
Dia 17, corveta Bartolomeu Dias, madrugada
Estefânia inclinou‐se da amurada, procurando que os salpicos do mar lhe molhassem a cara e a aliviassem do insuportável enjoo que sentia desde que deixara o porto de Plymouth, em Inglaterra. Sobressaltou‐se quando sentiu a mão do seu irmão Leopold, fingindo puxá‐la para trás:
– Vossa Alteza, cuidado. Não queremos finais trágicos para uma história de amor tão empolgante como a tua! E que ainda mal começou – troçou.
Estefânia sorriu:
– Invejoso.
O príncipe herdeiro de Hohenzollern‐Sigmaringen deu uma gargalhada, passando a mão na madeixa de cabelo dourado que lhe caía sobre a cara:
– Chama‐me antes ciumento. Há um ano que não faço outra coisa senão ouvir‐te falar de Pedro! Oiço as cartas que te manda, escuto as que tu lhe escreves, como ainda me disponho a... Ai, como é que dizes? Ah, já sei, a «encontrar a bondade e a inteligência nos seus olhos».
Estefânia encolheu os ombros, subitamente apreensiva.
– Na verdade nunca o vi, posso enganar‐me. Leo, achas que Pedro me vai desiludir? Sabes alguma coisa que eu não saiba?
Foi a vez de Leopold se debruçar sobre a amurada, fitando pela primeira vez a serra de Sintra que se erguia ao longe. Com binóculos devia ser possível ver o famoso Palácio da Pena de que D. Fernando, o rei‐pai, tanto se orgulhava, inspirado nos castelos da sua terra natal. Ao que constava, D. Fernando levava uma vida... de artista, que escandalizava o puritanismo de Pedro, mas o puritanismo de Pedro também fazia levantar algumas sobrancelhas na corte.
A resposta demorava. Leopold endireitou‐se de novo e sorriu‐lhe com confiança:
– Stephanie, o rei não podia ter sido mais franco quando te descreveu, tintim por tintim, todos os seus defeitos. Confesso‐te que seria incapaz de me expor daquela forma com uma completa estranha...
– Com uma noiva. Só me escreveu dessa forma quando já está‐ vamos noivos – protestou Estefânia.
Quase que sabia essa preciosa carta de cor e salteado. Aquela a que Leopold se referia, porque havia outras, mas nenhuma tão profunda, tão corajosa. Nela, Pedro acusava os mestres de terem feito dele um sabichão, mais papagaio do que filósofo, cobrindo‐o de elogios que até uma criança entendia que não passavam de lisonja, contagiando‐o com a sua altivez e arrogância, mas também de uma melancolia mais própria de adultos do que de um pequeno príncipe. Admitia que o mal se colara como uma segunda pele e que só o trabalho o conseguia libertar daquela angústia, num esforço intelectual sem fim que o deixava exaurido. Contava‐lhe que até a sua querida e adorada mãe, a rainha D. Maria II, profetizara que viria a ser um atormentado, e não se enganara, mas prometia que o casa‐ mento o ia salvar, que ela, Estefânia, ia transformá‐lo num homem diferente.
Estremeceu com um arrepio de frio e de medo. Leopold passou‐lhe um braço pelos ombros, sussurrando‐lhe ao ouvido:
– Sou um irmão mais velho ciumento, já te disse. Não ouviste os elogios que lhe fizeram o príncipe Alberto e a rainha Vitória de Inglaterra?
– Os casamenteiros – sorriu. Estava‐lhes muito grata, sem a sua intervenção provavelmente Pedro nunca se teria lembrado dela, sem a sua persistência as hesitações e demoras do rei de Portugal teriam assustado o pai, levando o príncipe de Hohenzollern a optar por outro candidato. – Mas não deixo de ser uma segunda escolha – lamentou, meio a sério, meio a brincar.
Leopold fez uma careta.
– Pedro fez bem em livrar‐se de Carlota da Bélgica!
– Dizes isso porque és meu irmão. Carlota é linda, muito mais bonita do que eu, aquele cabelo sedoso, as pestanas longas e a boca tão sensual. Reparaste como ninguém conseguia tirar os olhos dela no jantar que o rei da Bélgica me ofereceu? Havia quem olhasse descaradamente para mim e para ela, comparando‐nos, seguros de que ela teria sido a melhor escolha para Pedro.
Leopold deu uma gargalhada:
– Ai as mulheres! E eu a pensar que estavas tão exausta pelo casamento em Berlim, pelas festas em Düsseldorf, a longa viagem de comboio e os cumprimentos a todos os bichos‐caretas, e afinal...
– Estava exausta, mas ainda bem capaz de tomar nota do essencial – reagiu a irmã.
– Do essencial? Uma perca de tempo, digo‐te eu, porque sabes perfeitamente que Pedro nunca lhe achou graça nenhuma das duas vezes que estiveram juntos e foi até demasiado brusco com ela. Deve agradecer aos céus que Carlota preferisse o cabeça de vento do arquiduque da Áustria.
– Espero que sejam felizes. Maximiliano dizia tanto mal dela pelas costas...
– Lembras‐te dele nas nossas férias em Weinburg, vaidoso, mal‐criado, mas inteligente e com graça. Custam‐lhe as políticas absolutistas do imperador Franz Joseph e não se conforma a ser um filho segundo. A primeira é uma qualidade, a segunda um perigoso defeito.
– Dizem que esteve envolvido numa conspiração para lhe roubar o trono, aliando‐se secretamente aos franceses – comentou a rainha, a quem a política fascinava.
O autoproclamado Napoleão III, sobrinho adorado da avó Stephanie Napoléon, grã‐duquesa de Baden, era uma serpente, capaz de levar qualquer um a comer a maçã. Estefânia secretamente detestava‐o.
– A nossa mãe garante que Maximiliano continua apaixonado pela pobre Maria Amélia de Bragança, a tia de Pedro e única filha da imperatriz D. Amélia e de D. Pedro IV, que morreu há uns anos no Funchal. Conheceram‐se em crianças, adoravam‐se, visitou‐a mais tarde em Lisboa, estiveram quase noivos. Max ficou destroçado e começou a beber demais, e... tudo o resto. Reparei que ainda usa o anel feito de uma madeixa do cabelo dela.
– Ui, Carlota, com aquele feitiozinho, ainda lhe corta o dedo! Estefânia riu‐se:
– Tiro‐lhe o chapéu porque não deve ter sido fácil recusar Pedro, um pretendente imposto simultaneamente pelo clã Saxe-Coburgo, o pai, a tia Vitória, o príncipe Alberto e Fernando de Portugal...
Acrescentou, preocupada:
– Sabemos que não fui uma escolha do rei D. Fernando, que apostava noutra mulher para o filho. Será que já se conformou?
O príncipe fez um gesto displicente:
– Vais ter de perguntar ao teu marido.
Estefânia ficou calada, observando a linha de costa, pesponteada com fortalezas e fortes que defendiam a entrada no Tejo, era tudo tão bonito e vinha tão apaixonada e com tanta vontade de servir os portugueses, mas o próprio Pedro avisara‐a de que não seria fácil.
– Leopold, o rei pediu desculpa ao nosso pai por me arrancar de uma família feliz e unida para me trazer para um exílio, para uma casa onde, desde a morte de D. Maria, falta uma mãe, uma rainha...
O irmão, provocador, espicaçou‐a:
– Pergunta à nossa prima Sissi se preferia a corte da Áustria com ou sem sogra?
Estefânia não conteve um sorriso, a fama do temperamento implacável e dominador da mãe do imperador da Áustria corria a Europa.
– Que Deus nos perdoe estas conversas.
– A ti, querida irmã, Deus perdoa‐te tudo! Podias pecar o resto da vida, que estes quase 21 anos já te garantiram o céu, mas não vais aproveitar o crédito, já sei! Daqui a um mês, os portugueses estão a teus pés, como já estão rendidos ao rei.
Era esse o desafio que aceitara a 29 de abril quando casara na Catedral de Santa Edviges, em Berlim, jurando amar Pedro e servir Portugal até que a morte os separasse.
Leopold reparou que, na outra ponta do convés, o já idoso duque da Terceira, o grande herói das guerras liberais, mandatado pelo rei para assistir ao casamento em Berlim e acompanhar a nova rainha a Portugal, conversava animadamente com Louis Kratz, o secretário particular de Estefânia, o discreto mestre Kratz, disposto a dar a vida na defesa dos interesses do príncipe de Hohenzollern‐Sigmaringen, que servia desde muito novo.
Estefânia seguiu o olhar do irmão e acenou o seu acordo:
– O pai disse‐me, daquela maneira delicada que tem sempre de colocar as questões, que Monsieur Kratz recebeu ordens de interferir pouco, mas reportar muito.
– Não te esqueças de que também Pauline fica contigo – acrescentou o irmão.
A criada alemã fora uma imposição da avó Stephanie e, à sua imagem e semelhança, era uma verdadeira rottweiler, sem papas na língua. – Confesso que ao princípio fiquei um bocadinho atordoada quando percebi que não me seria permitido trazer nenhuma dama de companhia, mas é uma nova regra destinada a impedir que uma rainha recém‐chegada se feche no seu círculo de origem, em lugar de se deixar servir pelas damas da nova corte, que lhe podem ensinar mais depressa os usos e costumes do novo reino.
Leopold içou as sobrancelhas num gesto cómico, enquanto apontava com a cabeça para o lugar onde a duquesa da Terceira conversava com duas das outras damas integradas nesta primeira comitiva. Estefânia voltou‐se para o mar, para esconder a gargalhada, enquanto sussurrava quase ao ouvido de Leo:
– São muito queridas, mas tão velhas! A duquesa da Terceira tem mais de 50 anos, a marquesa de Ficalho vai nos 70, foi camareira‐mor da rainha D. Maria, e, pelo que percebi das notas do rei, as outras duas que me vão acompanhar não são muito mais novas. Fica‐se com a ideia de que tudo parou no tempo!
– Steph, és uma lufada de ar fresco, um novo princípio. Uma mulher de 20 anos, que sabe o que quer. Tens de te lembrar de que Pedro só está no trono há pouco mais de dois anos, e tem tido outras prioridades.
– É verdade, Leo, mas não gosto de conflitos, nem de intrigas, e afastar ou substituir as pessoas que me foram previamente indicadas não pode ser uma tarefa fácil. Mas a duquesa da Terceira tem sentido de humor, e gosto de alguma ironia que lhe pressinto no olhar, talvez me ajude a navegar estas águas até que me sinta mais segura de mim.
Leopold procurou ser otimista porque, na realidade, constava‐lhe que o rei também continuava rodeado dos homens que não só tinham servido a sua mãe como também o seu avô, sentindo uma enorme dificuldade em confiar nos mais novos.
– Steph, Pedro só podia enviar a nata da nata numa missão tão importante, haverá com certeza mais a servir‐te. Além disso, se é verdade que és demasiado simpática para pisar nos calcanhares seja de quem for, também és suficientemente diplomática e experiente para conseguires alargar a tua corte a senhoras mais novas, e mais interessantes, para que te ajudem nos teus planos de aumentar a qualidade do ensino, a transferir para Portugal as boas práticas dos nossos hospitais, todas essas coisas de que falaste a Pedro nas tuas cartas.
Estefânia torceu o nariz, numa expressão divertida. Fosse como fosse, iria precisar de muitos conselhos, o que implicava muitas cartas, e as cartas corriam o risco enorme de ser abertas e lidas, por isso o plano que estabelecera com a mãe de usarem cifras tinha de ser implementado. E melhorado.
– Leo, já enviei à mãe uma lista de siglas, porque preciso mesmo, mesmo, de partilhar tudo com ela, mas tem de ser aumentada e aperfeiçoada.
O irmão sossegou‐a:
– Se bem me lembro da nossa combinação, uma cruz significa Pedro, o teu sogro é representado por uma bola, mas se for uma bola com um sinal de vezes lá dentro referes‐te às tuas cunhadas, e com um traço aos teus cunhados.
Cofiou a barba:
– Dizem‐me que a Ficalho tem buço... Se fizeres um bigode, já sei que estás a falar dela.
Estefânia sorriu:
– Não brinques, parvo. Decora lá: ECA, o nosso entourage, e N, os portugueses.
– Se fossem só os franceses, os ingleses e os prussianos a violar a correspondência, a coisa não ia mal, mas parece que Pedro teme que o seu próprio pai as leia. Deixa todos os papéis fechados à chave.
– Não pode ser assim tão mau, Leo. Sei que foi aquilo que o rei contou ao príncipe Alberto, mas talvez exagere, sabes como são os filhos com os pais.
Leopold tendia a concordar. Da informação que recolhera, Pedro parecia ser muito boa pessoa, mas demasiado «intenso», desejoso de impressionar o tio Alberto, que elegera como conselheiro principal, papel que o príncipe Alberto assumia com um orgulho paternalista, numa rivalidade clara com D. Fernando.
– Leopold, prometes que ficas em Lisboa o máximo de tempo que conseguires?
Leopold acenou que sim:
– Steph, respira fundo! Vais sentir‐te outra quando puseres os pés em terra firme.
Estefânia franziu o nariz sardento, sentindo o calor do sol no rosto e a aquecê‐la por dentro. Pedro esperava por ela, mandara apressar a sua vinda, e tinham tantos projetos para concretizar juntos.
Fez sombra com a palma da mão e sorriu ao irmão.
– Pelo menos este sol maravilhoso não o temos em casa, nem sequer ao meio‐dia – exclamou.
A rainha pegou no lápis, desenhando em traços rápidos o Mindelo, que navegava à sua popa, o casco longo e bonito, os dois mastros altos, a chaminé pintada de um encarnado‐vivo, desenhou a nau e as três fragatas inglesas que os reis de Inglaterra Vitória e Alberto insistiram que os acompanhassem, desenhou o vento e as ondas que os levaram a recolher‐se ao porto da Corunha, desenhou o rosto do pai, que deixara em lágrimas em Plymouth há seis longos dias, mas sentiu a mão paralisar quando procurou reproduzir a beleza da mãe, Josephine de Baden, princesa de Hohenzollern‐Sigmaringen. Vira‐a pela última vez em Ostende, quando inesperadamente adoecera, desistindo de a acompanhar a Inglaterra, deixando‐a perdida. O que faria sem os seus conselhos, sem o seu olhar atento, sossegando‐a?
Riscou uma nuvem negra no papel, procurando libertar‐se da memória do desespero que a levara a vomitar durante toda a travessia do canal da Mancha, tomada pelo pânico de não ser capaz de deixar para trás a família, todos aqueles que lhe eram queridos. Depois rezara com fervor, pedindo a Deus que lhe desse forças, e a disciplina que há anos impunha a si própria ajudara‐a a cumprir o intenso programa de festas que a esperava.
Tinham sido recebidos com honras militares em Dover, e depois o príncipe Alberto fora esperá‐los à estação de comboios em Londres, acolhendo‐os num caloroso abraço, sem esconder a satisfação por ver triunfar o seu projeto de a unir ao seu protegido, o jovem rei de Portugal. Seguira‐se uma espiral de almoços e jantares, bailes e passeios, visitara o Palácio de Cristal, onde já não sabia como aguentar as dores nos pés depois de uma hora e meia a andar com sapatos novos, recebera o corpo diplomático, presidira a jantares em sua homenagem, esforçara‐se por não deixar fechar os olhos na noite da ópera, dançara com o príncipe de Gales, andara de caleche e a cavalo, constantemente a mudar de roupa, seguindo a par e passo as instruções das toilettes para cada ocasião estabelecidas pela avó Stephanie. Mantivera sempre o sorriso, esforçando‐se por falar a língua dos seus diversos interlocutores e recordar o nome de tantas pessoas que via pela primeira vez. Em casa do embaixador Lavradio, a quem devia a negociação do casamento, assistira a uma missa rezada por um bispo católico e dera a mão a beijar aos portugueses que viviam em Londres, eram tantos – felizmente a bondosa condessa estivera sempre ao seu lado a ajudá‐la a identificar cada um. Que alívio sentira quando chegara um telegrama de Pedro pedindo‐ ‐lhe que não se demorasse, e logo de seguida um outro insistindo no mesmo. Estava impaciente.
Sempre que conseguia uns minutos, escrevia à mãe, dizia‐lhe que a rainha era a mulher mais simples que se pode imaginar, e que atrai e encanta desde o primeiro momento, porque era tão boa, suave, discreta. Mas, em todas elas, repetia o que sentia a todo o instante, e quase a sufocava a impossibilidade de acreditar que tinham sido separadas, o vazio que a sua ausência lhe provocava. Quando a rainha Vitória tivera a simpatia de vir aos seus aposentos para que falassem só as duas, dera por si a confessar‐lhe, com uma intimidade que a surpreendera, que ninguém podia imaginar a tortura que era para si ter de deixar a sua mãe. A rainha sorrira‐lhe meigamente, lembrando‐lhe que não havia melhor pessoa para a compreender, porque, desde que a sua filha Vicky casara e partira para Berlim, estavam a ser dos dias mais dolorosos que já vivera. «Não me parece que faça sentido nenhum o esforço de dar à luz e criar uma criança para depois nos obrigarem a separarmo‐nos dela!», refilara com um ar tão convicto que as duas tinham começado a rir. E fora então que, inesperadamente, Vitória lhe pegara na mão e a arrastara atrás de si até uma das salas do Palácio de Buckingham, indicando‐lhe um quadro pendurado na parede lateral à grande lareira de ferro, e ela abrira a boca de espanto perante um retrato em tamanho natural de Pedro, fardado, o colar da Torre e Espada ao pescoço, e a Ordem do Tosão de Ouro em destaque, o cabelo claro cortado curto, as faces rosadas e a boca séria. Ainda tão novo, quase uma criança.
Vitória sorrira, explicando‐lhe:
– Tinha 16 ou 17 anos na altura, pouco tempo depois de ter perdido a mãe, de que era tão próximo, de repentinamente se ter tornado rei, ainda tão novo. Felizmente, o rei D. Fernando assumiu a regência até aos 18 anos, as Cortes entenderam que Pedro só ganhava em adquirir mais maturidade e instrução antes de assumir um lugar tão difícil. D. Fernando mandou‐o ter connosco, na companhia de D. Luís; Lipipi, como lhe chamamos entre nós. Aliás, era um convite feito há muito anos, mas a rainha D. Maria usava todos os pretextos para não se separar deles. Era uma mãe‐galinha, incapaz de os ter longe da vista, e Pedro tinha com ela uma relação muito próxima. A sua morte trágica marcou‐o muito, marcou‐nos a todos – suspirou.
Estefânia tinha‐a escutado, procurando decorar cada uma das suas palavras. A condessa do Lavradio e a duquesa da Terceira tinham‐lhe contado algumas histórias do rei, mas com muita deferência e lisonja, sem esta proximidade e cumplicidade que a ajudavam a conhecê‐lo melhor – afinal, estavam oficialmente noivos há pouco mais de seis meses, vinham de realidades tão diferentes, e agora já eram, para todo o sempre, marido e mulher. Sem nunca se terem visto.
Contou a Vitória que nas cartas que Pedro lhe escrevera era patente essa veneração – confessara‐lhe que a mãe era severa, mas que a admirava tão profundamente que tudo o que ainda hoje fazia, todo o trabalho infindável a que se dedicava, destinava‐se a honrar o seu legado. Mais importante do que isso, a obter dela o reconhecimento. Atrevera‐se a perguntar àquela mulher pequenina, tão poderosa e que, no entanto, falava com ela com tanto respeito e sensatez:
– Majestade, como se obtém o reconhecimento de alguém que já morreu e de que se guarda uma memória infantil de perfeição? Quando é que se sente que se fez o suficiente?
Sentiu que a questão lhe valera pontos na consideração da rainha inglesa e uma resposta sincera.
– Stephanie, o teu marido é tímido e reservado, e teve uma infância conturbada em que viu a mãe constantemente sob fogo, uma vez literalmente quando um bando de revolucionários entrou no Palácio das Necessidades e exigiu que a rainha os acompanhasse a São Bento, para assinar a renúncia à Carta Constitucional do pai. E sabes o que fez? Exigiu que a deixassem ir vestir‐se a rigor, com uma tiara de diamantes na cabeça, demorando, levando o seu tempo, obrigando‐os a esperar, e se naquela noite não teve outra alternativa senão assinar, comportou‐se com uma dignidade que encheu de admiração todos quantos a viram. E quando o rei D. Fernando a incitou a acolher‐se à esquadra inglesa que estava no Tejo preparada para a ajudar a fugir, disse‐lhe que, se quisesse, fosse ele. Não, não vai ser fácil afastar da cabeça de D. Pedro esse desejo de igualar a mãe, de merecer o que ela fez para conservar a coroa e a monarquia constitucional. Mas é preciso que aprenda a viver para lá do trabalho, até passou a noite de Ano Novo a fazer um relatório, que faça mais exercício, se divirta para lá da caça, para afastar aquela melancolia. Alberto diz que lhe repete tudo isto nas suas cartas, mas, querida Stephanie, bem prega São Tomás porque o príncipe está cada vez mais sobrecarregado, mas pelo menos vê resultados, o que faz toda a diferença.
Fazendo‐lhe uma festa no braço, acrescentara:
– E temo‐nos um ao outro. E isto só to vou dizer a ti, mas sou terrivelmente dependente do meu adorado marido, fico numa ansie‐ dade quando se afasta uns dias de mim, sabe Deus o que me custou deixá‐lo ir à Bélgica ao casamento de Carlota, e só o autorizei a ir à Prússia porque estava em causa a felicidade de Vicky. Não te admires que Pedro se cole a ti como uma lapa, é o preço que os mal‐amados pagam, porque também eu tive uma infância complicada. Não que Maria e Fernando não fossem os melhores dos pais, não me entendas mal, mas a educação de um futuro rei é muito exigente, e então, para reinar um país tão pobre e instável como Portugal, mais ainda. Às vezes, quando os filhos crescem é que reparamos que não lhes demos a atenção que devíamos. Olha, eu estou mais próxima de Vicky desde que nos escrevemos, e nunca imaginei que ia sentir tanto a falta dela, mas já me repito.
Por uns instantes, pareceu hesitar, mas depois, decidida, tomou nas mãos uma moldura de entre as muitas pousadas numa mesa, mostrando‐lha:
– Stephanie, repara nesta fotografia em que Pedro está com Lipipi, em pose perante a câmara: o rei parece feio e até desagradável. Quando está tenso, e muitas vezes está, aviso‐te, fica assim, mas quando se sente mais à vontade e começa a confiar, os traços do seu rosto suavizam‐se e aqueles olhos azuis cintilam com humor e alegria. A cruz que carrega é pesada, e estava urgentemente a precisar de uma mulher que o apoie e acarinhe, tanto eu como Alberto sentíamo‐lo nas suas cartas, sentíamos que escorregava para um pessimismo doentio, daí a nossa pressa em que casasse.
Nunca se esqueceria do orgulho genuíno com que lhe declarara:
– Que contentes estamos por termos encontrado exatamente a pessoa certa para o jovem rei! Já toda a gente me tinha dito maravilhas de ti, a começar por Vicky, que se afeiçoou muito a ti nestes meses em que estiveram juntas na Prússia, mas é diferente quando temos a oportunidade de confirmar com os nossos próprios olhos. Espero ardentemente que Pedro consiga dar‐te tudo o que mereces.
À despedida desejara‐lhe a força da sua avó Stephanie Napoléon, grã‐duquesa de Baden. Não precisava de mais do que isso, garantira‐ ‐lhe. Era o mesmo que lhe tivesse pedido que encostasse um escadote ao céu e trouxesse a Lua, pensou, fechando o bloco de desenho e subindo de novo ao convés.
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