito pouco.
— Descontrai, amore — disse-lhe Paola. — Sabes como esta revista é importante para ela. Devem estar a tirar-lhe mais uma fotografia.
Vito obrigou-se a sorrir. Para a mulher, era fácil estar calma. Ela não fazia ideia da discussão que ele tivera com Eva nessa manhã. Do mesmo modo que não fazia ideia de que dois criminosos haviam entrado na ilha pela calada, misturados com o resto dos convidados.
Mas pelo menos isso já estava tratado. Fizera exatamente o que eles lhe pediram; terá sido possivelmente a pior coisa que alguma vez tivera de fazer. Mas se eles cumprissem o prometido, deixá-lo-iam finalmente em paz. O assédio constante. As ameaças à família. Tudo aquilo ia finalmente parar.
Foi até à janela e abriu as portadas. A música do terraço vogou até si, enchendo o pátio lá em baixo.
— Fottuto inferno — sussurrou. — Onde é que ela está?
— Vito... — Paola pousou uma mão no seu ombro. — Está só alguns minutos atrasada. Nada mais.
Ele encarou-a de frente, mas não conseguiu dizer nada. Durante um ano inteiro, fora tão bem-sucedido a garantir que ela não sabia de nada do sarilho em que estavam metidos. Estrebuchara e suplicara, fez tudo — mesmo tudo — o que pôde para impedir que os seus credores lhe batessem à porta.
— Tens razão — disse. — É claro.
Paola pegou-lhe nas mãos e começou a oscilar ao som distante do quarteto de cordas.
— A Eva casa-se hoje — disse ela, sorrindo-lhe. — A nossa filha mais velha. Daqui a uma série de anos, vamos recordar este dia como um dos mais felizes das nossas vidas.
Vito oscilou com ela, deixando que o guiasse. Um dos dias mais felizes das suas vidas... Perguntou-se se Eva ainda acharia isso, depois de, naquela manhã, ter ficado a saber a verdade. Depois de saber o que ele fizera.
Inspirou fundo. Não era preciso nada disto. O tormento chegara ao fim. A qualquer momento, Eva chegaria e ia levá-la ao altar. Em seguida, depois do casamento, conversariam. Ele explicaria tudo — o perigo de que os poupara — e ela perdoar-lhe-ia. Compreenderia.
Puxou Paola um pouco mais para si, assumindo as rédeas da dança enquanto o quarteto continuava a tocar.
— A Eva casa-se hoje — repetiu. — É um dos dias mais felizes das nossas vidas.
Foi então que outro som ecoou, derramando-se pelas portadas abertas e afogando instantaneamente a música.
Sentindo o pânico de volta, Vito correu para a janela, mas no pátio não havia nada que se visse; devia ter vindo de um outro lugar qualquer na ilha. Não que ele precisasse de ver. Sabia exatamente o que ouvira.
Um grito. Um inequívoco som de terror.
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