Intitulada “Entre os vossos dentes”, a exposição tem curadoria de Adriana Varejão, Helena de Freitas e Victor Gorgulho, e cenografia de Daniela Thomas, distribuindo-se por 13 salas da nave do CAM, num percurso imersivo por seis décadas de criação artística, entre pintura, gravura, escultura e instalação.

O título vem da obra de Hilda Hilst "Poemas aos homens do nosso tempo", escrita em 1974, numa alusão à ditadura militar que o país viveu de 1964 a 1985. Nesta obra, "a poeta brasileira, da mesma geração que Paula Rego, fala desse poder instituído por homens que trituram vidas humanas”, comentou hoje a artista brasileira Adriana Varejão, durante uma visita à exposição, para jornalistas.

É a primeira vez que as duas artistas partilham uma exposição em Portugal, depois de um primeiro encontro em 2017, no Rio de Janeiro, numa mostra que marcou também a única apresentação de Paula Rego (1035-2022), naquela cidade do Brasil.

“É um título ambiguo, porque é uma exposição que fala sobre o 'entre', no caso, dentro da boca, sobre mastigar, relacionado com a violência sobre as mulheres”, acrescentou a artista nascida no Rio de Janeiro, em 1964, que exibe, nesta exposição, uma obra inédita criada especialmente para a ocasião.

A mostra propõe um diálogo visual e conceptual entre duas vozes femininas de diferentes gerações e geografias, unidas pela intensidade emocional, imaginação visual e crítica social, como sublinhou o diretor do CAM da Fundação Calouste Gulbenkian, Benjamin Weil.

“Cruzar as obras de figuras incontornáveis do século XX com artistas proeminentes do nosso tempo, como nesta exposição, visa criar novas leituras da Historia da Arte, revelando afinidades intelectuais e formais entre artistas de várias gerações”, justificou Weil.

De acordo com o responsável, este tipo de exposições também serve “para contextualizar a coleção do CAM”, neste caso, com a presença de cerca de um terço de obras de Paula Rego, entre as quais peças icónicas como “Anjo” (1998) e “Banho Turco” (1960).

“Aqui se une o trabalho de duas mulheres artistas com preocupações muito semelhantes: ambas cresceram em ditaduras e em culturas patriarcais fortemente marcadas pelo catolicismo”, contextualizou Benjamin Weil sobre uma mostra que evoca a forma como o patriarcado, o colonialismo e outras formas de opressão se entrelaçam, “corroendo memórias e corpos”, assinalou, por seu turno, Helena de Freitas.

A curadora sublinhou que logo no início da exposição foi propositadamente colocado um estudo da Paula Rego da série “Mulher Cão”, dos anos 1990, onde uma mulher dobrada sobre si própria, agachada, revela os dentes, e em frente surge uma coluna corroída, peça de Adriana Varejão, numa metáfora que percorre toda a mostra.

“Há sempre algo nestas obras que está escondido. Há um contraste entre o interior e o exterior, entre o íntimo e o universal”, apontou a curadora da Gulbenkian que foi diretora da Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais, entre 2010 e 2013.

A seguir à entrada, logo na primeira sala, destaca-se “A primeira missa no Brasil” (1993), uma pintura menos conhecida de Paula Rego, que revê criticamente a representação colonial do povo indígena Tupi, quando os portugueses chegaram ao continente, em diálogo com “Mapa de Lopo Homem” (1992), de Varejão, em que a artista sobrepõe uma ferida aberta à cartografia histórica, evocando a violência da conquista.

“Eu nunca vi uma afinidade estética total entre a minha obra e a de Paula Rego. São muito diferentes, mas a sinergia entre elas dialoga de forma incrível. Por isso formámos grupos em que esses diálogos são muito potentes, divididos em temas”, comentou Varejão aos jornalistas.

Entre os temas abordados, o aborto ocupa um espaço central, com destaque para o “Tríptico” (1998) e um conjunto de gravuras de Paula Rego criadas em resposta ao referendo de 1998, em Portugal, cujo resultado veio a exigir nova consulta pública.

Em diálogo direto com essas obras surgem as instalações de Varejão “Extirpação do mal por overdose e por incisura” (1994), apresentadas na Bienal de São Paulo, e marcadas por uma “atmosfera clínica e perturbadora”, em que a superfície das obras é arrancada, dilacerada ou cortada, dando a ver o interior avermelhado, como se fosse carne.

“A carne dá corpo às histórias e à História de política social e, portanto, coletiva, de Adriana Varejão. Em ambas as artistas qualquer ideia de uma história dissolve-se lentamente nessas 13 salas da mostra, que não sugerem chaves de interpretação únicas e irrevogáveis para as conversas que estabelecemos”, ressalvou o curador brasileiro Victor Gorgulho, convidado pela artista.

Outros momentos da exposição incluem o cruzamento entre a obra “Anjo” (1998), de Paula Rego, e o tríptico “Parede com incisões à la Fontana” (2002), de Varejão, onde símbolos de poder, dor e resistência se sobrepõem.

“Apesar de sermos de gerações diferentes, há uma grande sinergia no sentido das obras, na violência, na forma contundente de falar, que é muito semelhante, o que não foi coincidência, porque resulta de um trabalho de curadoria muito lapidado. Não é uma exposição em que poderia entrar qualquer obra das nossas. Foram muito escolhidas”, apontou Adriana Varejão.

Algumas das salas “são quase 'armadilhas' e levam a jogos psicológicos fortes” relacionados com o erotismo e o corpo, segundo a artista e também curadora, que admitiu ter procurado criar uma exposição “realmente forte e política, em todos os sentidos e várias direções”.

Quanto à relação com o oceano – enquanto elo e separação de Lisboa com o Rio de Janeiro –, esta ganha expressão em obras como “O céu era azul, o mar era azul e o menino era azul" (2017), de Paula Rego, e “Ama Divers “(2011), de Varejão.

A mostra “Entre os vossos dentes” pode ser visitada até 22 de setembro, no renovado CAM da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.