M de Mulheres

“Podia ser ‘mãe coragem e os seus filhos’. Kamila Yaftali era diretora de uma escola secundária. Os talibãs chegaram ao poder, ela foi afastada da escola e do direito de trabalhar. E de ter voz para ser ouvida. A voz da mulher só podia ser ouvida pelos seus familiares. Mulher de armas. Não baixou os braços. Começou com quatro alunas e atravessou o governo talibã com uma escola secreta, que nesta hora de mudança de regime (em 2001), “tem 180 alunas. Aprendem o Islão e as leituras do Corão. Mas também a língua dari, história, biologia, física e química, matemática e inglês.” A senhora professora Kamila conta que não foi fácil manter a escola durante o tempo dos talibãs: “Eles apareciam e perguntavam o que era isto? Que curso era? E eu respondia-lhes que era uma escola corânica e de costura. Uma vez vieram oito, armados, as crianças fugiram para as salas e começaram a gritar por socorro: foi muito estranho.” Do regime do mullah Omar sofreu pressões, agressões, ameaças e viu familiares serem torturados, mas foi aí que decidiu não desistir. “Para me pressionarem a fechar a escola, os talibãs torturaram o meu cunhado durante uma semana, mas foi então que decidimos que não podíamos parar.” A escola tinha de continuar. A professora Kamila e os três professores que a ajudam recebem dos alunos, por mês, um total de 90 dólares. Kamila Yaftali quer que os direitos das mulheres existam e sejam defendidos e que estas 120 raparigas e 120 rapazes possam ser boas pessoas e bons profissionais, E claro, deseja paz para o Afeganistão. O que terá sido feito da professora Kamila? Localizo-a no Facebook, esse instrumento bastante útil para este fim e pouco mais. Lembro-me da peça televisiva. Havia burcas azuis a secar no estendal, no pátio. O Paulo Maio Gomes fez imagens lindíssimas – como fazia e faz sempre com uma rosa desfocada em primeiro lugar e a burca a esvoaçar, no estendal, ao fundo. Tenho escrito no bloco de notas que a peça tinha 2’16.” Dois minutos e dezasseis segundos. O tempo máximo que eu pude dar à história daquela mulher que tinha tanto para contar. Nesse mesmo dia assisti à conferência de imprensa de alguém que fazia questão de dizer que os “talibãs não representam qualquer grupo étnico do Afeganistão. Eram uma força política e militar.”

Em fevereiro recebemos Rita da Nova e Joana Silva

Rita da Nova e Joana da Silva são as convidadas do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 24 de fevereiro, pelas 21h.

Iremos conversar a obra de Elena Ferrante e mais concretamente sobre "A Filha Obscura", novela integrada em "Crónicas de Mal de Amor", livro editado em 2014 pela Relógio d'Água. A conversa surge também no âmbito da adaptação desta história ao cinema, com o nome de "A Filha Perdida".

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Além disso, pode ficar a par de tudo o que acontece no clube de leitura através deste link.

Vinte anos depois de terem sido corridos, foi-lhes estendida uma passadeira vermelha até ao poder. Por estes dias de 2001, falava-se na necessidade de trazer de volta os expatriados para ajudar a reconstruir o país. Na verdade, há quanto tempo o Afeganistão anda a ser reconstruído? E destruído? A ideia, à época, de trazer gente qualificada de volta ao país passava por compensar as pessoas por aquilo que deixavam de ganhar no estrangeiro. Mas também se receava os efeitos das comparações, com a miséria que ganhavam, para subsistir, aqueles que não puderam deixar um país mergulhado na não-existência.

O chamado Hospital das Mulheres, em Cabul, com policlínica e maternidade, tinha desde 1999 apoio do ACNUR e da OMS. Ginecologia e obstetrícia, dermatologia, medicina interna. A médica Rahima Zafar Staneczai, profissional há dez anos, diretora há três, guia-nos pelo Rabiya Balkhi, o Hospital de Mulheres. Mostra-me os dois blocos operatórios para ginecologia e obstetrícia. Trabalham aqui 250 pessoas, entre 65 médicas, 75 enfermeiras, outro tanto de pessoal auxiliar. Só mulheres. Só na administração, onde mais poderia ser, há homens. Duzentas e cinquenta camas. Só um microscópio no laboratório principal. Só fazem exames de rotina. A falta de material essencial é assustadora. “A falta de medicamentos é considerável”, diz. “Não temos material suficiente nem medicamentos. E precisamos de ambos.” Raio X? A placa diz “Not available.” Reconhece que os doentes evitam ir ao hospital. Quem cá trabalha não tem para onde ir, apesar de os salários não ultrapassarem os dez dólares mensais e de já não serem pagos há quatro meses. Numa enfermaria, é-me apresentada uma mulher que aceita falar. “Gravidez de risco, por isso veio para cá”, traduz o Harash. Fez “dois dias de viagem” desde a sua aldeia até aqui chegar. Contra a parede está um radiador que mal funciona, preso à rede por fios soltos de aparência assustadora. Ao lado da cama, há um tubo de plástico amarelado, unido ao braço da paciente por um cateter igualmente antigo. Debaixo do lavatório do outro lado da cama, está uma caixa de metal cheia de curativos usados e cascas de fruta.

Fomos ao hospital naquele dia, mais concretamente ao Instituto de Medicina Infantil Indira Ghandi, a única unidade pediátrica pública do país, porque um corte de eletricidade – frequente numa rede danificada por bombardeamentos – na unidade de neonatologia tinha provocado a morte de vários bebés. Mostram-me um recém-nascido acabado de morrer. Teve um fio de vida. Foram vários assim naquela manhã que a máquina de oxigénio precisa de eletricidade para funcionar. “O gerador é fraco, só chega até ao segundo andar”, diz-me a enfermeira Nadra Zodoram. Sempre que havia bombardeamentos, os doentes eram evacuados para os pisos inferiores. Mustafa Zmaray, presidente do hospital, diz-me: “No verão, o que mais temos são casos de diarreia, e também alguns de meningite. No inverno tivemos infeções pulmonares, também casos de má nutrição. Aliás, casos de má nutrição temos todo o ano. Muitos.”

Mães em pranto. Dor infinita. Aguentei lá dentro só mais uns minutos. Não havia nada para perguntar. Conseguia imaginar como se sentiam, mas proibi-me de pensar em questioná-las. Pedi para sair da sala. Um na garganta. O Paulo ficou a fazer uns planos, imagens, daquele desespero. Belos planos, porque discretos. Respeitadores daquele sofrimento sem fim. Quando saiu, o Paulo pôs-se a filmar o exterior do hospital. Uma pessoa, jornalista e mulher, estava a entrar e atravessou-se à frente da câmara. Estragou aquela filmagem. Percebeu o que tinha feito uns passos depois. Voltou para trás. Pediu desculpas, melhor, desfez-se em desculpas. O Paulo ganhou o dia. Era Christiane Amanpour.

O Afeganistão era então o país do mundo com os valores mais elevados de mortalidade infantil. Em cada mil crianças nascidas, 165 não chegavam a completar os primeiros 5 anos de vida. Foi também o tempo de conhecer Marina. Saiu criança do Afeganistão, mas sempre regressava a Cabul. Clandestinamente, como clandestina tinha de ser a vida das mulheres da RAWA, a Associação das Mulheres Revolucionárias do Afeganistão: “Não nos parece que a situação no Afeganistão tenha mudado. Para nós é a mesma coisa. O sistema é o mesmo, os mandantes é que mudaram. Saiu um monstro e entrou outro.” A tradição existe e continuará a existir. Marina não tem dúvidas: “O facto de continuarem a usar burca significa que têm medo da Aliança do Norte. Não podemos esquecer aquelas raparigas que foram violadas, as que foram esquartejadas para ver se estavam grávidas, aquelas a quem arrancaram os olhos, as mulheres a quem arrancaram os seios, violaram e mataram, os corpos nus postos em caixas. Essas coisas não podem ser esquecidas. Os pais e irmãos que mataram as suas filhas e irmãs para que não fossem violadas pelos jihadistas. São coisas que o mundo ocidental não consegue compreender, não encara seriamente. Mas passou-se connosco. É algo inconcebível para um homem afegão ver a mulher ser violada diante dele. Ele morre. Não aguenta. É de mais para ele. Ou quando dá à luz em frente àquela gente e depois morre, o bebé morre e o marido enlouquece. Não podemos esquecer.”

Marina apresentava-me argumentos para que eu entendesse que, para as mulheres afegãs, o fim do domínio talibã não era o fim dos problemas nem motivo para êxtase: “Não encaramos isto como uma coisa do outro mundo. As pessoas têm tendência para pensar que a burca é o maior problema para as nossas mulheres, mas não é. A Aliança do Norte tem sede de poder e só o quer agarrar; para isso precisam da atenção do mundo. E como é que o fazem? Fingem que são democratas, que dão oportunidades às pessoas, mas deixem-nos agarrar o poder e depois vamos ver o que acontece. Por exemplo, dizem que as mulheres podem sair de casa, podem ir à escola, podem ir trabalhar, podem ir fazer compras. Mas pode haver paz e segurança sob um governo fundamentalista? Pensamos que não.” A ativista da associação revolucionária das mulheres afegãs não tem dúvidas sobre aqueles que ascenderam ao poder em 2001: “Não têm moral, nem valores respeitáveis. Durante aquele período entre 1992 e 1996 lutavam entre si, as pessoas disseram que era preciso acabar com a guerra, foram chamados ao Paquistão e assinaram acordos de paz em frente aos respetivos mestres paquistaneses e iranianos. Regressaram e voltaram ao mesmo. Foram ao Irão, aos países da Ásia Central, a mesma coisa. Foram levados até Meca, o centro religioso do Islão e fizeram promessas diante de Deus. Regressaram e recomeçaram a guerra. Como se pode confiar neles? Preferimos o cão do rei Zair Shah à Aliança do Norte e espero não estar a ser insultuosa para com o cão ao falar desta forma.”

O que mudou na vida das mulheres afegãs entre 2001 e 2021? O que melhorou nos seus direitos nas duas décadas de presença americana e internacional no Afeganistão? O que significa agora o regresso dos talibãs ao poder? Depois da entrada triunfal dos talibãs em Cabul, as promessas de respeito pelos direitos das mulheres foram sendo recebidas com tremendo ceticismo, até porque foram muitos os casos de mulheres mandadas para casa, quando estavam nos locais de trabalho, por “razões de segurança.” Ou dispersadas com tiros para o ar quando se manifestavam para fazer valer os seus direitos ao trabalho e à educação, conquistados em 20 anos de presença internacional no país, ainda que as beneficiárias possam ter sido uma ínfima minoria das mulheres afegãs. Expectativas de uma maior abertura foram sendo contaminadas por sinais de que tal não estará para acontecer, quando a música é novamente proibida ou jogos de cartas são interditos.

É contra isto que luta Zafira Ghafari. Nascida em 1992 em Darakhel, na província de Wadark, a meia centena de quilómetros de Cabul, ela quer ser voz das mulheres afegãs no mundo. Foi autarca em Maidan Shahr, perto de Cabul, quando tinha apenas 26 anos. A autarca mulher mais jovem do Afeganistão. Os talibãs tentaram matá-la três vezes, a primeira das quais em março de 2020. O pai, ao saber que a filha tinha escapado, não deixou de lhe dizer: “Vai voltar a acontecer, foi o caminho que escolheste ao entrar na política.” Entende que foi dentro do seu próprio gabinete que os talibãs obtiveram informações para a tentarem matar. Caíam em saco roto os apelos ao governo afegão para que a polícia garantisse a sua segurança e a da sua família. O pior acabou por acontecer.

Assassinaram-lhe o pai, Abdul Wasi Ghafari, coronel do exército, com três tiros na cabeça, à porta de casa. No dia em que a tia lhe levara o vestido de noiva que o pai não chegou a ver nela vestido, mas cujo momento antecipava entusiasmado: “Que bonito que é, vai ficar tão bonita com este vestido.” O mundo veio abaixo. “Em vez de um vestido de noiva trazido da Alemanha, vi o cadáver do meu pai, estendido à porta de casa, em Cabul.” Estávamos em novembro de 2020. “Ele era muito exigente, mas a pessoa mais importante da minha vida, amava-o muito.” O pai que lhe ensinou a não ter medo de ameaças e a fazer sempre o que queria. O pai que dela se orgulhava e assim se exprimia no Facebook. A última tentativa para a matarem tinha sido apenas três semanas antes. Saiu de Maidan Shahr e foi trabalhar para o Ministério da Defesa, onde estava quando os novos velhos barbudos chegaram. Os colegas de gabinete avisaram-na para fugir, ao telefone foi falando com a família para garantir que todos estavam em segurança. Especialmente preocupada com uma irmã, estudante na faculdade, que estava na rua e não tinha como voltar para casa. Foi ao encontro dela, acompanhada pelo marido. Para não ser reconhecida, comprou um hijab, a 2500 afegânis, quatro vezes o preço habitual. A lei da oferta e da procura. Ainda os barbudos talib estavam a chegar e já os comerciantes ganhavam dinheiro com o que, sabiam-no bem, ia voltar a ser indumentária mais do que obrigatória. Caminhou dez quilómetros depois de deixar a irmã na casa da família, até voltar à sua própria casa.

Quando os talibãs tomaram o poder, Zafira decidiu fugir à morte certa. Em 2021, foi uma das 11 mulheres afegãs nomeadas – em conjunto – em 2021 para o Prémio Shakarov dos direitos humanos e liberdade de pensamento que o Parlamento Europeu atribui anualmente: “É importante para o meu povo e para mim, principalmente como mulher, porque assim sabemos como o nosso trabalho é reconhecido por pessoas que realmente conhecem a nossa força e estão a valorizar isso. Sabe muito bem”, diz-me na esplanada do jardim da Associação Corações com Coroa (CCC), de Catarina Furtado, em Lisboa. Este prémio é um dos mais importantes na Europa nesta área. Ghafari sabia que isso iria dar mais visibilidade à sua luta: “Vai mostrar mais aos países europeus e aos cidadãos europeus que lutamos incansavelmente pelos direitos humanos, não apenas pelos direitos da mulher. Sinto-me muito bem com isso e fico muito feliz em ter sido indicada ao lado de tantas mulheres, mas é sempre uma surpresa.” O prémio acabou por ir para o russo Alexei Navalny.

Breve História do Afeganistão
créditos: Oficina do Livro

Sobre a sua saída do Afeganistão, reconhece que foi “e é um pesadelo, foi um trauma e ainda é – ainda estou a passar por isso – mas a única coisa que quero dizer agora é que estou feliz por poder usar todas as plataformas para falar em nome do povo sem voz do Afeganistão.” Zafira tinha dito publicamente que não se iria embora do Afeganistão, que iria esperar que eles, os talibãs, viessem para a matar: “Eu estava à espera deles, a esconder-me de sítio em sítio durante cinco dias com a cidade sob controlo dos talibãs. Foi muito difícil. Mas no último momento, quando levei toda a minha família para o aeroporto, a questão era mais sobre a minha responsabilidade para com a minha família, trazê-los para um abrigo seguro. Na verdade, o meu marido e a minha mãe forçaram-me, insistiram, disseram:

‘Não é hora de ficares aqui porque vais ser morta e não vais poder fazer nada; se ficares viva, serás a voz do povo, poderás fazer coisas para o bem-estar do teu país e do teu povo.’ Então… foi difícil. Difícil como nunca alguma dor na minha vida, aquela decisão de deixar o país. Deixei o Afeganistão com um pouco de areia no meu lenço, areia da minha pátria no meu lenço e isso é algo que sinto que me motiva para cheirá-lo o tempo todo. É sempre tão bom! Ao embarcar no avião eu não me sentia capaz de levantar os meus pés. Sentia que os meus pés não estavam a ir comigo. Era como se tivesse saído de mim. De facto, nesse momento a única coisa que me deixou um bocadinho melhor e confortável, foi cheirar um bocado de areia que apanhei do chão e meti dentro de um lenço e que aconcheguei junto do coração. Mas sim, essa foi a pior – porque mais difícil – decisão da minha vida e eu realmente conto os dias, horas, minutos e segundos para voltar para o meu país porque é a minha casa. Onde mais pode ser a nossa casa fora do nosso país?” Trouxe os álbuns de fotografias das cerimónias de noivado e casamento e três discos rígidos, “onde está toda a minha vida.” Não se esqueceu do uniforme militar, “para ocasiões especiais como o Dia da Independência.” Pouca roupa, poucos sapatos. Partiu.

A Índia, onde estudou, não era casa para si e talvez leve tempo até se habituar que a Alemanha é a sua nova casa. Alguém que cresceu num tempo de liberdade em Cabul, que tomou conta dos irmãos mais novos, que lutou para promover as mulheres afegãs numa associação que fundou, que criou uma rádio, a Perghla FM que a catapultou para a política local e para a candidatura ao município de Maidan Shahr, a conservadora capital provincial de Wardak, tendo a concorrer outros 137 candidatos – todos homens – e ganhou, não terá medo do desafio da integração numa capital europeia.

Para Portugal, um dos países incluídos no seu périplo europeu, antes de rumar a Washington, onde iria receber o prémio Courage, afirma trazer “três mensagens ou três pontos-chave. Em primeiro lugar, forçar os vários países que vou visitando a pressionar o Paquistão a parar com as interferências no Afeganistão, porque o Paquistão está diretamente a invadir o meu país. O Emirado Islâmico, que é liderado pelos talibãs, através da rede Haqqani, que é uma rede terrorista que o Paquistão criou no Afeganistão, provocou a atual grande crise de direitos humanos. Em segundo lugar, falar em nome das mulheres e das suas conquistas, os ganhos e as perdas, a mensagem que a comunidade internacional trouxe ao Afeganistão.

Em último lugar, procurar assistência e solidariedade em todos os países europeus, para ajudar aqueles que estão mesmo a precisar de ajuda urgente. Nem se trata tanto de retirar esta ou aquela pessoa do país, mas sim porque estão mesmo em risco de vida. Em suma, procurar assistência e fornecer ajuda humanitária e ajuda para projetos educativos para as mulheres no Afeganistão.”

A presidente da Câmara de Maidan Shahr, muito pequenina (quatro anos, nasceu em 1992), quando os talibãs chegaram ao poder na primeira vez, lembra-se de ter ido com gente mais velha a uma escola que tinha de funcionar numa cave para poder ensinar meninas mais velhas que já usavam burca (na altura obrigatória para todas as raparigas a partir da puberdade) sabe que, hoje em dia, fazer chegar ajuda humanitária ao país implica estabelecer pontes de diálogo com o novo poder no país. Está disposta a conversar com os homens que lhe assassinaram o pai: “Estou muito ansiosa e interessada em conversar com eles, realmente quero falar com eles, dizer-lhes como nos sentimos a olhar para eles, dizer como estupidamente estão a abandonar o povo, como estupidamente estão a invadir o nosso país, por causa de agendas estrangeiras, agendas paquistanesas.”

Zarifa queixa-se do tremendo erro da comunidade internacional, ao ter colocado o governo afegão “fora das negociações com os talibãs e fizeram acordos diretamente com os talibãs, o que realmente provocou uma grande confusão no Afeganistão.” Diz que o Ocidente perdeu assim a guerra para um pequeno grupo de terroristas, mas que os erros no Afeganistão começaram logo em 2001: “Primeiro, foi um grande erro porque eles vieram ao Afeganistão para destruir a Al-Qaeda, para matar o líder da Al-Qaeda, quando ele estava noutro país, num abrigo muito seguro perto de um grande campo do exército no Paquistão e toda a gente sabia disso. E em vez de irem para lá, eles vieram para o Afeganistão. E agradecemos as mudanças que aconteceram com essa interferência, mas por fim, venderam-nos facilmente de volta aos nossos inimigos, fazendo acordos com os talibãs antes de qualquer acordo com o povo afegão. Sim, é uma grande perda. Eles conseguiram e estou realmente surpreendida com o modo como o mundo se comporta. Perderam uma guerra para um pequeno grupo de terroristas. Foi como se eles tivessem dito ‘mãos ao ar’ e os americanos renderam-se. É realmente uma grande confusão. E não sei por que aconteceu. Fico surpreendida como o primeiro-ministro do governo paquistanês Imran Khan e o MNE fazem lóbi para os talibãs, aberta e descaradamente, agem como porta-vozes dos talibãs. É algo que me deixa realmente surpreendida, como é que um país artificial – o Paquistão não é um país natural, mas sim feito pelo Império Britânico – hoje é um país que é um grande problema para toda a gente e toda a gente desiste das guerras e dá-lhes tudo. Realmente, fico pasmada com isso!”

afeganistão
créditos: AFP or licensors

Aos 26 anos, foi das primeiras mulheres a assumir um cargo de relevo no Afeganistão, presidente da Câmara de Maidan Shahr. Imagino quão difícil terá sido trabalhar naquelas condições, numa província com caraterísticas sociais muito conservadoras e patriarcais, mesmo que os talibãs não estivessem ainda no poder: “Foi difícil, foi sempre muito difícil. Fui atacada três vezes, perdi o meu pai por causa disso. Foi muito duro, mas o mais assustador era ser a única mulher a caminhar pela cidade sendo a única mulher no governo da cidade, a liderar uma equipa só de homens, numa sociedade dominada por homens. Foi bom enquanto mudança na sociedade, mas foi duro, como pode imaginar.” “E perdi o meu pai”, volta a dizer, enquanto baixa a cabeça. A filha do antigo coronel não tem dúvidas: “Foi só para me pararem, mas não foi uma coisa dos talibãs locais, foi sempre algo planeado pelo ISI, os serviços secretos paquistaneses, para me impedirem de falar contra eles e trazer para cima da mesa os seus jogos sujos.” Não receia que agora a tentem eliminar, estando fora do país? “De facto, quando se trata do ISI e dos serviços secretos do Paquistão, se conseguem atacar o Black Lives Matter nos EUA, eles podem encontrar-te e apanhar-te em qualquer sítio. Eu não tenho medo de perder a vida; se saí do país, não foi por isso, foi para poder usar todas as plataformas para falar. Enquanto estiver viva, continuarei a fazer o mesmo.” Lembra-se de como foi o seu primeiro dia em funções na câmara de Maidan Shahr: “O primeiro dia foi tão difícil… Quando entrei no meu gabinete, depois de finalmente ter conseguido o decreto para assumir funções, vieram com paus e não me deixaram entrar no meu escritório. Quando nove meses depois de ter sido eleita, voltei a ter possibilidade de entrar no meu gabinete, vi como a minha equipa saiu do gabinete, abandonaram-me, ignoraram que trabalhavam comigo. Mas eu disse: não quero saber, vou fazer o meu trabalho, eu tinha a certeza de que isso acabaria por resultar, porque eu era tão obstinada e direta em relação às minhas responsabilidades, em relação ao meu objetivo e àquele gabinete… então sim, foi difícil, mas foi bom.

No início, tentei dizer-lhes ‘eu não sei nada, estou aqui para aprender convosco, continuem a fazer o vosso trabalho como até aqui’… Depois, aos poucos, comecei a fazer pequenas revoluções. O maior feito que consegui, e estou mesmo orgulhosa disso, foi tirar de lá toda uma equipa corrupta e trazer pessoas novas, educadas e nomeá-las para o gabinete. O maior problema de uma cidade como Maidan Shahr é a forma como eles tratam e se comportam com as mulheres, as ideias que têm, as ideologias extremistas do homem da guerra, entendem que o direito da mulher é ir da casa ao túmulo, dar à luz filhos, cuidar dos homens, lavar e limpar e cozinhar, ficar em casa. E é isso. Então, o único objetivo para mim era provar que isso estava errado e provar que nós, mulheres, também podemos ser líderes.”

Breve História do Afeganistão
créditos: Oficina do Livro

Livro: Breve História do Afeganistão

Autor: Ricardo Alexandre

Editora: Oficina do Livro

Data de lançamento: 8 de fevereiro

Preço: € 17,91

Em Portugal graças ao apoio da Women in Tech, organização global sem fins lucrativos que defende o empoderamento das raparigas e mulheres em todo o mundo tendo como prioridade o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5b que fala no “aproveitamento das tecnologias”, desde que chegou à Europa, Zarifa Ghafari já se reuniu com líderes europeus como a chanceler alemã, Angela Merkel, a ministra da Igualdade de França – Elisabeth Moreno – e a presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo. A crise humanitária no Afeganistão levou a Associação CCC a juntar-se à Cruz Vermelha Portuguesa para a criação do fundo #Juntos Acolhemos, que até 31 de dezembro pretendeu dar resposta a necessidades específicas no âmbito da educação e saúde de mulheres e crianças refugiadas, em programas de acolhimento, em Portugal. Metade da verba recolhida foi especificamente dirigida a mulheres, jovens até aos 18 anos e crianças afegãs.

Ghafari diz que antes do regresso dos talibãs ao poder, as mulheres afegãs estavam em crescente representação em todos os domínios da sociedade afegã, da política à comunicação social, no ensino, na vida militar. Não eram muitas, mas esperavam “ser cada vez mais.” Lamenta que a comunidade internacional, ao longo de 20 anos, tenha descurado completamente a realidade da mulher afegã do campo, no fundo, “as mais vulneráveis.” Muitas sem qualquer acesso à educação ou à saúde. Agora, refere, “os talibãs tentam apagar a identidade das mulheres, querem fazê-las desaparecer da sociedade. Até cobrem as suas caras nos cartazes. Não as deixam estudar, trabalhar ou sair de casa. Dizem que é ‘por segurança, até que as coisas estejam resolvidas’. Diziam o mesmo há 25 anos. Conversa da treta.”

Também não se pode dizer, em consciência, que, agora que os talibãs chegaram novamente ao poder, tudo vai ficar mal, e não haverá mais direitos para as mulheres, como se nestes últimos 20 anos tivesse sido uma espécie de Eldorado. Na verdade, mesmo que alguma legislação tenha sido aprovada e a Constituição mudada, mesmo que muitas mulheres tenham participado crescentemente em várias dimensões da vida pública do país, a verdade é que muitas coisas foram bloqueadas no Parlamento, houve muita oposição tradicional e política a alguns passos mais progressistas que a comunidade internacional planeava para o Afeganistão. Muitas das mulheres do Afeganistão não beneficiaram dos milhares de milhões de dólares de assistência e programas de ONG.

Muito também foi feito. Hoje há 27% de mulheres na Câmara Baixa do Parlamento, quase uma em cada quatro está ativa no mercado de trabalho, desempenhando uma em cada cinco posições na administração pública afegã, uma recuperação considerável rumo a uma situação paritária que existia antes da primeira chegada dos talibãs em 1996. Quando os talibãs saíram do poder pela força cinco anos depois, só 10% das meninas estavam matriculadas no ensino primário, agora são 53%, embora o ensino fundamental e básico só esteja concluído para quatro em cada dez meninas, segundo dados da UNICEF. Cinquenta e seis por cento das mulheres entre os 15 e os 24 anos de idade, comparando com 74% dos homens (números de 2018). A fecundidade adolescente caiu para menos de metade (eram 154 nascimentos por cada mil mulheres dos 15 aos 19 anos, em 2000, para 61 em 2021), o que demonstra inequívocos progressos em matéria de liberdade de escolha e diminuição do casamento infantil. Já não há multas ou açoites na via pública para mulheres que mostram os tornozelos, há publicidade a produtos cosméticos e salões de beleza, manicures e cabeleireiros, todo esse comércio tradicionalmente mais dirigido para o segmento feminino da população e que, de imediato, fechou portas mal os barbudos chegaram às portas da capital.

É verdade que ainda havia muita estrada para andar, mas enquanto a houvesse, elas – nós todos – iriam(os) continuar. O regresso dos talibãs ao poder foi como se a estrada tivesse sido apagada, tirada do caminho. Ficaram, ficámos, sem chão. Assim, é mais difícil para a gente continuar.