Quando Vargas Llosa se tornou vizinho de Gabo [alcunha de Gabriel García Márquez], os dois escritores já se conheciam, literariamente, e por cartas que vinham trocando desde meados da década de 1960. Pessoalmente, encontraram-se, quase por casualidade, em agosto de 1967, no aeroporto de Caracas, com destino ao Congresso Internacional sobre literatura latino‑americana, onde o peruano ia receber o recém‑criado Prémio Rómulo Gallegos pelo seu romance A casa verde (García Márquez seria o laureado da segunda edição do prémio, cinco anos depois, por Cem anos de solidão). Foram alojados no mesmo quarto de hotel. Numa entrevista-conferência de 2017 na Universidade Complutense de Madrid, pela qual é doutorado, Vargas Llosa disse que «a simpatia recíproca foi imediata»; que, na viagem posterior para Bogotá se tornaram amigos; e que, quando partiram da capital colombiana, quase duas semanas depois, «pode dizer‑se que já éramos amigos íntimos». Postos lado a lado, formavam um odd couple: embora não fosse alto, Vargas era um tipo de galã sul‑americano muito em voga, revestido por uma pose «patrícia» algo europeia; Gabo era ainda mais baixo e entroncado, com um ar de campesino acabado de chegar à cidade, embora exibisse um sorriso franco e desar‑ mante. Era um huraño (um tímido) em sociedade, embora num círculo restrito de amigos fosse «loquaz e muito divertido». Vargas Llosa, pelo contrário, movia‑se com à‑vontade em qualquer lugar, era «atraente, amável, perigosamente sofisticado». Mas foi em Barcelona, algum tempo depois, que se aprofundou essa amizade espontânea, potenciada pelo conhecimento que ambos tinham da obra literária um do outro. Em Paris, Vargas, que vivia na Europa desde o final da década anterior, lera Ninguém escreve ao coronel e A revoada; Gabo conhecia A cidade e os cães; e correspondiam-se regularmente desde meados dos anos 1960, tendo chegado a imaginar um romance que deveria ser escrito a quatro mãos (ideia posteriormente alargada a Cabrera Infante e Carlos Fuentes) sobre os ditadores latino-americanos. Por esse meio tinham descoberto o que mais os aproximava: o culto partilhado pela obra de William Faulkner e a consciência, que iam adquirindo, da sua condição de escritores latino-americanos, muito despertada pelo sucesso da Revolução Cubana. No número de abril de 1967 da revista argentina Primera Plana, Mario Vargas Llosa publicara uma das primeiras recensões críticas entusiásticas a Cem anos de solidão:
Uma prosa marcadamente clara, uma perícia técnica infalível e uma imaginação diabólica são as armas que possibilitaram este feito narrativo, o segredo deste livro excecional.
Vargas consideraria aí que o livro de Gabo era o grande «romance de cavalaria» da América Latina. Mas, em 1967, Vargas era muito mais conhecido do que Gabo, em grande parte devido ao sucesso de crítica e de público do seu romance A cidade e os cães, com o qual praticamente se estreara em 1963, aos 27 anos de idade, e que ganhara o Prémio Biblioteca Breve. Mesmo assim, «deslumbrado» (a palavra é do próprio) com Cem anos de solidão, Vargas Llosa começaria a dar cursos, em Porto Rico, em Londres, finalmente em Barcelona, sobre a obra literária do seu companheiro de letras, que se tornaria um dos seus melhores amigos. E acabaria por defender a sua tese de doutoramento em Madrid, em 1971, exatamente sobre a escrita de García Márquez.
Além disso, como toda a sua geração, e as personagens dos seus primeiros romances refletem isso mesmo, Mario Vargas Llosa começara por ser esquerdista, simpatizante das ideias marxistas, ativo no apoio à Revolução Cubana e, portanto, descobrira-se companheiro de García Márquez. Este tinha do «socialismo real» uma visão algo desencantada: dez anos antes, percorrera os países do Leste da Europa e apercebera-se das limitações reveladas pelos partidos comunistas aí dominantes para ir ao encontro das aspirações e expectativas que o pós-guerra desencadeara. Mas Cuba era um caso diferente: nos primeiros anos da Revolução, voara para Havana, onde começara a trabalhar na agência Prensa Latina, com o seu amigo Plinio Apuleyo Mendoza. Porém, quando o Partido Comunista cubano tomou as rédeas do poder, ambos foram marginalizados, por suspeita de serem contrarrevolucionários, o que era um rematado disparate. Mas a experiência do ostracismo de Estado a que fora votado acabou por marcar indelevelmente o ceticismo de García Márquez, moderado e quase confidencial, que contrastava abertamente com o entusiasmo acrítico dos seus amigos de Barcelona (entre os quais, Vargas Llosa), que não tinham tido a experiência direta da revolução empreendida por Fidel Castro.
Mas esta espécie de unanimidade para o exterior abriu fissuras em 1971, quando eclodiu o «caso Padilla». Herberto Padilla era um poeta que se distinguira como colaborador de importantes publicações na Cuba pós‑revolucionária. Apesar da sua fidelidade à ideia original da Revolução, entrou em conflito com os poderes estabelecidos pela primeira vez em 1968, quando defendeu por escrito o romance Três tristes tigres de Guillermo Cabrera Infante, outro revolucionário da primeira hora que, no entanto, se exilara em Londres a partir de 1965. Em 1971, tendo-se agravado a sua dissidência com a burocracia revolucionária, Padilla foi despedido de todos os seus cargos e detido, sob a acusação de ser um agente da CIA. O grupo de Barcelona, com Vargas Llosa à cabeça, animou uma carta aberta de protesto ao governo cubano, à qual se juntaram nomes como Susan Sontag ou Jean-Paul Sartre. Mas García Márquez não a subscreveu, talvez porque entendia que, quais‑ quer que fossem os acidentes de percurso, Cuba continuava a ser o farol que iluminava o caminho da América Latina para o socialismo. Padilla acabou por ser libertado, mas prestou-se a uma infamante autocrítica pública, que lhe garantiu a liberdade mas destruiu a credibilidade como dissidente do regime cubano. Para Vargas Llosa, o episódio assinalou a sua rutura com o regime de Fidel Castro, que passou a criticar abertamente; mas García Márquez manteve-se fiel à revolução e a el comandante até ao fim da vida. Vargas Llosa tem uma explicação curiosa para esta fidelidade: Gabo, diz, era «um homem prático», que sabia que romper então com o regime cubano lhe atrairia «um banho de lama», sobretudo por parte das forças de esquerda. Preferiu «não fazer ondas», evitando assim a campanha de difamação que, nos anos seguintes, envolveu o nome dos seus amigos dissidentes. Alguns críticos e historiadores consideram que o «caso Padilla» marcou o final do boom; mas esta tese é dificilmente sustentável porque, embora possivelmente tenham evitado confrontos ideológicos nos anos seguintes, mantiveram‑se como grupo, literária e pessoalmente, afim, até à partida de Barcelona de Vargas Llosa, em junho de 1974, e de García Márquez, no ano seguinte. Há fotografias da refeição com que despediram Varguitas, nas vésperas da partida. Numa delas aparecem o homenageado e Carmen Balcells, em casa de quem se celebrava o encontro, Gabo e o chileno Jorge Edwards, José Donoso e o cineasta espanhol Ricardo Muñoz Suay; noutra, surge Vargas Llosa rodeado por um grupo de mulheres: Carmen e Mercedes Barcha (a mulher de Gabo), Pilar Donoso e a mulher de Jorge Edwards, Nieves Suay e a assistente de Carmen, Magda Oliver. É portanto difícil encontrar aí as raízes da rutura entre os dois, que aconteceu cinco anos depois da prisão e subsequente autocrítica de Padilla: durante este tempo, mantiveram estreito convívio, viajaram juntos, continuaram a corresponder‑se. Iam frequentemente a Perpignan e a Andorra ver filmes proibidos em Espanha; e juntavam‑se para fins de semana campestres em grupos de geometria variável, nos quais, aos «indefetíveis» Gabo e Varguitas, se juntavam os Muñoz Suay, Terenci Moix, Félix de Azúa. É, enfim, de excluir qualquer inveja de sucesso literário, insinuada pelo biógrafo de Gabo9 , porque ambos eram já célebres e sobretudo Vargas Llosa nunca poupara elogios ao seu companheiro de letras – e nunca lhos regateou mesmo depois da rutura.
Na realidade, não se sabe ao certo por que razão Vargas Llosa desferiu um poderoso jab de direita em Gabo, naquele dia de fevereiro de 1976, deixando‑o com uma enorme nódoa negra no olho esquerdo, incidente que o colombiano não deixou de fixar, dois dias depois, para memória futura, em fotografia bem-humorada, reproduzida à saciedade. Um e o outro nunca falaram sobre isso e, sentindo que o entrevistador se aproximava do assunto, na sessão de 2017, Vargas Llosa soltou uma gargalhada divertida: «Creio que entramos em terrenos perigosos. Talvez esteja na hora de dar por finda esta entrevista…» O confronto (unilateral, segundo todos os testemunhos) descreve‑se em poucas palavras.
Pode ser que os motivos da zanga tenham sido menos nobres que uma profunda divergência política, possivelmente um terrível ataque de ciúmes de Vargas Llosa, num enredo que metia ao barulho Patricia, sua mulher. Talvez. Mas, a ser verdade, isso só pode ter acontecido porque Vargas Llosa, incorrigível mulherengo, uma vez chegado a Lima, saíra de casa para ir atrás de uma bela Susana, que conhecera durante a viagem de barco, coisa que frequentemente lhe acontecia. Quando lhe falavam numa nova aventura amorosa de Varguitas, Carlos Barral perguntava sempre: «É da família dele? Se não é, não é importante.» Vargas Llosa casara-se em segundas núpcias com Patricia, sua prima e sobrinha da primeira mulher, Julia Urquidi, que, aliás, era tia dele. Mas, desta vez, embora não fosse família, a bela Susana parecia ser caso sério: em setembro, voltaram os dois a Barcelona, de onde Mario nunca quisera verdadeiramente partir. Mas, dois meses depois, já estavam separados. Lá está: não era da família… No verão de 1975, com a relação conjugal mais ou menos congelada, Patricia voltou a Barcelona para desfazer definitiva‑ mente a casa de Sarrià e pôr em ordem o que ficara por resolver. Uma noite, foi jantar com Carmen Balcells, Jorge Edwards e García Márquez. Comeram opiparamente, beberam muito e ainda passaram pelo Boccaccio para um último copo. Eram três da manhã e Patricia tinha avião de regresso a Lima cinco horas depois. Gabo ofereceu‑se para levá-la de carro ao aero‑ porto, mas a verdade é que Patricia falhou o voo para Lima. O que aconteceu, nessas horas cruciais? Gabo diz que se perdeu no caminho, o que parece plausível a Jorge Edwards, «porque tínhamos bebido muito». Mas Vargas fez circular mais tarde outra versão: Gabo teria tentado levar Patricia para um hotel afastado da estrada. Mais: durante a viagem teria revelado a Patricia certas relações indiscretas de Varguitas durante os anos em que tinham vivido em Barcelona. Pode ser que, uma vez regressada a Lima, Patricia tenha atirado à cara do marido estas revelações, e insinuado, para lhe fazer ciúmes, que entre ela e Gabo se tinha passado mais qualquer coisa. Se este era o objetivo, pode dizer‑se que o atingiu em cheio, embora gerando consequências então imprevisíveis. Tenha ou não acreditado que Gabo fizera alguma tentativa de aproximação íntima a Patricia, a verdade é que Vargas Llosa ficou com uma pedra no sapato (um pedregulho, realmente…), que só descalçou a 12 de fevereiro de 1976, na Cidade do México. No Palacio de Bellas Artes estreava‑se um filme de René Cardona, Supervivientes de los Andes, sobre o desastre de avião que ocorrera três anos antes, e ao qual tinham sobrevivido, 72 dias depois, 16 passageiros. Antes de se iniciar a projeção, Gabo avistou Vargas e dirigiu-se-lhe, de braços abertos. Mas o peruano não lhe deu tempo para nada. Disparou, ao mesmo tempo, um puñetazo dirigido ao olho esquerdo do amigo e a frase: «Isto é pelo que fizeste à Patricia em Barcelona!» Xavi Ayén, o autor da mais documentada história do boom latino-americano, afirma que, simbolicamente, o boom, que começara nove anos antes, terminou nesse dia: «En ese justo momento, acaba de romperse el boom.»
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