Em entrevista ao SAPO24, o criador do projeto, Martim Galamba, contou que o objetivo é criar uma espécie de indústria de teatro musical em Portugal, algo que no seu entender ainda não existe, mas que a MTL se propõe a criar através de ações de formação e criação de espetáculos.
“Originalmente, estudei teatro musical em Nova Iorque e vivi lá durante três anos, com o objetivo de trazer o teatro musical para Portugal. Mas era uma ideia que eu tinha para acontecer em 30 anos. Entretanto, há dois anos voltei para Portugal e comecei a ter alguns trabalhos, sempre com a ideia de regressar aos Estados Unidos. Nessa altura, comecei a pensar que era o momento de podermos tentar fazer alguma coisa já e não daqui a 30 anos”, conta.
Assim surgiu a MTL. “Foi algo espontâneo, mais nada”, diz. “Depois disso, desafiei a Sissi Martins e o Ruben Madureira, dois atores portugueses, conhecidos pelo teatro musical aqui em Portugal. A Sissi tinha sido minha professora cá, e eu desafiei os dois a criar este projeto para, por um lado, fazer uma ponte entre a Brodway e Lisboa e, por outro, fazermos espetáculos de teatro musical por cá. Ou seja, criar uma indústria de teatro musical em Portugal”, afirma.
Sobre a união dos três, diz que é simples porque “partilhamos uma visão do que é para nós teatro musical, que muitas vezes é diferente daquilo que nos chega cá a Portugal”. “As pessoas aqui têm uma imagem que o teatro musical está mais ligado à revista e há muito mais para além disso no teatro musical, e a nossa visão é mais a visão americana do teatro musical, que foi aliás onde este estilo nasceu”, refere.
“Nós na Europa estamos muito familiarizados com o teatro musical inglês, como 'O Fantasma da Ópera' ou 'Os Miseráveis', mas na verdade o teatro musical é um estilo americano e existe muita coisa que ainda não foi feita cá em Portugal e com que o público português ainda não tem contacto”, sublinha.
Avançando para a relevância do projeto que surgiu em junho do ano passado, diz que foi “o momento certo”, porque “o mundo está um caos nos últimos 10 anos e anda tudo a querer descobrir Portugal, e portanto temos de aproveitar esta vaga de turismo que ajuda a fazer este projeto”.
“Quando criámos este projeto, em junho de 2022, eu disse aos meus parceiros que daqui a uns meses isto estava em andamento e eles não acreditaram. Mas nesse mesmo junho fizemos logo dois workshops com dois atores da Broadway que vieram dar formação a artistas portugueses. Na altura a nossa ideia foi o projeto começar com ações de formação ou workshops, porque é preciso dar formação aos artistas portugueses, porque em Portugal quase não existe formação em teatro musical. Mesmo quando vamos para fora, formar-nos não é a mesma coisa como ter alguns dos melhores nomes do mundo em teatro musical vindos da Broadway para cá”, afirma.
Depois dos primeiros passos, Martim conta que foi simples. Conseguiram o apoio da embaixada dos Estados Unidos e fizeram mais quatro workshops e uma masterclass com vários artistas e professores vindos da Broadway.
“Começámos depois a ter interesse de atores de outras partes da Europa que vieram para Lisboa de propósito para ter estas aulas, porque estes artistas norte-americanos normalmente não vêm à Europa dar aulas. Só a Londres, mas nem todos podem ir a Londres”, enfatiza.
Já este ano criaram o Musical Theater Summit, e de 12 a 16 de julho fizeram cinco dias intensivos de workshops, conversas com atores, nomeadamente Audra McDonald, que é a atriz mais premiada de sempre de teatro, sendo a única artista a ter ganho 6 Tony. Tudo terminou com uma apresentação dos trabalhos desenvolvidos durante os workshops no jardim do Museu do Teatro, em que alunos e professores apresentaram o espetáculo ‘Broadway no Parque’.
Neste espetáculo foi possível ver atores dos grandes palcos da Broadway em Lisboa como Kristen Beth Williams e James Ludwig, que se juntaram aos alunos das formações da MTL. Este foi um evento que esgotou, e que tinha o custo de 10 euros para quem comprou bilhete.
“Este evento esteve esgotado, não de familiares de atores, mas sim de público em geral, o que mostra um enorme interesse das pessoas no teatro musical”, salienta Martim.
Entretanto, com apenas um ano de existência, este projeto já contou com a participação de mais de 100 participantes portugueses e estrangeiros, e querem agora criar espetáculos para começar a cativar o público português.
“Estamos a criar já um espetáculo original, escrito e composto por portugueses, e depois para o próximo ano estamos a trabalhar na adaptação de um musical americano para vir cá a Portugal, e que o compositor desse espetáculo, que é alguém muito reconhecido, também possa vir cá uma semana trabalhar com os artistas”, contou-nos Martim Galamba.
O "preconceito" do teatro musical
Numa nota mais opinativa, e sempre com bastante orgulho no seu projeto, destacou que “existe ainda um preconceito no teatro musical. Ainda o associamos muito a teatro de revista muito popular e pouco elaborado, e quem conhece sabe que o teatro musical é diferente disso”.
“O que nós queremos é mostrar às pessoas que o teatro musical é muito mais do que elas conhecem”, disse. E acrescentou: “Neste momento acho que o público quer, mas existe um certo preconceito de alguma elite artística e também jornalística, porque por vezes é difícil chegar aos jornalistas por eles próprios terem um preconceito contra o teatro musical”.
Separando o público daquilo a que chama preconceito, diz que este não nasce das pessoas. “O público quer imenso este tipo de teatro. Veja-se os exemplos recentes do Chicago e Avenida Q, que foram feitos já com grande qualidade e demonstraram que as pessoas querem ver estes espetáculos”, afirma.
“Acho que é pedagógico começarmos a desassociar o teatro musical do teatro de revista, que são coisas diferentes. Além disso, é importante que o público saiba que o teatro musical não é só cantar, dançar e entretenimento puro. O teatro musical pode ser tudo, não é um género. É como qualquer outro estilo de teatro, pode ser um drama, uma comédia, e o teatro musical é a mesma coisa. Não tem de ser só uma coisa leve para rir, pode ser muitas coisas”, destaca.
"O que nós queremos é fazer algo diferente, uma coisa portuguesa que ainda não existe, mas que acho que teria procura e que, se for bom, as pessoas vão pagar"
O teatro musical apresentado no estrangeiro é, por diversas vezes, considerado caro, mas Martim Galamba vê com otimismo os portugueses dispostos a pagar por este tipo de arte, exemplificando.
“Repare-se que, este ano, já cá esteve o 'Cats' em Portugal com casa cheia, e os bilhetes eram vendidos a preços Broadway e todos quiseram ver. Isto prova que existe dinheiro para pagar, as pessoas têm é de ter uma oferta de qualidade. Em Portugal é importante percebermos que temos menos poder de compra e que somos menos do que em Espanha, que tem vários musicais por lá. Mas não precisamos de ter 'O Rei Leão', como em Madrid. Podemos ter algo bom e mais pequeno”, frisa.
“É impossível fazer uma Broadway em Portugal. A Broadway já existe. O que nós queremos é fazer algo diferente, uma coisa portuguesa que ainda não existe, mas que acho que teria procura e que, se for bom, as pessoas vão pagar”, refere.
Pegando no exemplo de concertos famosos, como o caso recente dos Coldplay em Coimbra, o criador da MTL sublinha que “se a música for incrível, as pessoas vão querer pagar”. Por isso, e adaptando ao teatro, “se for uma coisa que as pessoas percebem que é boa vão pagar”, acentua.
Numa crítica mais relacionada com o setor da cultura, lamenta ainda o facto dos portugueses não terem “grandes hábitos culturais no geral”. “Não vamos a museus, somos talvez dos piores da Europa nesse aspeto, mas eu acho que, se as pessoas forem influenciadas nesse sentido, vão e temos de as incentivar”, reforça.
“Nos festivais de música as pessoas aderem, e boas peças, como ‘O Diário de Anne Frank’, estão sempre cheias, ou quase sempre, porque são boas e as pessoas vão”, acrescenta.
No que diz respeito ao afastamento do público face ao teatro, Martim é da opinião que se deve ao facto de que, “por vezes, as pessoas vão ver coisas tão pseudo opinativas ou pseudo intelectuais que não se identificam, não acham graça e perdem o interesse no teatro”.
Apontando o dedo também aos artistas, refere que “nós também não estimulamos o público a ter interesse”. “Não existe em Portugal crítica de teatro, e depois são feitas coisas com muito pouca qualidade, e as pessoas associam isso a toda a indústria possível de teatro e de teatro musical”, sublinha.
Voltando ao exemplo da Avenida Q e do Chicago, dois musicais que estiveram vários meses em salas portuguesas, sublinha o facto de se primar pela qualidade. “A tradução estava muito bem feita, e havia música ao vivo, o que é raro em Portugal, e que seria impensável na Broadway não haver”, recorda.
“Quando eu digo aos americanos que existem em Portugal espetáculos de teatro musical em que as pessoas não cantam ao vivo e não existe orquestra, eles dizem que isso é inimaginável na Broadway ou até no West End, em Londres. Se existir uma peça sem música ao vivo na Broadway ou no West End, os críticos destroem essa peça. Aqui acontece, passa a mensagem errada e afasta as pessoas”, conta.
“E depois existem as cópias. Existem revistas com músicas de musicais famosos em que os direitos não são comprados e as letras são alteradas, e o público é enganado. Se contarmos isto a qualquer americano ele dirá que as peças devem ser fechadas amanhã, porque não existem direitos”, refere também.
A criação de “uma escola e uma dinâmica permanente de teatro musical”
Sobre o futuro da MTL, esse é simples e está lançado. Conta-nos que para o próximo ano vai voltar a acontecer o Musical Theater Summit, desta vez com mais nomes conhecidos da Broadway, com mais dias e com mais atores.
Salienta ainda que o mais fascinante tem sido observar a “evolução dos atores e a forma como ficam emocionados e a dizer que nunca viram uma coisa tão impressionante ou tiveram uma experiência tão transformadora”.
“Porque o teatro musical é isso mesmo, uma experiência emocionante, e só quem nunca viu é que não sabe”, refere.
Sobre futuros projetos em Portugal, contou-nos que depois do último evento teve oportunidade de falar com um americano próximo de Thomas Schumacher, o presidente do Disney Theatrical Group, responsável pelos musicais da Disney, como 'O Rei Leão', 'Aladdin', 'Mary Poppins' ou 'Frozen'. Conversaram sobre o facto de ser muito complicado trazer produções da Disney a Portugal, apesar de já existirem em outras cidades europeias, isto porque este tipo de peças custa milhões de euros a produzir, e Portugal não tem, de acordo com as estatísticas da Disney, pessoas dispostas a pagar esses valores.
“Existe ainda outro problema, que é o facto de existirem poucos teatros em Portugal com capacidade para ter condições técnicas para espetáculos destes. Porém, todas as outras produções são possíveis e cá estamos para as fazer”, realça.
De olhos postos no que está para vir, diz que quer criar “uma escola e uma dinâmica permanente de teatro musical”, até porque, segundo o dinamisador da MTL, muitas vezes é complicado convencer produtoras a fazer este tipo de teatro. Quer ainda que “haja constantemente musicais”. “Se existirem sempre musicais talvez se crie a cultura de musicais”, prevê.
"É importante criar uma equipa de pessoas que saibam o que é o teatro musical e que o percebam"
Contou-nos também uma conversa que teve com Rob McClure, vencedor de dois Tony e que interpretou na Broadway o famoso papel de 'Mrs. Doubtfire' no musical homónimo, em que o artista sugeriu ser possível exportar o teatro musical português.
“Já existem muitas produções latinas a chegar aos grandes palcos ou, por exemplo, o espetáculo 'The Band's Visit' na Broadway, que é israelita. Por isso pode existir um musical português além fronteiras”, refere Martim.
“O teatro original que estamos a pensar fazer em Portugal é feito por portugueses, e é importante criar uma equipa de pessoas que saibam o que é o teatro musical e que o percebam. Existe muita gente que cria coisas em Portugal mas não percebe teatro musical. Num próximo passo, também gostava de formar escritores e compositores, além dos atores, que já formamos, para podermos criar toda esta dinâmica”, adianta.
Contou-nos ainda que é para isso também que servem os workshops, para encontrar novos talentos e reencontrar caras do teatro musical português de outros tempos que estão afastadas dos palcos.
“Sempre que os americanos cá chegam ficam super impressionados com todo o talento que existe em Portugal e que é muitas vezes desperdiçado. Muitas pessoas que participam nas nossas formações até trabalham, mas fazem pequenos espetáculos, novelas ou revista, e não é a mesma coisa”, destaca.
Acrescenta ainda que se estes atores “fossem artistas de musicais, exclusivamente, e se isso fosse uma indústria, como são poucos, seriam altamente requisitados e bem pagos”.
“Todos os atores portugueses que pudessem ir para a Broadway seriam mais um no meio de muitos. Aqui, tendo em conta a especificidade e o talento destes atores, eles podem ser especiais. Podia criar-se uma carreira de ator de teatro musical”, afirma.
Dando o seu exemplo pessoal de estudante de representação, diz: “Foi o que eu senti quando estava nos Estados Unidos. Lá era mais um ator. Aqui posso fazer a diferença e mudar o país. Eu acredito mesmo em teatros cheios e numa mudança na comunidade”.
Mais focado no projeto, diz que querem também “contar histórias que importam e que dizem coisas às pessoas. As artes tem um papel fundamental em levantar os grandes temas, mesmo quando não são diretamente políticos”.
Lisboa enquanto "ponto de ligação da Broadway com a Europa"
Já no final da nossa entrevista, referiu também que os atores da Broadway adoram Portugal, e que “querem vir cá e querem estar envolvidos na montagem destas formações. Eles dizem também que na Broadway se fala muito das nossas formações e que bastante gente quer vir a Portugal para se formar aqui, e isso é muito positivo”.
Sobre o próximo Summit, já sabem que vão contar de novo com alguns dos grandes nomes da Broadway que serão acompanhados por artistas nacionais e internacioais. Martim sublinha ainda a grande quantidade de artistas internacionais que participam nos eventos, vindos da Alemanha, do Reino Unido, entre outros países.
“Lisboa está a meio caminho, e por isso é possível fazer um ponto de ligação da Broadway com a Europa”, reforça.
Ainda no contexto desta ligação à Broadway que quer sempre manter, afirma que já teve atores de West End interessados em participar, mas recusou por que quer manter uma “ligação constante às origens do teatro musical”. “West End é bom, mas quem já foi à Broadway sabe que é melhor pela sua dimensão continental”, sublinha.
“Os ingleses têm um entendimento do teatro musical mais baseado no dançar e cantar, e os americanos compreendem que a parte mais importante está na forma de atuar e isso é que faz a diferença. Uma pessoa pode ter uma voz incrível, mas passado cinco minutos já nos podemos ter esquecido, mas quando a capacidade de interpretar está lá é a diferença entre uma coisa muito boa e uma coisa espetacular que nos leva a estar conectados com a história”, reforça.
Quanto a preços, neste Summit foram atribuídas várias bolsas da Fundação GDA a alguns dos artistas participantes, que acabaram por pagar aproximadamente 140 euros. Os restantes pagaram o preço total, com valores entre os 220 e 230 euros. Existem ainda descontos para antigos alunos.
Já as caras conhecidas da MTL, além dos parceiros de Martim, o casal Ruben Madureira e Sissi Martins, faz também parte desta organização Artur Guimarães, diretor musical, responsável pela direção de 'Chicago' em Portugal, que vai criar novos espetáculos neste projeto.
Existem ainda alguns atores conhecidos do grande público que participam nos workshops da MTL, mas Martim destaca em especial “as pessoas que são descobertas, que nunca fizeram nada e são espetaculares”.
Para quem quiser participar nos próximos eventos da MTL, no caso do grande público terá de esperar pelo próximo 'Broadway no Parque' e pelos musicais a serem produzidos. Já os artistas podem inscrever-se no workshop ‘A Journey with Ricardo Neves Neves’, já nos dias 16, 17, 23 e 24 de setembro. Neste workshop, com um dos mais aclamados encenadores portugueses da atualidade, os artistas poderão trabalhar várias ferramentas relevantes como a criatividade e autonomia do ator, sentido musical e o ator como agente de criação. As inscrições podem ser feitas aqui.
*Artigo atualizado às 13h45 horas para retirar o nome dos atores na próxima edição do 'Broadway no Parque' por ainda não estarem confirmados oficialmente.
*Corrigida também a informação que dizia existirem atores portugueses na Broadway, por não corresponder à realidade neste momento
Comentários