4 — O NACIONAL-SINDICALISMO PORTUGUÊS (1932–34)

O conflito entre o fascismo e o autoritarismo conservador

O caso português de Francisco Rolão Preto: um fascista invulgar?

Na história recente de Portugal, a figura que mais facilmente vem à memória quando pensamos em ideologias antidemocráticas é o incontornável António de Oliveira Salazar, um ultraconservador inflexível e com uma enorme descrença na capacidade de emancipação das massas, que liderou um regime autoritário baseado nos princípios da ordem e da obediência. No entanto, ainda que o conservadorismo antidemocrático de Salazar inevitavelmente o aproximasse de muitas das ideias fascistas da sua época, a figura portuguesa que mais avisadamente podemos comparar com a de Mussolini é Francisco Rolão Preto, que durante o breve período que vai de 1932 a 1934 liderou um movimento político que dava pelo nome de Nacional-Sindicalismo (NS) e que é o mais importante exemplo de uma variante portuguesa da ideologia fascista. Vestindo camisas azuis, fazendo a saudação romana de braço estendido e utilizando como principal símbolo a cruz da Ordem de Cristo, os nacional-sindicalistas integram-se num tipo de movimento ultranacionalista que procurava apelar e mobilizar todas as classes sociais (incluindo a classe operária) e que, ainda que em menor grau do que outros movimentos fascistas, não hesitava em recorrer a métodos violentos na luta contra os seus inimigos. Trata-se, pois, do movimento político que faz mais sentido abordar neste nosso capítulo sobre o caso português, ainda que a sua história possa não ser tão conhecida do grande público, nem o nome de Rolão Preto tão célebre quanto o de Salazar.

Este líder, de resto, apesar de ter sido um fascista na década de 30, teve um percurso político peculiar, sobretudo devido às diferentes fases pelas quais o seu pensamento foi passando. Numa obra clássica sobre o NS, João Medina refere como este líder terá sido um ingénuo que, por uns anos, acreditou genuinamente no potencial transformador do fascismo, que ele via como uma alternativa revolucionária ao comunismo. O líder nacional-sindicalista cometeu o erro de julgar que havia «um fascismo social» e terá sido essa a razão pela qual se deixou fascinar pela ideologia de Hitler e Mussolini1. Além disso, como também nota António Costa Pinto, um dos traços que sempre distinguiram Rolão Preto, e que já o predispunha para abraçar este lado «revolucionário» do fascismo, mesmo quando ele ainda militava na organização de direita radical Integralismo Lusitano (IL), foi o de intencionar dirigir-se à classe operária e voltar a integrá-la no campo do nacionalismo2. Esse objetivo implicava necessariamente a adoção parcial de uma linguagem que nos dias de hoje seria conotada com a esquerda política e a defesa de medidas de proteção social voltadas para os trabalhadores.

José Melo Alexandrino vai mais longe no seu estudo sobre Rolão Preto e refere que o seu pensamento passou por dois ciclos bem distintos, o primeiro dos quais vai de 1915 a 1935 e tem como elementos comuns «o nacionalismo, o descrédito relativamente às instituições da democracia representativa, a inspiração soreliana da ação, o primado do social»3. Esta foi a fase em que Preto militou no Integralismo Lusitano e, mais tarde, se tornou líder do Nacional-Sindicalismo, mantendo ao longo de todos estes anos um conjunto de crenças centrais que permitem que a sua passagem pelas duas organizações seja entendida como parte integrante de um mesmo período ideológico. Nesta altura, as suas ideias foram sobretudo influenciadas pelo sindicalista revolucionário francês Georges Sorel e pelo líder da direita reacionária francesa Charles Maurras (esta dupla influência de Sorel e Maurras, de resto, está presente em diversas variantes do fascismo e de outras ideologias da extrema-direita). Ainda segundo Alexandrino, depois de uma fase de transição que vai de 1936 a 1945, o pensamento de Rolão Preto conheceu um segundo ciclo que vai de 1945 até à sua morte na década de 1970, e que se pautou pela rejeição do estatismo e dos métodos sorelianos, bem como pela defesa da democracia. Ainda que Preto continuasse a ser um nacionalista no pós-Segunda Guerra Mundial, é mais discutível que ainda fosse um fascista.

Devido a esta transformação que se operou no seu pensamento, Rolão Preto é um fascista sui generis, que acabou por se opor ao regime de Salazar em nome da democracia representativa e que estaria do lado dos comunistas e outros antissalazaristas a apoiar a candidatura de Humberto Delgado em 1958. No entanto, para os nossos propósitos, o que importa levar em conta é que, no início da década de 1930, Rolão Preto foi indiscutivelmente um fascista. De resto, olhando para a Europa do período entreguerras, rapidamente se conclui que, apesar de pouco comum, o percurso de Rolão Preto não foi assim tão raro quanto se poderia pensar, uma vez que facilmente encontramos figuras cuja biografia em alguns aspetos se compara à do líder do NS. É o caso de George Valois (que será novamente referido no capítulo sobre o caso francês) que, tal como Preto, abandonou o movimento de direita radical Action Française para formar o primeiro movimento fascista francês, que também tinha como objetivo primordial dirigir-se às classes operárias, e que mais tarde também se passou para o campo do antifascismo, acabando por morrer num campo de concentração nazi. De facto, a história europeia deste período incluiu personalidades com um percurso aparentemente inusitado, mas que, afinal, esteve longe de ser único ou irrepetível.

Dito tudo isto, podemos então começar a nossa breve descrição da evolução do Nacional-Sindicalismo, que servirá para termos uma ideia mais clara do destino que um movimento fascista poderia conhecer quando se confrontava com uma ditadura conservadora que estava em processo de construção (contrastando com o capítulo anterior, no qual vimos o destino de um movimento fascista que fracassou num país em que a democracia liberal prevaleceu). Assim, e mesmo que o NS possa parecer um movimento insignificante, o seu estudo é bastante útil para nos ajudar a esclarecer alguns aspetos sobre a forma como os partidos e movimentos fascistas procuravam alcançar o poder e sobre a sua relação com as elites dominantes.

A fundação do Nacional-Sindicalismo e os seus antecedentes

Corria o ano de 1932 quando um pequeno grupo de estudantes universitários se juntou em Lisboa para fundar um jornal nacionalista que dava pelo nome de A Revolução.4. O primeiro número foi publicado a 15 de fevereiro desse mesmo ano e contava entre os seus redatores principais figuras como o jornalista e escritor açoriano Francisco de Paula Dutra Faria e o escritor e artista António Pedro, que nesta época era provavelmente o mais destacado dos membros associados ao jornal (e que mais tarde se destacou como uma figura-chave do surrealismo português). Foi precisamente este grupo, reunido em torno da nova publicação, que haveria de estar na origem formal do movimento político do Nacional-Sindicalismo. É assim possível, ainda que com alguma imprecisão, apontar as origens remotas do NS a fevereiro de 1932. Contudo, para compreender o contexto em que este grupo se formou, importa recuar algumas décadas e perscrutar rapidamente a evolução das ideias nacionalistas em Portugal.

É Desta Que Leio Isto: Em outubro recebemos Capicua

No seu passaporte consta Ana Matos Fernandes, mas Portugal e o Mundo conhecem-na principalmente pelo seu nome artístico. Nascida e criada no Porto, Capicua é um dos grandes nomes da música rap nacional, sendo conhecida pelas suas letras ora emotivas, ora politicamente engajadas, com frequência unindo essas duas características.

Além de já ter lançado duas mixtapes ("Capicua Goes Preemo", 2008, e "Capicua Goes West", 2013) e três álbuns em nome próprio e um disco de remisturas ("Capicua", 2o12, "Sereia Louca", 2014, "Medusa", 2015 e "Madrepérola", 2020), a rapper integrou também o projeto colaborativo luso-brasileiro Lingua Franca, com os seus congéneres Emicida, Rael e Valete.

A sua relação com a palavra escrita vai além das rimas que escreve para os seus projetos, assinando letras para intérpretes como Gisela João, Aline Frazão, Ana Bacalhau, Camané e Clã e tendo uma formação em Sociologia, no ISCTE, e um doutoramento em Geografia Humana, tirado em Barcelona.

Os livros discutidos neste encontro serão "Aquário", coletânea de algumas das suas crónicas, e "A Invenção Ocasional", de Elena Ferrante.

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Como é do conhecimento geral, Portugal deixou de ser uma monarquia constitucional a 5 de outubro de 1910, aquando da instauração da Primeira República5. Esta mudança de regime foi o resultado de um movimento de liberais republicanos, cuja base de apoio se encontrava mais nas classes médias urbanas do que na classe operária, e cujas origens remontavam ao século anterior. Os últimos anos do regime monárquico haviam incluído a governação autoritária pelo presidente do conselho João Franco, entre 1906 e 1908, e o assassinato do rei Carlos I a 1 de fevereiro de 1908. Derrubada a monarquia, e tendo o rei Manuel II ido para o exílio em Inglaterra, teve início uma república de governos instáveis, cujo primeiro presidente eleito foi Manuel de Arriaga e que teve como principal figura o primeiro-ministro Afonso Costa, ligado ao partido de esquerda conhecido como Partido Democrático. Das dissensões do Partido Republicano original surgiram também o Partido Evolucionista de António José de Almeida e o Partido Unionista de Brito Camacho, ambos representantes de um republicanismo conservador de direita.

No entanto, Portugal continuava a ser um país industrialmente pouco desenvolvido e com uma grande taxa de iliteracia, sobretudo nas zonas rurais mais conservadoras, onde ainda vivia a maior parte da população. Neste contexto, o anticlericalismo do liberal «jacobino» Afonso Costa (que os seus adversários chegaram exageradamente a comparar aos bolcheviques) despertou a ira dos mais diversos setores da direita. De resto, os elementos mais reacionários da sociedade portuguesa continuavam a não ver com bons olhos a instauração da república, ou não tivessem existido «incursões monárquicas» no Norte do país, lideradas por Paiva Couceiro, um convicto defensor da monarquia. Neste contexto, a primeira organização que importa referir é o Integralismo Lusitano, que foi também a que mais influenciou o conteúdo ideológico do Nacional-Sindicalismo6. Este grupo organizou-se em Coimbra em 1914, tendo começado a publicar a revista Nação Portuguesa, ainda que à época se voltasse muito pouco para o ativismo político propriamente dito. Teve como antecedentes a publicação da revista Alma Portuguesa por um grupo de monárquicos exilados na Bélgica e o folheto Aqui d’El Rei!, de João do Amaral. Em 1915, os integralistas também realizaram um conjunto de conferências na Liga Naval de Lisboa.

Entre os seus principais membros encontravam-se José Pequito Rebelo, Luís de Almeida Braga, Hipólito Raposo e João Mendes da Costa do Amaral, mas talvez o seu membro mais destacado tenha sido António Sardinha. Este fervoroso nacionalista resumiu as suas ideias sobre a história e o Império Português no texto O Valor da Raça e provavelmente teria continuado a ser uma figura relevante no tradicionalismo português se não tivesse morrido prematuramente em 19257. O que movia este grupo era, acima de tudo, o descontentamento para com o regime republicano, a que os integralistas se opunham ferozmente. Tendo como símbolo um pelicano, o IL, com o seu ultranacionalismo, foi talvez o grupo político mais próximo do protofascismo em Portugal e caraterizava-se pela completa rejeição da democracia liberal e pelo objetivo de voltar a instituir uma monarquia em Portugal8. Refira-se, contudo, que os integralistas eram de tal maneira contrários à democracia que não se contentavam com o regresso de um qualquer tipo de monarquia, defendendo explicitamente que esta não podia incluir qualquer forma de liberalismo constitucional, pois esse seria um ponto de partida para a decadência se instalar e o regime monárquico definhar. Além disso, o IL era tremendamente elitista, tradicionalista (ainda que, por vezes, usando uma retórica revolucionária protofascista), e perfilhava uma visão orgânica da nação que os levava a defender um sistema social e económico baseado no corporativismo.

Outra das principais caraterísticas da sua ideologia era o municipalismo, pois o IL acreditava que a organização política de Portugal não deveria basear-se no centralismo, mas no município (o que, segundo o grupo, corresponderia à tradição histórica de Portugal). Em suma, é possível fazer uma comparação entre o IL e a organização da direita reacionária francesa Action Française, que era o seu correspondente ideológico e com cujos membros muitos integralistas portugueses tiveram contactos pessoais quando se encontravam exilados, após a sua participação em revoltas monárquicas.

Prosseguindo com as referências ao protofascismo e ao autoritarismo português, devemos mencionar o breve governo autoritário do general Pimenta de Castro em 1915 e, mais ainda, o caso de Sidónio Pais, militar que se tornou presidente depois de um golpe que, em 1917, depôs o presidente Bernardino Machado. Tendo por objetivo criar uma «Nova República» baseada em princípios militaristas, Pais, que criou também o Partido Nacional Republicano (PNR), liderou Portugal com um estilo autoritário do qual não estava ausente a chefia carismática e um nacionalismo vagamente corporativo, influenciado pela ideologia da IL9. Apesar de o seu assassinato a 14 de dezembro de 1918 ter impedido que Sidónio Pais desempenhasse um papel mais relevante nas lutas políticas do século xx, ele não deixou de se tornar numa referência para muitos dos movimentos antidemocráticos que surgiriam nas décadas seguintes. Por exemplo, quando chefiava o NS, Rolão Preto referiu com aprovação o facto de Sidónio Pais se ter rodeado de jovens valorosos, o que se coadunava com o culto da juventude típico do fascismo. Ele haveria de escrever que «Sidónio Pais, cujo olhar de águia tão fundamente penetrou nos tempos a vir, rodeou-se de novos»10.

Ainda durante a época de Sidónio Pais teve origem uma outra organização protofascista de direita radical, a Cruzada Nacional Nuno Álvares Pereira, fundada em 1918 pelo tenente João Afonso de Miranda. Desde o início, esta procurou reunir personalidades das mais diversas correntes da direita política, agregando diferentes tendências de pensamento e projetos políticos díspares. Era fortemente conservadora e nacionalista e, a partir da década de 1920, tornou-se cada vez mais autoritária e recetiva a influências «fascizantes» ou, pelo menos, antidemocráticas. No seu manifesto de 1921 clamava-se pela «ordem nas ruas. Ordem nos espíritos. Ordem em casa, enfim». E acrescentava que «sem ordem, o estado não pode viver»11. A defesa primordial da ordem coloca esta organização heterogénea no campo da direita radical reacionária (ou, para usar o termo que aqui adotamos, no «conservadorismo fascizante»), mas ainda não representa uma variante completamente formulada de fascismo português.

Entretanto, uma efémera experiência de restauração da monarquia no Norte do país, em 1919, que ficou conhecida como «Monarquia do Norte» e que foi liderada por Paiva Couceiro, conheceu um fracasso que pareceu, por algum tempo, enfraquecer as ideias monárquicas. De resto, os membros do IL, depois de se envolveram fortemente na política aquando da curta tentativa de restauração da coroa, estiveram menos ativos na primeira metade da década de 20 e, inclusivamente, retiraram o seu apoio a Manuel II, substituindo-o pela obediência a D. Duarte Nuno de Bragança. A direita republicana também passou por um processo de reconfiguração quando o Partido Evolucionista e o Partido Unionista se fundiram em 1919 no Partido Liberal Republicano, liderado por António Granjo (assassinado durante a Noite Sangrenta)12. Mais tarde foi criado o Partido Republicano Nacionalista, resultado da fusão deste partido liberal com o Partido Reconstituinte.

É aqui que importa referir aquele que, ao que se sabe, terá sido um dos primeiros indivíduos portugueses a perfilhar uma ideologia que pode ser considerada como uma variante de fascismo. Fala-se de Francisco Manuel Homem Cristo Filho, figura que deverá continuar a despertar a curiosidade dos investigadores nos próximos anos. Este anarquista, que depois de 1910 aderiu à causa monárquica e fundou o jornal A Ideia Nacional, foi obrigado a exilar-se em França e nesse país entrou em contacto mais estreito com os círculos da extrema-direita e com as ideias fascistas. Ter-se-á tornado num admirador de Mussolini, a quem elogiava o ímpeto criador e a sua modernidade, e a quem dedicou o livro Mussolini: Bâtisseur d’Avenir. A sua variante de fascismo parecia incluir a ideia de que o projeto do regime italiano dizia respeito a todos os povos latinos, que eram propensos a adotar um tipo de solução semelhante13. Mesmo que a sua morte prematura não lhe tenha permitido desempenhar um papel ativo no fascismo português, o seu exemplo é importante para perceber os percursos que poderiam levar os militantes da direita reacionária de então a «converter-se» ao fascismo (nos anos que se seguiram, muitos trilharam um caminho semelhante ao de Cristo Filho).

Outra organização protofascista, mais próxima do «verdadeiro» fascismo, é a do Nacionalismo Lusitano, ativo entre os anos de 1923 e 1925. O Nacionalismo Lusitano era liderado por João de Castro Osório, escritor modernista filho de Ana de Castro Osório, que no ano anterior à criação deste movimento político tinha escrito o livro A Revolução Nacionalista. Esta foi a primeira organização a definir-se como fascista em território português e, fazendo referências explícitas à influência de Mussolini, dizia querer promover um novo tipo de nacionalismo corporativista e dinâmico, no qual as massas da classe operária participariam ativamente14. Contudo, a curta duração deste movimento fez com que ele não se tornasse particularmente marcante na história do fascismo português. Por último, refira-se também uma organização reacionária e tradicionalista, que não pode ser verdadeiramente classificada como fascista: a Ação Tradicionalista Portuguesa, mais tarde transformada em Ação Realista Portuguesa. Esta, que havia sido formada por dissidentes da IL, caraterizava-se pelo seu monarquismo conservador e contava entre os seus membros com nomes como Alfredo Pimenta, Caetano Beirão e João Ameal.

Feita esta breve descrição dos movimentos políticos de antes do derrube da república, voltemos agora a atenção para o que ocorreu depois da instauração da ditadura militar a 28 de maio de 1926. Nesse dia, um golpe militar liderado pelo general Gomes da Costa partiu de Braga e, ao contrário da fracassada tentativa de golpe de 18 de abril de 1925, foi bem-sucedida no seu objetivo de provocar uma mudança de regime, depois de depor o governo de António Maria da Silva. Inegavelmente, os militares foram os principais agentes do derrube da república e o exemplo do Fascismo italiano como alternativa à democracia foi uma das influências de alguns dos que participaram no golpe (daí que muitos concebessem a viagem de Gomes da Costa como uma «Marcha sobre Lisboa» e o golpe como uma «revolução nacional»), mas não se deve pensar que os apoiantes do 28 de Maio formavam um grupo coeso e homogéneo com uma única ideia clara daquilo que deveria ser o novo regime. Pelo contrário, como refere António Costa Pinto, entre os golpistas e seus apoiantes havia uma «extrema diversidade ideológica e política dos atores sociais e políticos» e «não foi a hierarquia militar estabelecida que decidiu derrubar mais um governo, mas uma coligação heterogénea de militares, com o apoio decidido de diversos partidos e grupos de pressão»15. O que unia estes militares e políticos era a sua rejeição de um regime com uma grande instabilidade governamental, mas além disso encontramos grupos e indivíduos com ideias tão diferentes que vão dos republicanos conservadores e católicos-sociais a membros de organizações de direita radical (como o Integralismo Lusitano) e uma residual franja de fascistas ou «conservadores fascizantes» (como Martinho Nobre de Melo, que então dirigia a Cruzada Nacional Nuno Álvares Pereira).

De forma algo simplista, mas eficaz para perceber as contradições internas que fizeram parte do processo de transformação da ditadura entre 1926 e 1932 (ano em que foi criado o NS), é possível referir que estes anos foram marcados por um conflito entre as alas «radicais» (da qual faziam parte integralistas e indivíduos próximos do fascismo) e as mais «moderadas». Estas últimas, que apenas podem ser consideradas como «moderadas» em comparação com os seus rivais, incluíam conservadores republicanos como Cunha Leal, antigo primeiro-ministro e membro do Partido Republicano Nacionalista, bem como os membros do Centro Católico Português, partido tradicionalista fundado em 1915 e baseado nas ideias do catolicismo político (entre os seus membros encontrava-se um certo António de Oliveira Salazar). Se, logo após o golpe de 28 de maio, a presidência de Mendes Cabeçadas representava o predomínio das alas «moderadas» da «revolução», o golpe do general Gomes da Costa, poucos dias depois, incentivou os setores mais radicais a aproveitarem a oportunidade para instalar um regime fortemente antidemocrático e baseado num partido nacionalista mobilizador de massas e com traços semelhantes aos do fascismo.

Assim, foi criada a União Nacional (não confundir com o partido do regime mais tarde criado por Salazar), e Homem Cristo Filho, então ainda no exílio, regressou a Portugal com o objetivo de pôr em prática o seu projeto fascizante, criando desde logo o jornal Informação. Contudo, as tentativas dos radicais encontraram a oposição de setores mais moderados. O golpe de Óscar Carmona e Sinel de Cordes rapidamente colocou um fim a estas ambições da direita radical que rodeava Gomes da Costa e levou a que Carmona se tornasse presidente da república (cargo que ocuparia até à sua morte, em 1951). Homem Cristo Filho voltou a abandonar o país, acabando por morrer num acidente de automóvel em 1928, quando se deslocava a Roma para se encontrar pessoalmente com Mussolini. Foi sepultado na capital italiana numa cerimónia fúnebre organizada pelo próprio Duce, que nela esteve presente.

Nos anos que se seguiriam, a dicotomia moderados/radicais continuou a estar na base dos desenvolvimentos da ditadura militar, e de cada vez que o governo dava sinais de caminhar numa direção mais «moderada» os radicais procuravam organizar-se ou encontrar uma forma de fazer com que o regime, então ainda em construção, seguisse um rumo que fosse mais do seu agrado. Foi neste contexto que surgiu a Milícia Lusitana em 1927 (organização de tendência radical), bem como a fracassada tentativa de golpe pelo capitão de fragata Filomeno da Câmara (conhecido como «Golpe dos Fifis», por nele também ter participado Fidelino de Sousa Figueiredo). Contudo, a mais importante de todas as organizações que surgiram no campo radical da ditadura foi a Liga Nacional 28 de Maio, criada em finais de 1927, numa altura em que o governo «moderado» tinha a intenção declarada de criar um partido único e agregador dos apoiantes do regime. A Liga, que durante alguns anos foi o principal polo em torno do qual se reuniam os elementos radicais, foi primeiramente chefiada por Raul Pereira Caldas e tinha por objetivo criar um regime nacionalista, corporativo e cristão, e no qual os partidos políticos fossem proibidos. Nas suas fileiras contavam-se muitos tenentes que haviam participado no 28 de Maio, bem como antigos membros da Cruzada Nacional Nuno Álvares Pereira. Ainda assim, a importância desta nova organização não foi suficiente para impedir que, no seio da ditadura, um dos elementos que pertenciam à ala mais «moderada» começasse a ganhar uma posição de destaque cada vez maior: falamos do ministro das Finanças António de Oliveira Salazar, que, depois de uma breve passagem pelo cargo em 1926, voltou a ser convidado pelos militares para fazer parte do governo em 192816.

Salazar rapidamente conquistou notoriedade por alegadamente ter equilibrado as contas do país e o prestígio que ele ganhou foi suficientemente grande para o aproximar cada vez mais do poder. De resto, esta figura aparentemente pacata vinda de Santa Comba Dão foi um dos redatores do Acto Colonial, documento aprovado em 1930 que reiterava a importância do Império Português e da «missão civilizadora» de Portugal em África. Foi também, em 1930, fundador do partido do governo, a União Nacional, que oficialmente não se declarava como um partido, mas antes como uma plataforma «antipartidos» destinada a unir todos os apoiantes da ditadura. Foi em 1932 que, por fim, este antigo membro do Centro Católico passou a ocupar o cargo correspondente ao de primeiro-ministro e rapidamente tomou os passos necessários para reconfigurar a ditadura militar à sua medida. A sua ideologia era de um ultraconservadorismo fortemente antidemocrático e anticomunista, baseado na ideia de que a população portuguesa deveria viver de forma pacata, dispensando a mobilização constante do regime fascista italiano, e de acordo com os valores católicos em nome dos quais o próprio havia militado durante as décadas de 1910 e 1920. O facto de o regime ter sido remodelado sob a chefia deste membro da ala a que aqui chamamos «moderada» não significa, contudo, que as influências ideológicas da ditadura ao longo dos anos não tenha sido heterogénea ou que o pensamento do próprio Salazar não tenha passado por diferentes fases ao longo dos anos.

Com um estilo de liderança inflexível, que não permitia qualquer dissidência, Salazar procurou, ainda assim, trazer para o seu lado as forças políticas que poderiam ser uma fonte de rebelião, tentando estabelecer um duradouro equilíbrio entre as diversas fações da direita que compunham o novo regime. Foi a esta forma de governar que o historiador Fernando Rosas chamou a «arte de saber durar» e que, segundo o autor, explica a longevidade do regime17. Esse método de lidar com a diversidade ideológica do seu regime, de resto, é visível na forma como o ditador neutralizou a ameaça da Liga 28 de Maio, cujos membros, na sua maioria, acabaram por se integrar na União Nacional, polo agregador de todos os apoiantes do regime, e, como veremos, será importante para compreendermos o destino do Nacional-Socialismo português.

Rolão Preto e o desenvolvimento do NS

Regressemos agora ao mês de fevereiro de 1932 e aos estudantes que fundaram o jornal A Revolução, numa altura em que a Liga 28 de Maio continuava a ser a principal organização da ala radical do regime. Estes estudantes, contudo, pertenciam também a essa ala e por enquanto não tinham por objetivo tomar o poder pela força, mas antes influenciar o regime para que ele seguisse numa direção mais radical, dir-se-ia mesmo «fascizante». Como já referimos, além de Dutra Faria, encontramos neste grupo o escritor António Pedro, que durante alguns meses foi o seu principal ideólogo e cujos textos revelavam uma visão fortemente antidemocrática e ultranacionalista.

Logo no primeiro número do jornal, o seu editorial, da autoria de Pedro, afirmava categoricamente que o NS pretendia «a integração de Portugal no seu destino de império, liberto da algazarra sacrílega e grotesca da democracia parlamentar, numa nova ordem hierárquica e autoritária»18. Além disso, defendia a instauração de um sistema corporativo e o reforço do poder do estado para que este reorganizasse a vida política da nação. O seu discurso ideológico, nada contendo de original, inseria-se claramente naquilo que podemos classificar como uma variante de fascismo e, nos seus aspetos centrais, assemelhava-se sobretudo à variante italiana.

Fascismos
créditos: Saída de Emergência

Contudo, não seria António Pedro o líder do movimento fascista que estava a nascer, pois os seus membros fundadores estavam particularmente interessados em contar com a participação de uma personalidade que já tinha feito um percurso sólido na direita radical do país, incluindo no Integralismo Lusitano, que se chamava Francisco Rolão Preto. De resto, foi o próprio Dutra Faria que escreveu a Rolão Preto convidando-o a instalar-se em Lisboa e integrar o novo grupo, o que Preto acabou por fazer. Com ele acabaram por vir outros membros mais jovens do Integralismo Lusitano e pelo menos uma outra figura histórica deste movimento, Alberto Monsaraz, que haveria de se tornar no mais fiel aliado do chefe nacional-sindicalista e que seria também secretário-geral do NS. A predisposição de Rolão Preto para se juntar a uma organização de tipo fascista encontrava as suas raízes ainda no tempo em que, durante a década de 1920, este militante nacionalista havia tentado recorrer a métodos dinâmicos e mobilizadores para atrair a classe operária para o integralismo, o que o diferenciava dos seus colegas deste grupo, cujo elitismo mais tradicionalista os levava a olhar com desconfiança para as técnicas de mobilização popular.

Rolão Preto, que havia acompanhado a viagem de Gomes da Costa de Braga para Lisboa durante o golpe militar e integrado a maioria das principais organizações de direita radical do país, incluindo a Liga 28 de Maio, havia ganhado notoriedade como membro da Junta Central do Integralismo Lusitano e como importante ideólogo do movimento monárquico. Começou a manifestar em 1921 as suas simpatias para com o Fascismo italiano, no qual elogiava a propensão para a ação e a sua capacidade subversiva, e inclusivamente defendeu esta nova ideologia numa acesa discussão com um padre português, que deu origem a uma série de artigos no jornal A Época, surgidos em 192219. Preto, enquanto membro do IL, escreveu um livro influente que se intitulava A Monarquia é a Restauração da Inteligência. Foi ainda autor do pequeno panfleto «Os Doze Princípios da Produção», que estava em sintonia com os princípios corporativistas defendidos pelo integralismo e no qual já estão contidos alguns dos principais objetivos políticos que o autor continuaria a abraçar enquanto membro do Nacional-Sindicalismo.

O último destes princípios declarava: «Proclamamos a Nação eterna, razão primeira da nossa existência social; a Nação viva e ativa através da cor específica da Província, da Região e do grupo económico»20. Os outros pontos do programa incluíam: a negação da organização social que tivesse por base o indivíduo; a igual negação do conceito de «classes sociais» enquanto elementos isolados no processo de produção; a rejeição do internacionalismo operário e da «solidariedade do proletariado universal»; a condenação do princípio do mercado livre; a proclamação da propriedade como direito sagrado, entre outros. Dada a proximidade com a visão política do NS, não é de espantar que o movimento em 1932 adotasse este texto protofascista como uma das principais fontes de inspiração ideológica. Nestes Doze Princípios, o único ponto em que ainda era notória a inclinação integralista, e não fascista, era aquele em que se referia que «proclamamos o rei chefe da produção nacional».

Já com Rolão Preto nas suas fileiras, foi no verão de 1932 que o grupo d’A Revolução tentou formalizar a organização de um movimento político propriamente dito, tendo assim surgido oficialmente o Nacional-Sindicalismo. Ainda que, nesta altura, Rolão Preto não fosse o seu único chefe carismático, sendo o NS liderado por uma junta composta por seis membros, era já evidente que, pela sua ideologia, este era um movimento fascista, algo evidente até nos apelos aos métodos violentos que António Pedro não se coibia de fazer nas páginas do jornal A Revolução, referindo que o seu objetivo era «defender a pátria do assalto dos inimigos». Para António Pedro era necessário que o regime criasse uma «nova ordem revolucionária» e «moderna», baseada nos ideais da juventude, que não se limitasse a usar a violência preventiva contra os inimigos mas que antes a usasse para purgar e rejuvenescer a comunidade nacional. A sua repulsa pelo comunismo, e também pelo liberalismo e pela alegada covardia da burguesia, está bem patente nos textos que por esta época escreveu21.

Para melhor conhecermos a ideologia do movimento que então se fundava, contudo, é importante ter em conta não só os artigos do seu jornal oficial, como também os livros e os panfletos que Francisco Rolão Preto escreveu ao longo de 1932, nos quais apresenta de forma mais sistematizada o que também se encontrava nas páginas d’ A Revolução. Um desses textos é o panfleto A Orgânica do Nacional-Sindicalismo, no qual a nação era definida como «uma realidade imposta pela terra, pelo clima, pela língua, pelos costumes, pela raça e pela história»22. Outro folheto importante intitula-se Balizas — Directrizes — Alma! e encontra-se estruturado sob a forma de um questionário em que são colocadas perguntas sobre a natureza da ideologia do NS, às quais são dadas respostas que se querem esclarecedoras. Trata-se de uma forma de resumir de maneira simples os preceitos do Nacional-Sindicalismo para os eventuais interessados. No texto, Preto reafirma a sua rejeição da economia liberal, baseada numa conceção individualista, que termina inevitavelmente na anarquia e na concentração de capital. No contexto da economia capitalista, a democracia parlamentar e a imprensa livre são apenas instrumentos que a «plutocracia» utiliza para consolidar o seu poder.

Como resultado da destruição dos grémios e corporações medievais pelo capitalismo liberal, a inevitável injustiça social que dela resultou levou ao surgimento da luta de classes e da economia marxista, baseada no conceito de classe social. Para Preto, esta visão económica é tão ou mais perniciosa do que a do liberalismo, uma vez que se baseia na «teoria do sobrevalor», que o autor terminantemente rejeita. Esta teoria, tal como a do liberalismo, não reconhece aquele que é, no seu entendimento, o princípio fundamental da produção: o de que esta se constitui através da interligação dos três elementos essenciais que são o trabalho (ou mão de obra), o capital e a técnica. O sistema económico proposto pelo NS terá necessariamente de articular estes três elementos.

É por isso que, nesse mesmo texto, Rolão Preto defende uma organização sindicalista da produção que tenha por base o sindicato e que deve ser referida como «Sindicalismo Revolucionário Orgânico». Neste sistema, no qual o país seria dividido em diferentes regiões económicas, os sindicatos deveriam reunir todos os membros de um dado ramo de produção e, em conjunto, esses elementos da produção formariam corporações reguladas pelo estado. Com este sistema corporativo obter-se-ia a «solidariedade dos elementos da produção desde a raiz ao fruto, desde a criação do produto até à sua entrega ao consumidor»23. O que o líder do NS pretende com o corporativismo é, portanto, a criação de um estado que traga a harmonia à produção nacional e que, a acreditar nas suas palavras, permita concretizar a «justiça social». Para obter esta justiça, o estado corporativo deveria conceder apoios às classes mais baixas, que incluíam a assistência no desemprego, na velhice, na doença e na maternidade, entre outros. Na parte final do documento, que se intitula «Directrizes», o líder do NS resume os principais pontos do seu movimento reafirmando mais uma vez o seu caráter nacionalista e o seu objetivo de criar um «regime de justiça social», no qual a usura seria proibida e o trabalho seria obrigatório, apesar de a técnica e o capital continuarem a desempenhar um grande papel no processo produtivo. O autor também torna explícito que o seu programa económico pretende impedir a proletarização das classes médias que, apesar de todo o discurso sobre a integração do proletariado da nação, não deixam de ser a base sobre a qual o estado corporativo deve ser fundado. Outro ponto do programa afirma a importância da família enquanto célula primordial na qual a organização social terá de assentar.

Uma outra secção destaca o conceito de «personalidade», que o autor do texto concebe como sendo diferente do conceito de «indivíduo» da ideologia burguesa. Se este último é apenas uma abstração, a «pessoa» é uma «realidade humana», um ser humano que se encontra inserido nos grupos sociais a que pertence. Assim, «a Revolução Nacional-Sindicalista tem por fim garantir à Personalidade Humana a posse de todos os seus direitos para cumprimento integral dos seus deveres sociais»24. A liberdade da «pessoa humana», a acreditar nas palavras de Rolão Preto, seria respeitada no novo estado corporativo.

Noutro texto de 1932, Para Além do Comunismo, encontramos uma explicação mais detalhada das razões pelas quais Rolão Preto rejeita o comunismo. Numa sucessão de páginas cujos dados relatados não são necessariamente os mais fiáveis, o líder nacional-sindicalista expõe o aparente fracasso do estado soviético e a pobreza que este trouxe para as classes trabalhadoras, apesar de o comunismo dizer defender os seus interesses. Depois desta descrição, o autor expõe com maior pormenor a sua rejeição do marxismo e do comunismo, bem como do liberalismo. Aos dois contrapõe uma conceção económica baseada nas ideias tradicionalistas e no «grupo económico» (que se refere tanto a sindicatos como a corporações). De certa forma, Preto pretende recuperar uma conceção orgânica da sociedade que o líder fascista acredita ter sido a dominante durante a Idade Média, mas que a chegada do liberalismo destruiu. De resto, o individualismo liberal, que terá aniquilado o que de mais precioso havia na Idade Média, seria uma das razões que explicam o estado de decadência que a nação (e o mundo ocidental) supostamente enfrentava. Como nota António Costa Pinto, esta conceção económica demonstra que, ao contrário de outros fascistas, Rolão Preto manteve sempre alguns elementos tradicionalistas na sua ideologia, nunca se «convertendo» totalmente ao culto da modernidade que carateriza o fascismo. No entanto, é possível verificar que, não obstante, o líder fascista consegue reformular o seu discurso ideológico de maneira a aproximar-se um pouco mais da conceção fascista da «nova era», o que é percetível quando refere que:

O mundo não para, porém, na contemplação das suas próprias ruínas. A sua marcha continua na linha eterna dos tempos. Para além da plutocracia e para além do comunismo, na incerteza das horas que passam, o pensamento moderno, sacudindo os preconceitos antigos, avista já, bem rasgada e bem cheia de claridade, a longa avenida do futuro, que é por onde se continua a marcha interrompida do passado25.

Esta citação é particularmente interessante, pois pode ajudar-nos a compreender melhor uma conceção da história que é, no fim de contas, fascista, ao invés de tradicionalista, uma vez que o seu objetivo não é meramente recriar o passado, mas antes usar o passado como ponto de partida para avançar para uma era moderna26. Rolão Preto, ao contrário dos meros reacionários, não olha verdadeiramente para o passado, mas sim para o futuro, mesmo que busque inspiração num sistema económico de uma era passada. Ainda no livro Para Além do Comunismo encontramos outros elementos ideológicos que são importantes para distinguir o NS da ideologia do Integralismo Lusitano, com a qual o primeiro tinha muito em comum (o que não causará estranheza, dado o número de militantes que passaram de uma organização para a outra). No fim de contas, grande parte dos princípios económicos que temos vindo até aqui a resumir poderia ser perfeitamente defendida por membros de organizações reacionárias que não se inserissem no fascismo. Todavia, são o culto da juventude e o apelo à ação direta por parte de Rolão Preto (que também se encontram nos textos analisados) os principais elementos que representam uma novidade em relação à ideologia oficial do IL e que permitem que o líder do NS seja com propriedade classificado como fascista.

De certa maneira, é mesmo possível dizer que o Nacional-Sindicalismo representou uma tentativa de dar uma componente mais dinâmica, popular e «rejuvenescida» a um conteúdo ideológico que era o dos integralistas. Pode, à primeira vista, parecer uma diferença pequena (e certamente não seria suficientemente grande para impedir estreitas interações entre os militantes dos dois grupos), mas é uma das diferenças essenciais para se compreender a distinção entre a direita reacionária protofascista e o fascismo propriamente dito. Acrescente-se a estes elementos o do culto do chefe carismático, que, na ideologia do NS, acabou por substituir o lugar de destaque que a figura do monarca, enquanto dirigente do estado corporativo, ocupava na ideologia do IL, e ficamos com uma visão mais completa das diferenças entre o Nacional-Sindicalismo e o integralismo27. Todas estas caraterísticas, que deram ao NS traços ideológicos inovadores, não deixaram de causar a desconfiança e a apreensão de alguns dos membros mais antigos do Integralismo Lusitano, que não só não acompanharam Rolão Preto como o criticaram fortemente pela sua nova aventura.

A propósito da ideologia de Rolão Preto, devemos fazer um reparo acerca do conceito de «imperialismo», que quase não surge nos dois principais textos atrás analisados. Tal dever-se-á ao destaque que, nesses escritos, é dado às questões económicas e de organização social, que ocupam a quase totalidade das páginas dos folhetins e não deixam muito espaço para a discussão de outros temas centrais do NS. No entanto, através da leitura de outros textos publicados na imprensa do movimento, sabemos que, sem surpresa, o Nacional-Sindicalismo era fortemente imperialista e amiúde os seus membros exaltavam a «missão imperial» que Portugal teria de cumprir e que seria necessária para garantir o engrandecimento da nação28. Na verdade, e apesar de alguns rumores nacional-sindicalistas sobre a intenção de anexar a Galiza, o conteúdo imperial da ideologia de Rolão Preto não remetia, no essencial, para objetivos expansionistas, mas antes para proporcionar um «renascimento» nacional que permitisse ao país concretizar o seu «destino imperial» nas regiões que já havia colonizado. Era a decadência do sistema político vigente que, até ao momento, havia impedido que Portugal cumprisse esse destino no império que, formalmente, já existia.

Fascismos
créditos: Saída de Emergência

Regressando à história do NS, verificamos como, ao longo da segunda metade de 1932, o movimento se foi desenvolvendo e adquirindo um estilo e uma organização que cada vez mais o aproximaram do fascismo. Isto incluiu o evidente culto a Rolão Preto, que se consolidava como chefe do movimento, a adoção da saudação romana, o símbolo da Ordem da Cruz de Cristo e o uniforme em camisas azuis, bem como a constituição de grupos de militantes que tinham por objetivo difundir ativamente a ideologia, entre outros. Além de um secretário-geral (Monsaraz), o movimento incluía ainda um Grande Conselho de caráter consultivo e um Secretariado Militar, dirigido aos simpatizantes do NS nas Forças Armadas. O movimento criou também as suas «brigadas de choque», organização paramilitar pronta para utilizar métodos violentos e, apesar de estas raramente terem sido utilizadas, claramente aproximam-no ainda mais dos outros movimentos fascistas europeus. Foram também criadas organizações para a juventude e para as mulheres, esta última liderada por Madalena Patrício, mas, como refere António Costa Pinto, «a sua ação não passou do papel»29.

A frase «Isto vai, por Deus», da autoria de Rolão Preto, tornou-se como que um lema do movimento, uma vez que aparentemente era a que melhor representava o fervor de mudança e inovação da juventude que aderia ao NS. À medida que o número de aderentes crescia um pouco por todo o país, vindos tanto da Liga 28 de Maio como do Integralismo Lusitano (esta última proveniência foi mais evidente, sobretudo no Norte do país), e que aumentava o número de simpatizantes entre os tenentes e militares radicais, bem como entre os estudantes, aumentava também o número de comícios, marcados por uma coreografia fascista e pela glorificação do «chefe». Um comício realizado em Alenquer em finais de 1932 foi bem representativo desta dinâmica fascista. Fora de Lisboa, terá sido nas cidades do Norte de Portugal, como Braga e Bragança, que o movimento conquistou mais aderentes.

A propagação do movimento levaria à criação de secretariados nacional-sindicalistas para as três principais regiões do país: o de Alçada Padez em Lisboa, o de Augusto Pires de Lima no Porto e o do professor universitário Eusébio Tamagnini em Coimbra. Nesta última cidade surgiu um sólido grupo de nacional-sindicalistas, que teve forte expressão entre os professores das faculdades de Direito e Letras. Também no Algarve o NS teve uma expressão considerável, e em Faro chegou a ser criado um importante jornal chamado O Nacional-Sindicalista, dirigido por Rodrigo de Sousa Pinto. Até ao arquipélago da Madeira o movimento terá chegado, tendo Favila Vieira como seu presidente do secretariado distrital. Embora ainda sejam necessários mais estudos para sabermos ao certo qual foi a dimensão que o NS conseguiu alcançar no território nacional, e em algumas regiões específicas, não parece haver dúvidas de que, de uma maneira ou de outra, o movimento alcançou uma dimensão bastante considerável e que foi bem-sucedido a integrar os apoiantes da ditadura que estavam insatisfeitos com o rumo que ela tomava e que desejavam um caminho mais radical. Este aparente sucesso levou a que Rolão Preto referisse triunfantemente, em inícios de 1933: «Éramos meia dúzia, somos hoje um exército30

Além das gerações mais jovens e radicais, o NS também tentou apelar à classe operária e aos trabalhadores rurais, procurando chamá-los para as ideologias nacionalistas. Foi isto que levou o movimento a dar particular relevância ao conceito de «justiça social» e a inserir nos seus programas medidas que teriam como fim melhorar as condições de vida destas classes sociais. Neste contexto de críticas ao capitalismo liberal injusto, uma frase de Rolão Preto foi imensas vezes repetida pelos militantes e no jornal A Revolução: «É preciso que os muito ricos sejam menos ricos, para que os muito pobres sejam menos pobres.» O chefe do NS manifestou inclusivamente a intenção de inaugurar «casas sindicais» em diversos pontos do país, o que efetivamente ocorreu em Lisboa, Alenquer, Porto e Bragança31. O secretário da região norte, Pires de Lima, chegou a referir que o NS era um movimento para os pobres e não para os ricos. Este discurso «justicialista», a que se poderia chamar também «populista» ou mesmo «pseudossocialista», foi comum a diversos movimentos fascistas e encontra um paralelo nas alas do nacionalismo sindicalista italiano, que apoiaram o primeiro Fascismo, ou no «strasserismo» alemão.

Este lado mais radical do «justicialismo» fascista explica-se, no caso português, pelas condições em que o movimento cresceu e pela atitude de contestação que o NS tomou para fazer frente a uma ditadura conservadora, que começava já a reunir o apoio de grande parte das elites de então. No entanto, o discurso voltado para a classe operária não impedia nem o objetivo de defender as classes médias por parte dos líderes do movimento nem que uma grande parte dos seus militantes viesse, afinal, dos setores pequeno-burgueses, dos profissionais liberais ou dos trabalhadores do setor dos serviços, sobretudo trabalhadores de bancos (os trabalhadores da função pública, aparentemente, terão optado por se filiar no partido criado por Salazar). Os dados existentes indiciam que, entre a classe operária, terão sido sobretudo os trabalhadores de pequenas e médias empresas os que mais aderiram ao Nacional-Sindicalismo32. Não espantará, contudo, que essa adesão tenha sido menor nos grandes centros industriais, sobretudo se se pensar que as principais organizações de esquerda (incluindo comunistas e anarcossindicalistas) não se cansavam de denunciar o NS como o braço armado da ditadura que Salazar estava a construir. Talvez o caso que mereça mais atenção seja o do operário da construção civil, Francisco Moreira, antigo anarcossindicalista e sindicalista que se juntou ao NS apesar de o seu passado esquerdista ter despertado desconfianças por parte dos setores da direita radical. Moreira é, assim, uma das figuras mais peculiares da história do NS: um operário com um passado no sindicalismo de esquerda que trocou a luta de classes internacionalista pelo nacionalismo «revolucionário» e que continuava a ver-se como um «revolucionário contra a sociedade burguesa e capitalista», como certa vez referiu num comício no Palácio de Cristal do Porto33.

Além dos nomes que anteriormente referimos, estiveram ligados a este movimento fascista indivíduos como Amaral Pyrrait, Ramiro Valadão, José Cabral, Cabral de Moncada, Neves da Costa, Pinto de Lemos, Castro Fernandes e Garcia Domingues, entre outros. Um dos nomes que mais importa destacar é o de António Lepierre Tinoco. Este antigo membro do Integralismo Lusitano situava-se nas alas mais radicais do movimento e aparentemente era o maior defensor das suas ideias «socializantes», procurando dirigir o seu discurso para as classes trabalhadoras. Ele era também o membro do NS que, ideologicamente, mais se aproximava do nacional-socialismo alemão, ou pelo menos aquele que mais frequentemente mencionava a variante alemã do fascismo como sendo a sua principal influência (embora, muito provavelmente, a sua perceção daquilo que o nazismo representava não correspondesse com precisão à ideologia de Adolf Hitler). Tinoco haveria de dirigir, a partir de 4 de fevereiro de 1933, um suplemento semanal do jornal A Revolução (que inicialmente se intitulara Página do Operário) com o nome A Revolução dos Trabalhadores. Nas suas páginas lançavam-se ataques contra o patronato português e apelava-se diretamente aos trabalhadores, chamando-lhes «camaradas».

Este suplemento era lido em voz alta nos comícios e distribuído junto às fábricas nas ações de propaganda do movimento. Nos seus primeiros números, Tinoco resumiu os princípios ideológicos do NS, referindo que este queria «marcar a atitude dos novos» e fomentar uma «atitude digna, clara e violenta, que maior valor tem nesta época de miséria moral, de cobardia e de comodismo». Os seus objetivos seriam alcançar o equilíbrio na vida, a justiça social e a harmonia nacional. Para isso, era necessário «penetrar em todos os meios trabalhadores, considerando trabalhador todo o homem que trabalha à testa do capital ou da propriedade, na técnica, na mão de obra, no funcionalismo ou nas profissões liberais». Vê-se, assim, que o NS usava uma definição de «trabalhador» suficientemente lata para, ao contrário da ideologia comunista, abarcar as classes médias34. Esta visão estaria, no fim de contas, em sintonia com a visão de Rolão Preto, segundo o qual, apesar de todos os apelos à classe operária e aos trabalhadores rurais, deveriam ser as classes médias a base de um estado nacionalista.

O conflito com Salazar e o fim do NS

Não podemos esquecer-nos de que, enquanto tudo isto se passava, Salazar prosseguia lentamente com a construção do seu estado ditatorial, marcando para 19 de março de 1933 a realização de um referendo para aprovar a nova constituição do regime, que adotaria o nome de «Estado Novo». Por certo, a atitude de Salazar para com o Nacional-Sindicalismo seria de suspeição, vendo no movimento um adversário ideológico, e em Rolão Preto um adversário pessoal. Ademais, além de Salazar, a maioria das classes dominantes também olharia com um certo temor para o dinamismo mobilizador e «popular» do movimento fascista. Como refere Fernando Rosas, «a popularidade do MNS é encarada com clara desconfiança pelas elites políticas, económicas e militares de uma oligarquia que tinha no sangue o vírus do medo da agitação, mesmo quando ela era contrarrevolucionária»35. Neste contexto em que as elites dominantes preferiam alicerçar-se nas instituições tradicionais como a Igreja e o exército, o futuro do NS não parecia ser o mais promissor, pois o tipo de relações de cumplicidade que se estabeleceram em Itália e na Alemanha não poderia replicar-se em Portugal. Entretanto, os nacional-sindicalistas, que no início não pretendiam provocar uma mudança de regime ou de governo, foram progressivamente desenvolvendo uma atitude de confronto e provocação com Salazar, percecionado como uma figura demasiado conservadora e «moderada». Esta opinião é expressa numa frase de Rolão Preto dos inícios de 1933: «Salazar está fora da revolução nacional.»

Fascismos
créditos: Saída de Emergência

Foi por esta altura publicado um novo livro pelo chefe do NS, intitulado Salazar e a sua Época. Nele, Rolão Preto comentava as célebres entrevistas que o líder do Estado Novo havia dado a António Ferro, conhecido escritor português e futuro propagandista do regime. Este é talvez o texto em que mais claramente se compreende as diferenças ideológicas entre o Nacional-Sindicalismo e Salazar, além de ser também aquele que deixa menos dúvidas a respeito do conteúdo fascista do pensamento de Rolão Preto. Criticando Salazar por ser demasiado frio e calculista, e por perceber apenas de finanças, o líder do NS não vê nele um chefe que seja verdadeiramente capaz de dinamizar a sociedade portuguesa, apelando à juventude e aos seus desejos revolucionários. Salazar é, portanto, um tipo de líder muito diferente daqueles que, um pouco por toda a Europa, vestem uma farda e apregoam uma ideologia violenta, dinamizadora e transformadora. No geral, contudo, nada indica ainda que Rolão Preto tenha verdadeiramente a intenção de substituir Salazar no comando do país, estando apenas a tentar convencê-lo a aderir a uma ideologia «revolucionária», mesmo que isso lhe pareça pouco provável.

Entretanto, teve lugar um evento particularmente importante na história do Nacional-Sindicalismo. No dia 18 de fevereiro de 1933, quando fazia um ano da primeira publicação do jornal A Revolução, foi marcado um banquete no Parque Eduardo VII para celebrar a ocasião. Neste evento, Rolão Preto, que já havia consolidado o seu estatuto de líder, foi recebido com gritos de «Viva o chefe!». Durante o banquete, os discursos das mais diversas personalidades realçaram o caráter revolucionário do movimento e a sua busca pela justiça social, e Pinto de Lemos chegaria a afirmar que não se incomodava se as elites conservadoras do regime o apelidassem de «bolchevista». Rolão Preto lançou mais uma vez um desafio a Salazar (que o próprio terá certamente visto como uma ousadia): «Sr. Dr. Oliveira, ouça Vossa Excelência a alma portuguesa que vibra36

Nos dias que se seguiram, diversos artigos de Dutra Faria, Alberto Monsaraz e António Tinoco demonstraram a exaltação das hostes do NS no rescaldo deste evento. Motivados por ele, os nacional-sindicalistas preparavam-se para um período de intensa propaganda e ativismo de rua, banquetes e conferências. De facto, o movimento parecia ter razões para festejar, uma vez que ele continuava a difundir-se para outras regiões do país, tendo sido, por exemplo, em abril desse ano que foi inaugurado o secretariado do distrito de Viseu. O facto de a Liga 28 de Maio ter sido cooptada incentivou muitos dos seus membros a passar-se para o NS, aumentando ainda mais o número de militantes. Além disso, a chegada ao poder de Hitler a 30 de janeiro de 1933 entusiasmou alguns dos membros mais radicais, como Luís Forjaz Trigueiros e Tinoco. No dia 7 de maio teve lugar um novo banquete, desta vez no Palácio de Cristal da cidade do Porto e, poucas semanas depois, decorreu um outro em Coimbra, que tinha por fim homenagear o professor Eusébio Tamagnini. No banquete do Porto, Rolão Preto referiu desta vez que nada movia o seu movimento contra Salazar, por certo esperando que o ditador continuasse a tolerar a sua presença no seio do regime. Este recrudescimento do ativismo fascista provocou, como seria de esperar, conflitos violentos com os opositores, mesmo que estes possam não ter sido tão frequentes em Portugal como noutros países. Numa ocasião, os nacional-sindicalistas que se deslocaram a Coimbra, entre os quais estava Rolão Preto, foram recebidos por manifestantes antifascistas e permaneceram encurralados no Hotel Avenida, do qual só saíram com escolta policial.

O ponto alto do movimento em 1933 terá sido a sua presença em Braga, no dia 28 de maio, para celebrar os sete anos do golpe de Gomes da Costa. Estando Salazar ausente, os camisas azuis desfilaram pelas ruas da cidade de braço esticado. Contudo, quando regressavam de Braga terão ocorrido, particularmente em Ermesinde, alguns desacatos e confrontos violentos que envolveram os militantes nacional-sindicalistas e que causaram pelo menos cinco feridos. Anos mais tarde, Rolão Preto haveria de afirmar, numa entrevista a João Medina, que essas provocações tinham sido iniciadas por agentes da União Nacional (o partido do governo)37. Apesar de, no dia 7 de junho, o líder do NS ter sido recebido pessoalmente pelo Presidente Óscar Carmona, que lhe garantiu que na «revolução» continuava a haver espaço para todos os nacionalistas, incluindo o NS, João Medina parece não ter dúvidas de que terá sido este acontecimento a colocar um ponto final na fase de crescimento e euforia do movimento38. A partir de então, Salazar, que não tolerava concorrentes e não tinha especial simpatia pela vertente radical e galvanizadora da ideologia do NS, preparava-se para lidar com o movimento fascista de uma forma que lhe era própria: cooptando alguns para o seu regime e reprimindo os que se mantivessem inflexíveis.

Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini
créditos: Desassossego

Livro: "Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini"

Autor: Carlos Martins

Editora: Desassossego

Publicação: 13 de outubro

Preço: 16,93€

A partir desta altura, a censura começa a abater-se sobre o NS e o seu principal jornal, A Revolução, deixa definitivamente de ser publicado em setembro de 1933, depois de ter passado por um período de interregno nos meses anteriores. Além disso, foram tomadas medidas para proibir a realização de manifestações públicas ou outros tipos de eventos, incluindo os que contavam com a presença do respeitado professor universitário Eusébio Tamagnini. Tendo a censura do seu lado, o ditador encontrava-se numa posição privilegiada em que poderia mais facilmente calar os seus adversários. Apesar de Salazar ter permitido a realização do primeiro congresso nacional-sindicalista em novembro, o facto de o regime estar a atacar pesadamente o movimento levou a que os seus líderes radicalizassem a sua posição antissalazarista, o que foi notório em Rolão Preto, e também no seu mais fiel seguidor, Alberto Monsaraz. De resto, a relação conflituosa com Salazar também se havia feito sentir no verão de 1933, quando o regime adotou legislação que formalmente criava um sistema corporativo, parcialmente baseado no Fascismo italiano e no corporativismo católico. Isto contribuiu para enfraquecer em muito o poder de sedução do NS junto das massas, uma vez que um dos principais trunfos da sua propaganda era a reivindicação de um estado corporativo que trouxesse «justiça social». Com esta legislação do governo, o movimento teria mais dificuldades em apresentar-se como uma alternativa ao regime39.

Ademais, Salazar procurou trazer para junto de si uma ala de nacional-sindicalistas mais «moderados», que aceitariam integrar-se no regime e abandonar o culto a Rolão Preto. Um dos que primeiro aceitaram como viável a ideia de aderir ao salazarismo foi José Cabral, que aproveitou o primeiro congresso do movimento para atacar o chefe do NS, perante a oposição de Alberto Monsaraz. Não tardou muito para que Cabral e outros membros dessem entrevistas à imprensa do regime, nas quais elogiavam Salazar e afirmavam ver nele o líder da «revolução nacional». A cisão provocada pelo ditador no seio do movimento contribuiu para o enfraquecer, bem como a Rolão Preto. No início de 1934, um novo elemento contribuiu para aprofundar a divisão no seio do NS: com apoio do governo foi criado o jornal A Revolução Nacional, que era como que um representante deste novo Nacional-Sindicalismo, que declarava a obediência a Salazar. Dirigido por Manuel Maria Múrias, outrora seguidor de Rolão Preto, o novo jornal lançava ataques ao líder do NS, condenando o seu «hitlerismo». O jornal começou a ser publicado a 1 de março de 1934, quando o movimento se aproximava já da extinção, e nele Múrias dizia expressamente que «não queremos inimigos à direita» (referindo-se evidentemente a Salazar)40.

Além disso, o regime de Salazar mostrou-se disposto a criar instituições que os nacional-sindicalistas poderiam integrar e cuja coreografia e discurso se assemelhariam às de uma instituição fascista. Foi o caso da Acção Escolar Vanguarda (AEV), criada a 28 de janeiro de 1934 e liderada pelo nacional-sindicalista Ernesto de Oliveira e Silva e por António de Eça de Queirós (filho do conhecido romancista e simpatizante do fascismo, que haveria de estar presente no primeiro congresso internacional de fascistas realizado na cidade de Montreux, a 17 de dezembro de 1934). Esta organização para a juventude dizia defender a construção de um Estado totalitário e aquando da sua fundação teve lugar uma sessão no Teatro Nacional de São Carlos, que contou com a presença de Manuel Múrias41. Neste contexto, a ala mais radical do NS tinha cada vez menos margem de manobra e praticamente já só atuava na clandestinidade. Ainda assim, a radicalização dos nacional-sindicalistas fiéis a Preto tornou-se mais evidente, com o aumento das juras de lealdade ao chefe. Os insultos contra os que se passaram para o lado de Salazar também se tornaram frequentes, chegando, por vezes, ao confronto físico. Entre os que ficaram do lado de Preto estiveram, além de Monsaraz, José Campos e Sousa, António Lepierre Tinoco e António Pedro.

No processo de desintegração do NS foi particularmente importante o primeiro congresso da União Nacional, em maio de 1934, no qual participaram alguns nacional-sindicalistas «moderados» e que consolidou o poder de Salazar e a sua legitimidade como líder inquestionado da nova ditadura. O congresso foi tanto mais relevante por, nas semanas anteriores, terem surgido rumores sobre o descontentamento dos militares e sobre a hipótese de o Presidente Carmona demitir o presidente do Conselho de Ministros, com o qual teria razões para se sentir melindrado depois de este ter limitado os seus poderes. Os nacional-sindicalistas radicais, procurando tirar partido da ocasião, manifestaram a sua lealdade ao presidente, esperando uma substituição do chefe do governo que nunca chegou a ocorrer. Depois de, a 20 de junho, ter dirigido uma nota a Óscar Carmona, na qual era manifesto o desejo de substituir Salazar, e à qual o presidente terá permanecido indiferente, Rolão Preto foi mantido em prisão durante um breve período de tempo e pouco depois foi obrigado a exilar-se em Espanha, juntamente com Monsaraz.

Neste contexto, o inevitável haveria de acontecer. A 29 de julho de 1934 (dizem alguns que motivado pelo assassinato do chanceler austríaco Engelbert Dollfuss às mãos dos nazis do seu país), o ditador português redigiu uma nota oficiosa que ilegalizava finalmente o Nacional-Sindicalismo e que colocou um fim ao fascismo português enquanto movimento. No texto da nota oficiosa, Salazar condenava «a exaltação do valor da mocidade, o culto da força na chamada ação direta, o princípio da superioridade do poder político na vida social, a propensão para o enquadramento das massas atrás ou adiante de um chefe»42. Dizendo-se contrário à agitação política do movimento e às suas atividades desestabilizadoras, o ditador não deixou de mencionar, no final da nota oficiosa, que os militantes que queriam colaborar no regime poderiam fazê-lo ao aderir à Acção Escolar Vanguarda.

*

Enquanto movimento, o fascismo português teve uma breve história, inevitavelmente destinada ao falhanço. Ainda assim, os seus membros mais proeminentes formularam uma variante da ideologia fascista que, embora não necessariamente original, é digna de ser estudada e em muitos aspetos se assemelha às vertentes sindicalistas da variante italiana. A história do NS serve também para percebermos melhor o destino dos movimentos fascistas que se defrontavam, não com uma democracia liberal mas com uma ditadura conservadora, dominada por elites conservadoras que aparentemente rejeitavam os aspetos mais dinâmicos do fascismo. No caso do Nacional-Sindicalismo, que se pautou mais por uma atitude de contestação do que de conluio com as elites (apesar de esta última também ter existido), e no qual o discurso «revolucionário» e pseudossocializante do fascismo tomou a dianteira, qualquer caminhada para o poder que pudesse ser tentada, ou mesmo a tentativa de simplesmente preservar a sua autonomia, teria inevitavelmente terminado em fracasso.

Emergindo no contexto de uma luta entre «moderados» e «radicais» no seio da ditadura, o Nacional-Sindicalismo viu-se forçado a lidar com a vontade inflexível de um Salazar que não tolerava dissidências ou atitudes desafiadoras à sua pessoa. Além disso, a maior parte das elites conservadoras de Portugal, muitas delas descrentes na democracia liberal, já tinham escolhido o líder que preferiam ver à frente do novo regime, e este não seria o do movimento de massas fascistas mas o aparentemente pacato professor de Santa Comba Dão, António de Oliveira Salazar. A estas elites, a autonomia do NS aparecer-lhes-ia como desnecessária, ou até perigosa. Tal não impediria, é certo, que os elementos mais «moderados» do fascismo português que tivessem sido cooptados pelo regime pudessem fazer nele a sua carreira política ou tentassem dar-lhe caraterísticas mais vincadamente fascistas.

Traçar a história dos militantes do NS depois da desintegração do movimento é uma tarefa demasiado extensa para ser feita neste capítulo, mas deve referir-se que alguns dos ditos «moderados» acabaram por ocupar algumas posições de relevo, apesar de poucos terem estado verdadeiramente próximos do poder. É o caso de: José Cabral, que se tornou deputado na Assembleia Nacional e promulgou a lei que abolia a Maçonaria em 1935; Dutra Faria, que fez parte do Secretariado de Propaganda Nacional; Amaral Pyrrait, que ingressou nas organizações corporativas do regime; e Castro Fernandes, que chegou a ser ministro da Economia já na década de 1960, depois de, na década de 1930, ter escrito uma vasta obra sobre o corporativismo italiano. Os recalcitrantes prolongaram a sua atividade de oposição ao regime, ainda que na clandestinidade. O próprio Rolão Preto, depois do exílio em Espanha, haveria de tentar derrubar o regime com um golpe no qual, apesar de ter sido congeminado por um conjunto de forças políticas heterogéneas, os nacional-sindicalistas resistentes tomariam a dianteira. Essa tentativa de derrubar Salazar, que teria lugar em setembro de 1935 e que incluiria a tomada do navio de guerra Bartolomeu Dias pelas forças golpistas, resultou no mais completo fracasso. Rolão Preto teve de sair novamente do país, ao passo que António Tinoco seria preso poucas semanas depois. Este fracasso representou o fim definitivo de qualquer forma de organização genuinamente fascista (clandestina ou legal) em território português.

A crer em José Alexandrino Melo, terá sido pouco depois de 1935 que Rolão Preto iniciou a sua fase de transição, demonstrando cada vez mais ceticismo para com as ideias fascistas que imperavam na Europa. No entanto, autores como António Costa Pinto referem que, até pelo menos à Segunda Guerra Mundial, o líder do NS permaneceu no campo do fascismo. Em todo o caso, é seguro dizer que, depois do fim do conflito, Rolão Preto, apesar de se manter como nacionalista, já não era verdadeiramente um fascista, estando agora mais próximo de algumas ideias democráticas e chegando mais tarde a apoiar as candidaturas à presidência dos generais Norton de Matos e Humberto Delgado. A partir de 1934 e até à sua morte, independentemente de se encontrar no campo fascista ou, mais tarde, no democrático, Rolão Preto não deixou de considerar Salazar como o seu principal rival, e foi com entusiasmo que, no dia 25 de abril de 1974, acolheu o golpe que colocou um fim à mais longa ditadura da Europa. Outros importantes nacional-sindicalistas também alteraram as suas afiliações ideológicas, como foi o caso de António Pedro, que se aproximou do socialismo, ao passo que Alberto Monsaraz voltou às ideias integralistas.

Já no que diz respeito à ditadura de Salazar, nos tempos que imediatamente se seguiram à ilegalização do NS, esta parecia pouco disposta a incentivar a adoção de elementos fascistas, daí ter rapidamente relegado para um plano secundário a Acção Escolar Vanguarda, organização que já tinha cumprido a sua missão de integrar os nacional-sindicalistas no regime. Contudo, a partir de 1936, com o eclodir da guerra civil espanhola e o aumento de pressões de setores fascizantes dentro do regime (muitos deles antigos nacional-sindicalistas «moderados»), Salazar aceitaria criar duas organizações de inspiração claramente fascista: a Mocidade Portuguesa e, acima de tudo, a organização paramilitar Legião Portuguesa, cujo presidente da Junta Central, Costa Leite Lumbrales, tinha brevemente aderido ao Nacional-Sindicalismo43. Se, com a sua apologia de uma «revolução nacional» e com a sua designação oficial de «Estado Novo», a ideologia do regime sempre se tinha inserido naquilo a que chamamos «conservadorismo fascizante» (mesmo entre as alas a que, por conveniência, aqui chamamos «moderadas»), foi sobretudo na segunda metade da década de 1930 que essa componente fascizante se tornou manifestamente mais relevante. Mas essa é uma história que precisa de ser contada noutro lugar44.

Notas:

  1. João Medina, Salazar e os Fascistas: Salazarismo e Nacional-Sindicalismo, a história dum conflito 1932–1935 (Lisboa: 1978), p. 7.
  2. António Costa Pinto, Os Camisas Azuis e Salazar: Rolão Preto e o Fascismo em Portugal (Lisboa: 2016), p. 43.
  3. José Alexandrino Melo, «Rolão Preto: Um Intérprete do Século XX», in José Alexandrino Melo (ed.), Obras Completas de Francisco Rolão Preto (Lisboa: 2015).
  4. A informação sobre o movimento nacional-sindicalista que aqui apresentamos é maioritariamente retirada dos dois principais clássicos sobre o tema: João Medina, op. cit. (Lisboa: 1978); António Costa Pinto, op. cit (Lisboa: 2016).
  5. Uma história da Primeira República portuguesa encontra-se em Fernando Rosas, História da Primeira República Portuguesa (Lisboa: 2009).
  6. Para ler mais sobre a fundação e história do Integralismo Lusitano, ver António Costa Pinto, «A formação do integralismo lusitano: 1907–17», in Análise Social, Vol. XVIII (72– 73–74), 1982; José Manuel Quintas, Filhos de Ramires. As Origens do Integralismo Lusitano (Lisboa: 2004).
  7. Para ler mais sobre António Sardinha, ver Ana Isabel Sardinha Desvignes, António Sardinha 1887–1925: Um Intelectual no Século (Lisboa: 2006).
  8. Um dos mais importantes textos sobre a ideologia do Integralismo Lusitano encontra-se em Manuel Braga da Cruz, «O Integralismo Lusitano nas origens do Salazarismo», Análise Social (1982).
  9. Sobre Sidónio Pais, ver António Malheiro da Silva, Sidónio e Sidonismo, 2 vols. (Coimbra: 2006).
  10. Francisco Rolão Preto, «Para Além do Comunismo», in José Alexandrino Melo, ed., Obras Completas de Francisco Rolão Preto (Lisboa: 2015), p. 209.
  11. 156 António Costa Pinto, op. cit. (Lisboa: 2016), pp. 59–66. Ver também Ernesto Castro Leal, Nação e Nacionalismos: a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as Origens do Estado Novo (1918–1938) (Lisboa: 1999).
  12. A Noite Sangrenta remete para uma revolta militar de marinheiros revolucionários, que ocorreu na noite de 19 para 20 de outubro de 1921.
  13. Para ler mais sobre Homem Cristo Filho, ver Carlos Manuel Braga da Costa, Percursos de Homem Cristo: Ideologia e Política na República Velha (1910–1917). Tese de doutoramento (Lisboa: 1996). Ver também o clássico de Cecília Barreira, Nacionalismo e Modernismo: de Homem Cristo Filho a Almada Negreiros (Lisboa: 1981).
  14. António Costa Pinto, op. cit. (Lisboa: 2016), pp. 59–66. 134
  15. Idem (Lisboa: 2016), p. 71.
  16. Para ler mais sobre Salazar, ver Felipe Ribeiro Meneses, Salazar: Biografia Política (Lisboa: 2016). Ver também Manuel Braga da Cruz, As Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo (Lisboa: 1980).
  17. Fernando Rosas, Salazar e o Poder: A Arte de Saber Durar (Lisboa: 2012). 137
  18. António Costa Pinto, op. cit. (Lisboa: 2016), p. 107. 138
  19. Idem, p. 50.
  20. Francisco Rolão Preto, «A Monarquia é a Restauração da Inteligência», in José Alexandrino Melo (ed.), Obras Completas de Francisco Rolão Preto (Lisboa, Edições Colibri, 2015), p. 113.
  21. António Costa Pinto, op. cit. (Lisboa: 2016), pp. 117–18.
  22. Francisco Rolão Preto, «Orgânica do Movimento Nacional-Sindicalista», in João Martins (ed.), A Revolução Nacional dos Trabalhadores: Antologia de Textos do Nacional Sindicalismo (Lisboa: 1933), p. 49.
  23. Francisco Rolão Preto, «Balizas — Directrizes — Alma!», in José Alexandrino Melo (ed.), Obras Completas de Francisco Rolão Preto (Lisboa: 2015), p. 274.
  24. Idem, p. 158.
  25. Francisco Rolão Preto, «Para Além do Comunismo», in José Alexandrino Melo (ed.), Obras Completas de Francisco Rolão Preto (Lisboa: 2015), p. 196.
  26. Para ler mais sobre a conceção fascista do tempo, ver Roger Griffin, Modernism and Fascism (Londres: 2007).
  27. Quem também defende que a substituição da ideia monárquica pelo culto do líder representa um dos principais aspetos da evolução ideológica de Rolão Preto na sua fase nacional-sindicalista é Felipe Cazetta, «Do Integralismo ao Nacional-Sindicalismo: Tensões e Conflitos», Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica (2017).
  28. Para ler mais sobre o imperialismo no NS, ver João Medina, op. cit. (Lisboa: 1978), p. 239. 144
  29. António Costa Pinto, op. cit. (Lisboa: 2016), p. 180. 145
  30. João Medina, op. cit. (Lisboa: 1978), p. 25.
  31. António Costa Pinto, op. cit. (Lisboa: 2016), p. 136.
  32. Idem, p. 199.
  33. Idem, p. 136.
  34. Os textos da autoria de António Lepierre Tinoco no jornal nacional-sindicalista encontram-se reunidos neste site (consultado a 2 de janeiro de 2022).
  35. Fernando Rosas, op. cit. (Lisboa: 2012), p. 151.
  36. João Medina, op. cit. (Lisboa: 1978), p. 22. 150
  37. Esta afirmação foi feita numa entrevista a João Medina, realizada já em 1977.
  38. João Medina, op. cit. (Lisboa: 1978), p. 43.
  39. António Costa Pinto, op cit. (Lisboa: 2016), pp. 253–56.
  40. João Medina, op. cit. (Lisboa: 1978), p. 16.
  41. Para ler mais sobre a Acção Escolar Vanguarda, ver António Costa Pinto; Nuno Ribeiro (1980), A Acção Escolar Vanguarda 1933–1936 (Lisboa: 1980).
  42. João Medina, op. cit. (Lisboa: 1978), p. 240.
  43. Para ler mais sobre Costa Leite Lumbrales, ver Leonardo Aboim Pires, «João Pinto da Costa Leite (Lumbrales) na construção do modelo económico do Estado Novo: pensamento e ação política», Revista de História da Sociedade e da Cultura (2016).
  44. Para ler mais sobre o Estado Novo, ver Luís Reis Torgal, ed., Estados Novos, Estado Novo (Coimbra: 2009).