É assim que João Botelho vê o romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, escrito em 1984 pelo Nobel da Literatura, português, e é desta forma que o adaptou ao cinema, feito filme de poesia e contemplação, afirmando-se “muito contente” com o resultado: “Um bom preto e branco, bons atores e o tempo certo”.

“Este é o meu ponto de vista sobre o romance de Saramago. Não é o romance, mas o romance está lá”, explicou o realizador, para quem o texto é a coisa mais importante do filme.

A ação da história passa-se em 1936, quando o médico Ricardo Reis regressa a Portugal depois de se exilar no Brasil durante 16 anos e encontra um país em agitação política, marcada pela ascensão do nazismo de Hitler, do fascismo de Mussolini, pelo início da guerra civil espanhola e pela ditadura do Estado Novo de Salazar.

O heterónimo de Fernando Pessoa chega um mês após a morte do seu criador e começa a ser visitado pelo defunto, com quem conversa sobre si, sobre a vida, intercalando as conversas mais banais com poesia, como acontece também nos diálogos com as outras personagens, sobretudo Lídia e Marcenda, as suas duas paixões.

A poesia está sempre presente, quando não nos diálogos, na estética, que faz deste um filme visualmente poético, com jogos de luzes e sombras, cenas paradas, que acompanham silêncios, pausas, olhares e planos mais próximos e íntimos, que Pilar del Rio, presidente da Fundação José Saramago, descreveu, suspirando, como “imagens sedutoras”.

“É o que eu chamo cinema templo, que hoje já não há. Hoje filma-se com muitos planos, as imagens são muito rápidas, os sons são muito rápidos, é tudo a correr. As pessoas são capazes de esperar horas numa fila para entrar num museu e depois olham para o quadro por segundos e tiram um fotografia com o quadro atrás. Não pode ser. Cinema é ver e ouvir”, afirmou.

João Botelho tentava deste modo explicar a preocupação que teve com a adaptação do texto original, com o “não atentar ao romance”, fazendo com que “a paixão que Saramago tinha pelo cinema” estivesse lá.

E para isso contribuíram muito os atores, que “não podiam ser outros”, afirmou, confessando que no inicio não gostou deles, no fim acabou apaixonado.

O elenco principal é composto pelo ator brasileiro Chico Diaz (Ricardo Reis), por Luís Lima Barreto (Fernando Pessoa) e pelas atrizes Catarina Wallenstein (que faz de Lídia, criada do Hotel Bragança, onde Ricardo Reis se hospeda quando chega a Lisboa) e Victoria Guerra (Marcenda, uma jovem com o braço esquerdo paralisado, hospedada no mesmo hotel).

João Botelho recorda como foi gratificante ver o resultado do trabalho com Chico Diaz, “obrigado a fechar as vogais”, para ficar com um sotaque brasileiro mais parecido com o português, ou com Lima Barreto, a fazer de Fernando Pessoa, porque quando o poeta morreu, aos 47, parecia que tinha dezenas de anos a mais.

A ideia do filme surgiu há dois anos, quando se apresentaram na Fundação José Saramago a dizer que queriam adaptar este romance, contou o produtor, Alexandre Oliveira.

“Para o João [Botelho] fazia todo o sentido, com a ascensão dos populismos, nesta fase, pegar neste romance”, acrescentou.

Quando começaram a trabalhar para o filme depararam-se com o “trabalho exaustivo de Saramago” para reconstituir a época no seu romance, com anotações do dia-a-dia, do que aconteceu, retiradas de jornais da época, lembra o realizador.

“De repente batia tudo certo com o que está a acontecer agora. Era o nazismo, o fascismo, a Mocidade Portuguesa”, e é impossível não encontrar semelhanças com o que se assiste hoje um pouco por todo o mundo, considerou.

Para João Botelho, “Saramago era um profeta, a ideia de antecipar o futuro é um caso só dos pensadores”.

Outra genialidade que o realizador destaca no escritor foi a sua capacidade de terminar o que Fernando Pessoa deixou incompleto, naquilo que classifica como um “ato de coragem”.

“Fernando Pessoa aproveitou os heterónimos, com quem conversava. Álvaro de Campos falava mal de Ofélia. Para todos fez horóscopos, criou profissões… mas o Ricardo Reis, mandou-o para o Brasil e esqueceu-se dele, nunca lhe deu sequer uma data de morte. E Saramago, muito brilhantemente, trouxe Ricardo Reis e criou uma relação maravilhosa entre o criador e a criatura”.

Para serem fieis à época, lançaram mão de alguns truques como filmar o Hotel Bragança em Coimbra, no Hotel Astória, inaugurado nos anos 1920 e que continua intacto, filmar o jardim de Santa Catarina no jardim Botto Machado, perto da Feira da Ladra, tendo fabricado uma réplica do Adamastor para o efeito, ou reproduzir o santuário de Fátima no campo de tiro de Alcochete, porque “é impossível filmar hoje em Fátima – parece um programa da Cristina Ferreira”, brincou o realizador.

João Botelho tem dedicado os últimos anos a passar, para o grande ecrã, algumas das grandes obras da literatura portuguesa, como foi o caso de “A Corte do Norte” (Agustina Bessa-Luís), “Filme do Desassossego” (Fernando Pessoa), “Peregrinação” (Fernão Mendes Pinto) e “Os Maias” (Eça de Queirós). Mas a sua primeira longa-metragem, “Conversa Acabada”, era já uma incursão no universo de Pessoa e na sua relação de amizade com Mário de Sá-Carneiro.

“O romance é melhor do que o cinema. O cinema concretiza, mas com o romance as pessoas voam mais e a língua portuguesa é uma coisa fantástica e há pessoas que a trabalham tão bem, como é o caso de Fernando Pessoa e de Saramago”, afirmou.

O filme tem antestreia no dia 20 de setembro, no Teatro Nacional São João, no Porto, e no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa. A estreia será no dia 1 de outubro e, até lá, haverá uma sessão por dia entre o CCB e o Cinema Ideal.

A par com as antestreias, estará patente uma exposição no CCB, que teve inauguração hoje na Fundação José Saramago, com os materiais gráficos do filme, e com o material utilizado por José Saramago para as pesquisas para o romance, como as anotações tiradas na agenda a partir das pesquisas feitas na Biblioteca Nacional, e réplicas dos jornais da época.

A estreia internacional será no Festival de Sevilha, e está já marcada a sua participação na Mostra de Cinema de São Paulo. Dentro de um ano vai dar origem a uma série de cinco episódios, a exibir pela RTP.

A adaptação de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” teve um custo de 1,5 milhões de euros, e contou com o apoio do Instituto do Cinema e do Audiovisual, do Ministério da Cultura, da Câmara Municipal de Lisboa, do Turismo de Portugal e da RTP.

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