Miguel Loureiro encena “A Dama das Camélias”, que estará em palco de 06 a 22 de setembro – disposto a trabalhar um texto que é “património da arte teatral, do seu exponencial romântico”, mas pervertendo-o, porque há nesta peça “um romantismo piedoso” que diz não conseguir seguir.

“Há uma afetação ou coqueteria que não me permite seguir [a peça] como ela é e começámos a brincar com o grotesco. Não queríamos seguir as linhas do padrão romântico a que o texto obedece”, disse aos jornalistas, após um ensaio de imprensa, assumindo que este projeto “é um salto no escuro”.

Há jogos formais de reinventar o português e tentar explorar um cómico de linguagem, por vezes dentro do grotesco, como substituir as tosses (no original, a personagem principal, a cortesã Marguerite Gautier, sofre de tuberculose) pela flatulência, por exemplo, explicou, desabafando: “Estou farto das tísicas”.

E isso vê-se e ouve-se, por exemplo, numa cena em que Marguerite “solta um gás” logo após declarar ao seu amado Armando Duval que está apaixonada por ele.

A ideia para esta abordagem partiu da obra “Do grotesco e do sublime”, de Victor Hugo, e a inspiração, Miguel Loureiro foi buscá-la “aos programas de televisão, à cultura de rua, às conversas de tasca, à brejeirice”.

“Porque não pomos isto — o arroto, a flatulência — neste universo delicado?”, questionou-se, afirmando que o que lhe interessa é a mistura, é o fervilhar de energia.

O encenador reconhece que “é um risco”, porque “as pessoas estão à espera do sublime”, mas salienta que “o texto [original] está lá”, só que há “ornamentos parasitas”.

Miguel Loureiro socorre-se da peça de Jan Fabre intitulada “O poder da loucura teatral”, para justificar esta sua opção de “tentar a liberdade total sobre o texto” original.

Outra surpresa desta adaptação é o facto de Marguerite Gautier ser coxa, e coxear acentuadamente, uma característica que Miguel Loureiro diz estar relacionada com “taras sexuais” e “com a ideia do erotismo no defeito”.

Esta é uma das situações em que o grotesco se poderá aproximar do sublime, frisou.

Sobre o romance entre Marguerite Gautier e Armando Duval, um jovem estudante pertencente a uma família aristocrática, Miguel Loureiro disse que queria pôr em cena a ideia de que para ela o amor verdadeiro de Armando seria mais uma medalha, a juntar ao domínio que tem sobre o conde, para “ser mais” do que as outras cortesãs.

Ao contrário, em Armando o “padrão é mais natural”, ele “apaixona-se pelo que ela é”.

Uma das cenas ilustrativas das brincadeiras que são feitas com a linguagem é a de um diálogo entre os dois amantes, em que Marguerite começa por tratar Armando “por você”, demonstrando alguma formalidade, para logo de seguida tratá-lo por tu, o que permite transmitir a ideia de que ele é apenas um rapazinho à mercê de uma mulher mais velha, e termina a chamá-lo de “meu bebé brincalhão”, o que já dá uma conotação um pouco patética, como explicou Miguel Loureiro.

Os figurinos copiam modelos do século XIX e os cenários em vez de reproduzirem interiores luxuosos, são constituídos por “um catálogo, que dá a ideia do luxo de outros tempos passados” e por “um armário que é um mostruário de cadeiras do Estado”.

As personagens “têm que entrar em cena por baixo”, passando por baixo desse armário, o que lhes “tira alguma dignidade, principalmente quando se trata do pai de Armando, que é altíssimo”, adiantou o encenador.

Embora assuma que não considera o romantismo de Dumas muito “convincente”, pelo menos não tanto como o de Garrett, Miguel Loureiro assegura ter respeitado o texto da peça teatral, traduzido do francês por João Paulo Esteves da Silva, num trabalho que não se cansa de elogiar.

“A peça não está disponível ao público há muito tempo, em termos de texto traduzido. O que está é o romance”, assinalou.

Questionado sobre se a sua adaptação poderá ser considerada uma traição pelos admiradores da obra de Alexandre Dumas, Miguel Loureiro responde com outra pergunta: “Haverá amantes em Portugal de ‘A Dama das Camélias'”?

Miguel Loureiro acredita que este é um romance mais conhecido do que lido, ao contrário do que se passará com clássicos como “Madame Bovary” ou “Anna Karenina”.