O circuito, através dos três pisos do museu, e o livro, que o comenta, identificam perto de 100 espécies vegetais e descodificam narrativas possíveis, em 30 obras de pintura, tapeçaria ou cerâmica, que atravessam quase três séculos de arte de expressão europeia, desde as representações sacras de Hans Holbein, o Velho, de Frei Carlos e Francisco Henriques, vindas dos primeiros anos de 1500, às naturezas mortas do século XVII, de Josefa de Óbidos e Antonio Pareda, ou à perspetiva da Lisboa setecentista, anterior ao terramoto.
Livro e exposição surgem no âmbito da Capital Verde Europeia 2020 e abrem caminho a uma possível nova edição dedicada à fauna, a representação animal em obras do MNAA, como adiantou hoje o subdiretor do museu, Anísio Franco, que admitiu ter já em curso o trabalho, depois de o vereador do Ambiente da Câmara de Lisboa, José Sá Fernandes, ter anunciado disponibilidade para também apoiar o novo projeto.
Para já, no entanto, são representações de vegetais e frutos que dominam o percurso, num trabalho que contou com a orientação da investigadora em botânica Sandra Mesquita, e da técnica do serviço de Educação do MNAA Marta Carvalho, procurando dar a conhecer "o significado simbólico dos elementos".
A ideia é ajudar a estabelecer pontos de contacto com as obras, identificar testemunhos, encontrar o que há de comum na expressão humana ao longo de séculos, perceber sinais, símbolos, estreitar a relação com cada uma das peças, abrir o olhar a outras mais, e assim tornar também mais próxima a ligação ao museu.
Do lírio-amarelo-dos-montes, espécie portuguesa reproduzida pelo Mestre da Lourinhã, no "Retábulo de Almeirim" (c.1515), numa alusão à pureza de Maria, à romã de Gregório Lopes, no "Retábulo do Paraíso" (c.1523), como expressão de fecundidade, imortalidade ou ressurreição, o percurso permite encontrar diferentes espécies e múltiplas narrativas a elas associadas.
Assim surgem maçãs, fruto da árvore do conhecimento, uvas, como alusão ao vinho eucarístico, morangos, com a sua ideia de paraíso, as tamareiras, ligadas à eternidade, figos, que também podem ser frutos proibidos, trevos, associados à Santíssima Trindade, o lírio-do-vale, como sinal do advento de Cristo, e o espinho, como seu martírio, sem esquecer violetas, símbolo da humildade, ou rosas e açucenas, representações da inocência da Virgem.
Na tapeçaria "Hércules Capturando Cérebro", datada de 1560-1561, proveniente da manufatura de Jan Karcher, entre lírios da Alemanha (lilases), narcisos e videiras, identifica-se a vulgar meloa cantaloupe, fruto originário da Ásia, que a investigação botânica só mais tarde coloca na Europa.
"A Virgem, o Menino e os Anjos", quadro de Gregório Lopes, de 1536-1539, patenteia uma das primeiras representações de cravos-túnicos, espécie originária do México, novidade da época, nos jardins europeus.
Tudo começa com "O Descobrimento da Índia" (1504-1530), recordou hoje Anísio Franco, durante a visita guiada ao percurso, apontando a tapeçaria da manufatura de Tournai, onde a esquadra de Vasco da Gama surge rodeada de cravos e narcisos.
No circuito desenhado, que o livro acompanha passo a passo, surgem ainda as versões originais de melancias, com o seu branco africano, patente numa das "Naturezas-mortas" (1660-1670) de Josefa de Óbidos, ou o roxo típico da cenoura, no 'bodegon' de Pareda, anterior à vulgarização da espécie que a lenda atribui à celebração mais tardia da vitória de Orange sobre o domínio espanhol, nos Países Baixos.
“Um Itinerário pela Iconografia Botânica” inclui ainda "Um Vaso Esculpido com Flores" (1713), de Jean-Baptist Bosschaert, peça recém-restaurada que regressou à escadaria do MNAA, juntando-se ao seu par. É uma profusão de rosas, dálias, miosótis, malvas, cravos, tulipas, flores de macieira, abundância impossível no 'mundo real', mas que a pintura permite mostrar em flor, em simultâneo.
"O que se propõe ao visitante é que olhe e pense esses elementos da natureza, expostos mais ou menos discretamente nas obras do museu", escreve o diretor do MNAA, Joaquim Oliveira Caetano, no texto de abertura do livro.
Para esses elementos constarem das obras, o artista teve de olhar a natureza, teve de a compreender e reproduzir, traduzindo "um novo olhar", escreve Caetano; um olhar "analítico, interrogativo, que procurava a exatidão (...) e uma compreensão das formas que era afinal uma nova compreensão do mundo".
"Estamos no fim de um caminho que começou exatamente na época das primeiras representações que mostramos neste percurso, quando o ocidente se deu conta das suas capacidades de conhecer e explorar o mundo, essa exploração com cujos limites hoje nos defrontamos e que este ano de 2020, o da nossa 'capital verde', nos veio de forma brutal obrigar a repensar", conclui.
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