São 22:00. Depois de uma espera para entrar no pavilhão da Escola Básica Patrício Prazeres, onde ensaiam, os 25 homens e 25 mulheres que desfilam na marcha do bairro do Alto do Pina faz uma ‘rodinha’ a ouvir as primeiras orientações do ensaiador Bruno Vidal.
O início é de grande concentração. Não se ouve nada após a indicação de silêncio, seguida dos primeiros acordes da música e do grito ‘Alto do Pina’ por cinquenta vozes bem afinadas.
Entram as mulheres, marchando ao som de um rufar de tambor, algumas delas descalças, e assumem a sua posição.
Logo depois é a vez dos homens. Ninguém fala. Só se ouve a voz de Bruno. O padrinho, Madjer, considerado o melhor jogador de futebol de praia, e a madrinha, a apresentadora Teresa Guilherme, entram compenetrados no seu papel.
A “energia boa” dos marchantes sente-se no ar. Teresa Guilherme explicou à Lusa que são “miúdos com muita garra” e que se sente muito bem ao estar a seu lado “a apoiar e, ao mesmo tempo, a divertir-se”.
Já não é nova nestas andanças, sendo madrinha da marcha “há alguns anos”. Apesar de reconhecer o trabalho que as coreografias dão, é com gosto que passa os seus serões diários nos ensaios.
“Há dois tipos de padrinhos, os que entram, dizem adeus e dão o seu apoio. E há aqueles, como eu e o Madjer, que dançamos e cantamos e temos de vir aos ensaios”, disse a apresentadora, reconhecendo que um dos “grandes desgostos” que teve foi o facto de estar parada dois anos, devido à pandemia de covid-19, e não sair para a rua a desfilar.
Orgulhoso do convite para padrinho, Madjer reconheceu ser “mais fácil jogar à bola do que marchar”, embora admita que teve de “treinar muito”, tanto para uma coisa como para outra.
“Temos tudo para ser campeões. A fasquia está muito elevada. Eles têm uma entrega, assim como nós, para nada falhar. Queremos estar ensaiadíssimos com os marchantes, que já são batidíssimos nestas andanças”, afirmou, frisando que é com “muito orgulho e brio” que está a defender a marcha do Alto do Pina.
Apesar de ser angolano e morar na margem Sul, Bruno Vidal vive as marchas populares de Lisboa com o verdadeiro espírito bairrista desde 2015, altura em que chegou ao Alto do Pina a convite de um amigo.
“Era bailarino há mais de 25 anos e nunca tinha feito marchas”, disse à Lusa, explicando que é “viver com amor” o que sente ao estar à frente de uma marcha, que foi das primeiras a participar nas Marchas Populares de Lisboa, em 1932.
“É viver com amor, com paixão, viver com muita responsabilidade. É o Alto do Pina, uma das marchas pioneiras, já para não falar que é campeão em título e que, graças a Deus, o foi comigo em 2019”, disse, reconhecendo a responsabilidade de voltar a pôr estes marchantes “maravilhosos” vestidos com uma t-shirt ‘Alto do Pina campeão em 2022’.
Bruno Vidal lembrou que o facto de as marchas não terem saído dois anos seguidos para a rua “tirou o pão da boca” a muitos dos seus marchantes, que há 25 anos “ininterruptamente” defendiam as cores do bairro.
“Quem não conhece Lisboa não sabe que é vivido com muita intensidade. Até me arrepio só de falar. E essa é a responsabilidade acrescida que eu tenho. São pessoas que deixam famílias, filhos, os maridos, alguns metem férias de propósito para fazerem isto”, salientou, grantindo estar a dar o seu melhor para conseguir que os marchantes deem tambem o seu melhor e consigasm revalidar o título de campeões.
Em relação às coreografias, tema e figurinos, nada foi aproveitado do que estava planeado para sair à rua em 2020, tendo havido uma reestruturação.
Bruno Vidal lembra que “não se pode passar por cima de dois anos e do que aconteceu no mundo” e que o papel das marchas também deve ser “contar em história” isso mesmo.
Dos primeiros ensaios em que todos frisavam como “era bom estar de volta”, agora a responsabilidade “começa a apertar um bocadinho”, contou o ensaiador, que vê muitas vezes o semblante dos marchantes nestes quase três meses de ensaios a ficar “mais pesado”.
Esse semblante, contudo, deve ser “transformado em garra” para ficarem com “mais vontade de brilhar e fazer o nome do Alto do Pina chegar mais alto”.
Marco Campos é um dos marchantes mais antigos, com 33 anos de experiência. É também o presidente do Ginásio do Alto do Pina, responsável pela marcha. Disse à Lusa que a sua vida é em torno do bairro, das marchas e do clube, reconhecendo que sofreu mais nestes dois anos, “sem sair para desfilar, do que propriamente com a própria doença, quando apanhou covid-19”.
“Isto é a nossa segunda casa, senão mesmo a primeira para mim, que estou cá todos os dias. Já não passo sem o clube, sem a marcha. Não haver marcha, chegar àquela data e não haver aquela euforia que durante o ano andamos à procura foi um sofrimento muito grande”, desabafou Marco Campos.
A provar que a vida do bairro, do clube, se confunde com a família está o facto de uma das suas filhas, Nicole, de 14 anos, estar este ano a estrear-se na marcha dos mais velhos, depois de anos na marcha infantil dos “Alto Pininhas”.
Nem o facto de ter de se levantar cedo para ir para a escola depois de ensaiar todas as noites até bem tarde demovem a mais jovem marchante, confessando que o faz por gosto e como tal, não se importa.
Apesar de a pandemia não ter terminado e de o perigo de contágios fazer baixas no grupo, Bruno Vidal mostrou-se confiante com o facto de as regras da Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC), organizadora das marchas, não terem mudado: continuam a ser 48 marchantes, 24 mulheres, 24 homens e um par suplente.
“Acho que faz falta o amor, faz falta isto para a nossa sanidade mental. Temos de nos juntar e voltar a abraçar-nos. A pandemia conseguimos passar, mas [ficar sem] os afetos não conseguimos, fica marcado para a vida toda. [As marchas] fazem falta, a Portugal, à cidade de Lisboa e ao meu bairro”, disse Bruno Vidal.
As Festas de Lisboa tiveram início sábado com um concerto de Tito Paris, depois de dois anos de paragem forçada devido à pandemia de covid-19, com as marchas a descer a Avenida da Liberdade na noite do padroeiro da cidade, de 12 para 13 de junho.
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