1 — Invasão

O marechal Massena soltou um longo e vitorioso suspiro, e, depois, deixou-se rolar para o seu lado da cama. Gostava de fazer amor antes de adormecer e de voltar a fazê-lo logo pela manhã, ao acordar – como agora acontecera –, surpreendendo o corpo da amante, ainda mole do sono. Oh, como tinha prazer em ouvi-la gemer vagas reclamações enquanto se apossava dela, assim, indefesa, impreparada, completamente entregue nas suas mãos!

Aquelas eram as recompensas e sofisticações carnais de um rude militar, e não saberia obtê-las de outra maneira. Como muitos dos que agora dominavam em França, o marechal viera de baixo – era filho de um curtidor e fabricante de sabão –, mas, com os ares explosivos da Revolução, subira velozmente até ao topo. Seria, por certo, um maçador, alguém desprovido do espírito exigível para brilhar num salão, mas enriquecera depressa e bem. Pilhara sem freio, não o negava, mas quem naquelas circunstâncias o não fizera? Não sentia qualquer vergonha de ter acumulado uma larga fortuna por vias pouco católicas e também não tinha arrependimento ou escrúpulo de violar diariamente a sua amante. A cama não era terreno para cerimónias ou hesitações. Perante uma mulher bonita deviam abrir-se as hostilidades. Na guerra e no amor valia tudo e o prazer da invasão física da sua bela adormecida equiparava-se ao da entrada numa cidade vencida e conquistada.

Haviam sido muitas as que vencera e subjugara, tantas que quase todos o consideravam sem rival num campo de batalha. Era público que o próprio imperador o tinha por inigualável no que tocava a decisão e intrepidez, mas ele, que indubitavelmente o fora, não estava certo de que continuasse a sê-lo. Se ainda conservava essas qualidades no leito – terreno onde passava rapidamente ao ataque –, talvez já não sucedesse o mesmo fora dele. O seu olhar perdera brilho, já não estava tão ágil e alerta como nos gloriosos tempos das campanhas de Itália. A recente guerra contra a Áustria cobrara um alto preço na sua saúde e energia. Sempre que se olhava ao espelho via um idoso de sessenta e muitos anos, quando, na verdade, tinha cinquenta e dois. Mas estava cansado de combates e do seu altíssimo custo. Era um dos mais velhos marechais de França. Fizera o seu nome ainda antes de Napoleão chegar ao poder e já comandava grandes exércitos no tempo em que alguns dos generais que agora o acompanhavam no ataque a Portugal estavam a iniciar as suas carreiras. Junot, por exemplo, era, nessa época, um jovem capitão, apenas. Talvez Junot ainda tivesse o sangue a ferver e a avidez da vitória, mas ele, Massena, estava cansado de campanhas militares e de viver boa parte da vida no lombo de um cavalo.

No mês dedicado às mulheres, o É Desta Que Leio Isto celebra a escrita no feminino com a leitura de "Uma Paixão Simples" de Annie Ernaux. A convidada para a sessão — marcada para 23 de março, pelas 21h — é Cátia Vieira, escritora, influencer literária e assumidamente fã da escrita da Nobel francesa.

Romancista a dar os primeiros passos na carreira, Cátia Vieira publicou "Lola" em 2021, estando a trabalhar no segundo. A sua paixão pela literatura e o ritmo com que acumula leituras estão bem documentados na sua conta de Instagram, onde tem mais de 50 mil seguidores, sendo assumidamente uma fã de Annie Ernaux.

Além de ter um percurso académico ligado às letras — com licenciatura e mestrado em Estudos Portugueses e doutoramento em Modernidades Comparadas, na Universidade do Minho —, Cátia Vieira fundou a Alma Interior Design Studio, uma marca de design de interiores, e faz trabalho freelance nas áreas da comunicação e do marketing.

Quanto a "Uma Paixão Simples", é um dos romances com que Annie Ernaux construiu a sua reputação literária, tendo a francesa sido a vencedora do Prémio Nobel da Literatura de 2022.

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Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Nunca quisera o comando daquele exército, estava ali sem ânimo nem ambição, por vontade expressa do imperador. Aceitara aquela incumbência porque não tivera alternativa ninguém dizia que não a Napoleão Bonaparte , mas lAre de Portugal*  não lhe agradava, não lhe interessava nem lhe convinha. Só ele sabia a que ponto estava contrariado com aquela campanha na Península Ibérica.

Para lhe mitigar as dores e dar um pouco de conforto doméstico, trouxera consigo Henriette Leberton, a sua jovem amante de dezoito anos. Henriette, que o acompanhava vestida num uniforme de hussardo e lhe alegrava os dias e aquecia as noites, rejubilava com aquela aventura castrense e a sua alegria e entusiasmo juvenis faziam-no rejuvenescer um pouco. Era por causa dela que ficava mais tempo na cama, de manhã, e que perdia horas e dias que talvez não devesse perder. Sabia que o seu estado-maior torcia o nariz a algumas das suas decisões, e que se segredava nas fileiras que estavam ali parados em Viseu, dois dias, com a falsa justificação de que seria preciso descansar os cavalos e reparar alguns veículos, quando, na verdade, era apenas para permitir que a bela do comandante máximo se restabelecesse do cansaço da viagem. Ou seria, também, para que ele próprio descansasse? As coisas estavam tão misturadas, tão entrelaçadas, que o próprio marechal não saberia dizê-lo.

Todavia também não queria aprofundar esse assunto (já bastava de interrogações metafísicas). O serviço acumulava-se e era necessário despachá-lo. Deu um beijo agradecido a Henriette, levantou-se da cama, pôs um capote sobre os ombros e passou ao quarto do lado, que lhe servia de antecâmara e sala de trabalho naquela casa viseense onde se aboletara. Acercou-se da grande mesa que ocupava o centro da divisão. Lá chegado, comeu um pouco de pão, bebeu meio copo de vinho tinto e, em seguida, sentou-se junto do tinteiro e das penas para escrever a Napoleão, pedindo condecorações para alguns dos seus homens. Foi uma carta sucinta – duas páginas apenas –, estritamente focada no assunto em causa, finda a qual, bebeu um pouco mais de vinho e se lançou à tarefa obrigatória de comunicar com o chefe do estado-maior do imperador, o marechal Berthier, príncipe de Wagram pessoa por quem não nutria qualquer simpatia –, dando-lhe conta do rumo dos acontecimentos.

Preencheu o cabeçalho da carta de maneira quase mecânica, com as fórmulas habituais, e entrou, depois, na matéria propriamente dita:

O exército avança sem grande oposição do inimigo, mas há dificuldades com que não contávamos. É impossível encontrar piores estradas do que estas. Estão pejadas de rocha e grandes pedras soltas. As peças de artilharia e as carroças têm dificuldade em avançar e sou forçado a esperar por elas. Estou parado em Viseu dois dias por essa razão. Em breve retomarei a marcha para Coimbra, onde, ao que me informam, irei encontrar o exército anglo-português.
Vossa Alteza deve ficar persuadido de que a nossa progressão é feita através de um autêntico deserto. Não se vê vivalma e tudo foi abandonado. As mulheres, as crianças, os idosos, fugiram, e não se consegue encontrar um guia em parte nenhuma. Esta cidade de Viseu, que teria seis a sete mil almas, em tempo de paz, está agora vazia. Não se encontra comida, o que é um grande problema pois já consumimos metade das provisões que trouxemos de Almeida. Os soldados esgravatam a terra lavrada com as baionetas e, quando têm sorte, desenterram batatas e outros vegetais; por vezes arranjam uvas e limões, o que não é grande coisa. Mas por enquanto o espírito é bom e os homens, tal como eu, anseiam pelo momento de se bater com o inimigo. Posso garantir a Vossa Alteza que o exército está animado do melhor espírito.

O marechal parou um pouco para comer mais pão, mas logo voltou a mergulhar o bico da pena no tinteiro para prosseguir a escrita. Redigiu outras duas páginas sobre questões logísticas e estratégicas, e terminou da forma cerimoniosa e respeitosa como sempre fazia quando escrevia a Berthier:

Tenho a honra de ser, de Vossa Alteza, o muito humilde e obediente servidor, André Massena, Príncipe de Essling

Secou a tinta, lacrou as duas missivas e, indo à porta que dava para o corredor chamou o seu filho mais velho, que o acompanhava naquela campanha como ajudante-de-campo.

Quando Jacques Massena se lhe apresentou, apontou-lhe as cartas que haviam ficado em cima da mesa e, após uma seca saudação, ordenou-lhe:

– Fá-las seguir de imediato para Paris.

O filho apressou-se a cumprir a ordem e virou-se tão depressa para sair que quase chocou de frente com o Barão Marbot – outro dos ajudantes-de-campo do pai – que, parado à porta do quarto, pedia licença para entregar o mais recente relatório da intendência sobre reservas alimentares. Massena não o saudou. O barão exasperava-o e se não fosse a amizade que o ligava a um camarada de armas dos bons velhos tempos – de quem Marbot era neto – há muito que se teria livrado dele. Era um insuportável dandy que andava com as costas excessivamente direitas, o porte típico dos peralvilhos militares, e que gostava de exibir todos os tiques da aristocracia rural que o distinguiam dos simples e rudes soldados. Nos dias de batalha tinha por hábito vestir uma camisa lavada e pentear geométrica e irritantemente o bigode com um pente de marfim. A sua vaidade era conhecida e insuportável, e Massena não disfarçava o desagrado que Marbot lhe provocava. Por isso, pegou nas folhas de papel que aquele ajudante-de-campo lhe trazia e, sem dizer palavra, voltou a sentar-se. Depois de as ler praguejou entre dentes. Aquele relatório da intendência confirmava os seus piores receios: a situação agravava-se.

Até ao Fim da Terra
Até ao Fim da Terra créditos: Porto Editora

Livro: "Até ao Fim da Terra"

Autor: João Pedro Marques

Editora: Porto Editora

Publicação: 9 de março

Preço: € 15,98

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Levantou-se da cadeira, agitado, e dirigiu-se à mesa para comer mais pão. Duas moscas gordas de Setembro haviam pousado na côdea, esfregando as patas umas nas outras e, sentindo uma inesperada repugnância, o marechal mudou de ideia. Detestável terra, aquela! Maldito Portugal e maldita Espanha, também. Maldita Península Ibérica, um sítio cheio de moscas onde os pequenos exércitos eram vencidos e os grandes, como o seu, morriam de fome. Tinha de apressar a campanha, que já se atrasara desnecessariamente em Ciudad Rodrigo e em Almeida, dois escolhos e dois contratempos no caminho para Lisboa. Decidiu, por isso, que iria partir nessa mesma manhã. Por Tondela e Mortágua, e pela margem direita do Mondego, chegaria rapidamente a Coimbra e daí até à capital de Portugal seria apenas uma questão de dias.

*

Já há vários minutos que o capitão Bento José Calheiros forçava os olhos na tentativa de divisar algum movimento para leste, mas o dia nascera com muita humidade junto ao solo e havia um espesso lençol de nevoeiro que escondia na totalidade as zonas baixas do terreno à sua frente. Contudo, se não via nem ouvia o inimigo, conseguia sentir-lhe o cheiro e continuava ansiosamente à espera de ver emergir da bruma um mar de barretinas e de baionetas francesas. Os cavalos também estavam tensos, como se sentissem o mesmo. Arrebitavam as orelhas, batiam, inquietos, com as patas dianteiras no chão, escavavam a terra com os cascos, mordiam o bocal. Pairava uma ameaça crescente no ar e o capitão sabia, como qualquer um dos combatentes que, junto a si, agarrava o seu fuzil ou apertava nervosamente o punho do sabre, que milhares dos melhores soldados do mundo tinham começado a subir as ladeiras da serra do Buçaco à conquista da linha anglo-portuguesa.

Posicionado numa das extremidades do dispositivo defensivo, o capitão Calheiros integrava os esquadrões de cavalaria portuguesa que, juntamente com o regimento n.º 13 de dragões ligeiros inglês, haviam ficado incumbidos de vigiar os vaus do Mondego e do Alva para defender a ponte de Mucela. Tinha, nas suas costas, uma divisão de infantaria portuguesa, e, mais para norte, o resto do exército anglo-português e a serra do Buçaco, obstáculo geográfico com que Wellington contava para impedir a progressão das forças napoleónicas. De facto, a vertente virada para o exército francês era alcantilada, repleta de rochedos pontiagudos e cortada por barrancos profundos, cobertos de espessa vegetação. Seria difícil de transpor, mas naqueles momentos de expectativa o capitão Calheiros nunca olhou para as particularidades do relevo nem para os homens que tinha atrás de si. A sua atenção estava fixada nos cursos serpenteantes dos rios Alva e Mondego e, lá mais para longe, nos pontos onde imaginava os bivaques do exército francês.

De súbito o estalejar dos fuzis, ao qual se sobrepunha o estrondear da artilharia, ouviu-se ao longe, à sua esquerda, e veio confirmar-lhe a intuição. Era o ataque francês que começava ao raiar daquele dia 27 de Setembro de 1810. Vinham aí os sessenta e quatro mil homens que Napoleão lançara de novo contra Portugal, e Bento Calheiros endireitou-se no cavalo, sondou ainda melhor a maldita opacidade que tinha em frente dos olhos e percebeu que o coração acelerava. Enquanto perscrutava o nevoeiro sentia uma confusa mistura de nervosismo, expectativa e impaciência, pois tinha simultaneamente receio e vontade de entrar em acção. Não estava calor, mas apeteceu-lhe um copo de água para lhe servir de refrigério. Seria do medo? Nos últimos dias dissera a si próprio que era contra a terrível infantaria francesa que queria medir o seu valor e obter a honra adquirida por aqueles que lutam. Estava carente dessa honra. Se bem que já tivesse vinte e cinco anos, ainda só estivera uma vez em combate e a morte andara, então, muito perto de si. Não a temia, mas a inesperada recordação desse difícil momento do seu passado introduziu um factor suplementar de enervamento nas dificuldades daquela manhã.

*O Exército de Portugal.