BETÂNIA
Aos vinte anos emigrei para França, onde trabalhei quase uma década na construção civil antes de me licenciar em Engenharia e iniciar uma carreira bem‐sucedida graças exclusivamente aos meus méritos e à minha capacidade de trabalho. Durante todos esses anos só regressara a Portugal uma meia dúzia de vezes para umas curtas férias e unicamente para fazer a vontade à minha mãe, que a velhice fizera nostálgica de um país onde nunca tivera uma vida fácil mas que a recordação pintava com as mais belas cores. Por ironia do destino, quando aceitei assumir o caderno de encargos da construção de um cineteatro que um arquitecto meu amigo projectara para a região de Lisboa, ela tinha morrido pouco tempo antes e não pude deixar de sentir como uma injustiça terem‐me roubado uma oportunidade única de a compensar de uma vida mesquinha em que eu tinha sido o maior dos seus afectos. Instalei‐me num hotel bem situado e confortável sem ser luxuoso e dediquei‐me ao meu trabalho com todo o entusiasmo e empenhamento de um indivíduo na força da idade e que sente que ainda não atingiu o topo das suas ambições.
Os meus dias eram passados no estaleiro desde o alvorecer até às cinco ou seis da tarde.
O fim‐de‐semana surgia como uma interrupção abrupta e sempre inoportuna que preenchia com trabalho à secretária, uma ida ao cinema ou um curto passeio que terminava habitualmente à mesa de um café.
Num sábado radioso de Abril, depois de ter passado pela obra e confirmado que as minhas instruções estavam a ser rigorosamente cumpridas, vi que ainda tinha três horas de sol pela frente e, a boa disposição ajudando, apeteceu‐me conhecer melhor o centro da cidade onde ia deixar o meu nome associado à construção de um edifício que ficaria como um emblema de modernidade. Andei pelas ruas largas e arejadas, com passeios desafogados onde as pessoas podiam caminhar à vontade e espaços comerciais amplos e convidativos, a sentir crescer em mim uma certa nostalgia de expatriado e a pensar que me adaptaria bem a uma vida calma e descontraída numa pequena localidade junto ao mar e que tivesse todo o conforto e as amenities das grandes cidades.
Devo dizer que estes estados de alma nunca duravam muito tempo. Uma noite mal dormida, a menor contrariedade, e já só via problemas e entraves próprios de uma sociedade conservadora e retrógrada que me faziam almejar pelo momento de fazer as malas e partir sem olhar para trás.
Caminhava há cerca de uma hora quando passei pelo hospital, um bloco de cimento compacto e feio que ocupava um terço do quarteirão. Instintivamente acelerei o passo e desviei o olhar. A morte recente da minha mãe e as lembranças que lhe estavam associadas tinham‐me feito criar horror ao meio hospitalar, esse lugar nefasto onde se desenrolam os protocolos da morte. Foi então que vi Betânia, a andar no mesmo sentido que eu, uns vinte metros à minha frente. Não posso falar de uma aparição, como se tivesse surgido subitamente do nada, pois pareceu‐me natural, após uma primeira reacção de surpresa, que os acasos da vida nos tivessem feito coincidir à mesma hora ali. Tão natural que me limitei a regular o meu passo pelo dela, prolongando a expectativa e saboreando por antecipação a alegria do reencontro, sem nenhuma pressa de a alcançar.
Era ela, inconfundível, igual a si mesma como se não tivessem passado vinte anos. Magra, o pescoço alto, o cabelo cor de avelã cortado à altura da base da nuca, e sobretudo aquele andar dançado que fazia com que a saia ondulasse levemente a cada passada e lhe dava uma leveza de sílfide, de criatura etérea, que o porte altivo da cabeça, muito direita e destacada dos ombros, acentuava ainda mais. Reparei que tinha uma das mãos livre e na outra balançava uma pequena bolsa e isso recordou‐me o seu desprezo de sempre pelos objectos supérfluos, um gosto pelo despojamento que não tinha nada de ascético mas condizia com o seu feitio bravio e arisco, incapaz de suportar qualquer constrangimento que diminuísse a sua liberdade. A dada altura afrouxou o passo e percebi que se preparava para atravessar a avenida. Assim foi. Parou à beira do passeio junto a uns semáforos e esperou, sempre a olhar em frente e sem nenhum sinal de impaciência, que a longa fila de carros se imobilizasse ao sinal vermelho. Atravessei atrás dela mantendo a distância que nos separava, como nos filmes de espionagem, com a diferença de que, desejando ser visto, não fazia nada para me ocultar.
No seu passo dançante de calculada lentidão e ainda mais lento desde que deixara a avenida principal, Betânia parecia caminhar agora um pouco à toa pelo quadriculado de ruas ladeadas de vivendas que ocupam uma posição privilegiada entre a praia e a estação ferroviária, como se estivesse a pôr‐me à prova, deixando‐me decidir qual a melhor altura para a abordar. Depois houve um hiato, um curto período de suspensão em que ela parou e pareceu vacilar e que teve o efeito de me fazer entrar em pânico ao ocorrer‐me que talvez fosse encontrar‐se com alguém ou que pudesse desaparecer de súbito à entrada de uma das vivendas. Alarme falso. Ela prosseguiu caminho, deixou para trás a zona das vivendas e entrou na mata, uma espécie de parque florestal onde eu nunca tinha ido mas que sabia ser um dos principais atractivos da cidade.
Ainda havia bastante gente àquela hora, desportistas de fim‐de‐semana, grupos de jovens estirados nos relvados, crianças aos gritos no parque dos baloiços e, nos bancos expostos ao sol, ido‐ sos imóveis como sentinelas. Passámos por um café‐restaurante com uma esplanada envidraçada e eu tive esperança de que ela tomasse a iniciativa de entrar, mas ela limitou‐se a olhar de relance sem afrouxar o passo, com o mesmo desinteresse que lhe mereciam as pessoas com quem se cruzava e de quem se afastava automaticamente como se fossem meros obstáculos de percurso, e continuou a andar, imperturbável, parecendo deslizar à superfície da terra levada por uma força invisível que a arrastava para longe como um veleiro à deriva no oceano. Só então tomei subitamente consciência de uma anomalia que dava um aspecto intrigante a este passeio banal num dia soalheiro. Betânia não tinha o hábito de fazer caminhadas, muito menos caminhadas solitárias, era até bastante preguiçosa no que dizia respeito a qualquer actividade física, preferia o convívio em locais públicos e quanto mais animado o ambiente mais alegre e confiante se mostrava.
Mas não tive tempo de analisar este enigma porque, ao contornar um trilho entre arvoredo denso, avistei‐a tão perto de mim que parei de súbito, convencido de que a minha perseguição tinha terminado. Ela estava imóvel, encostada ao gradeamento de uma pontezinha de madeira que descrevia um arco sobre um curso de água, as mãos pousadas na vedação e a cabeça um pouco descaída sobre o peito, tão absorta nos seus pensamentos que não deu sinal de ter sentido a presença de um estranho, e eu, por escrúpulo, quedei‐me também paralisado.
E, no entanto, bastaria dar meia dúzia de passos para desfazer aquela situação absurda que ameaçava eternizar‐se, meia dúzia de passos e estaria ao lado dela e poderia começar a escrever‐se finalmente a história do nosso reencontro... Não sei em que momento nem como arranjei coragem para vencer a sensação de impotência que me colava ao chão. Não sei se foi em passos rápidos ou muito lentos que me aproximei até ficar quase ao seu lado. Mas ela não me ouviu, prolongando a espera, como se quisesse castigar‐me por chegar tão tarde. Mesmo quando pronunciei o seu nome demorou a reagir, como se despertasse lentamente de um sonho, e quando se virou e ficámos face a face ainda passaram alguns segundos até esboçar um sorriso incrédulo. «Tu aqui...» Não havia nenhuma emoção especial nestas palavras mas foi o suficiente para eu me sentir autorizado a abraçá‐la, pressionando contra mim aqueles ombros estreitos que se deixavam apertar docilmente como uma massa inerte. «Quem diria que nos havíamos de encontrar por puro acaso ao fim de vinte anos», disse eu, e ela repetiu «vinte anos»... como se tivesse perdido a noção do tempo e procurasse um ponto de referência no passado.
«Moras aqui perto?», perguntei, e sem esperar pela resposta disse‐lhe onde estava a residir temporariamente e o que me levara a deixar Paris. Ela deu‐me os parabéns pelo meu sucesso sem mostrar admiração e até com um encolher de ombros ligeiramente irónico, mas a partir desse momento convenci‐me de que começava a ver‐me com um olhar mais complacente ao recordar o colega de escola e depois o rapaz voluntarioso e fanfarrão, cheio de projectos mas de bolsos vazios, que se habituara a ver gravitar na sua órbita até já nem dar por ele, ofuscado e perdido na constelação brilhante dos seus pretendentes.
«Não queres vir tomar um café para conversarmos um pouco?», perguntei e gostei de a ouvir responder com o mesmo desprendimento altaneiro de sempre: «pode ser», como se, sendo‐lhe bastante indiferente, ainda assim lhe desse algum prazer.
Na esplanada quase deserta escolhemos uma mesa isolada onde podíamos falar sem que ninguém nos ouvisse. O constrangimento inicial desaparecera. Como se tivéssemos chegado a um acordo e a regra fosse «nada receies, já nada importa», o que nos permitia falar com tanta tranquilidade como se nos tivéssemos despedido na véspera. Primeiro informámo‐nos, como a simples cortesia impõe, dos familiares próximos com quem tínhamos convivido. Betânia perdera os pais muitos anos antes e referia‐se a isso com a ligeireza dos factos arquivados. A morte recente da minha mãe ainda me punha na voz um travo de melancolia mas mudei rapidamente de assunto ao ver Betânia desviar os olhos com um suspiro que parecia de enfado.
— Não falemos mais de coisas tristes. Conta‐me coisas de ti. Aposto que mesmo sem teres ido para longe como eu tiveste uma vida muito mais emocionante do que a minha.
— Não sei o que é que entendes por uma vida emocionante. Casei nova e divorciei‐me. Depois vivi com outro homem e separei‐me. Quando quis ter filhos já era tarde demais. Trabalho num laboratório de análises clínicas. Se isto é uma vida emocionante conta‐me a tua para comparar.
— Digo‐te já que a acho muito mais emocionante do que a minha. Eu tenho vivido para o trabalho, e o trabalho, quando é planeado ao milímetro como o meu, nunca é emocionante.
— Mas basta olhar para ti para se perceber que conseguiste chegar onde querias. Refiro‐me ao sucesso profissional. E também não pareces um homem infeliz.
— Sabes que nunca fui pessoa de sofrer tormentos por sonhos impossíveis. E claro que também tive as minhas satisfações a nível pessoal. E tu? És uma mulher feliz?
— Tenho dias. Mas agora, neste preciso momento, posso dizer que me sinto muito bem. Já não sei há quanto tempo não me sentava à conversa numa esplanada.
— Nem eu. Em geral considero que é uma maneira agradável de esbanjar o tempo ao alcance só de alguns, mas hoje tenho a impressão de estar a viver intensamente cada minuto que passa. Não trocava de lugar com ninguém neste mundo nem que estivesse em jogo todo o meu futuro.
— Fazes‐me rir. — Mas não se riu, pelo contrário, os seus olhos esfriaram, virou um pouco a cara, e pela nuca perpassou‐lhe um leve estremecimento.
— Tomara eu fazer‐te rir. É precisamente isso o que eu quero. Nunca quis outra coisa. Porque é que não me deixas fazer‐te feliz?
— Porque é impossível.
Mas depois destas palavras que pareciam querer encerrar de vez um assunto sem solução, inexplicavelmente o seu rosto iluminou‐se e pareceu libertar‐se de um peso que até ali a tornava prisioneira de si própria.
— Proponho não estragarmos este encontro a pensar no que não foi e podia ter sido. Lembremos só o que houve de bom, todos aqueles anos em que conversámos e discutimos assuntos sérios e frivolidades convencidos de que éramos os melhores do mundo. Tudo o resto é para esquecer.
Alguma vez pensaste em mim?, era a pergunta silenciosa que eu lhe fazia enquanto concordava com ela e sorria, sabendo que nunca haveria de a formular porque a resposta me deixaria sempre incrédulo quer fosse «algumas vezes» ou «nunca».
A penumbra já nos envolvia e começava a sentir‐se a aragem fria da noite, mas só nos levantámos quando o empregado começou a empilhar as cadeiras num convite educado para que desertássemos dali. As bebidas e a atmosfera pacífica que nos fazia sentir num reduto só nosso tinham‐me soltado a língua e agilizado a mente. De repente eu aparecia aos meus próprios olhos como um homem viajado e cosmopolita, se não culto pelo menos com uma memória que armazenava uma multidão de factos, pessoas e acontecimentos, sentia‐me efervescente, a brilhar a grande altura, e não tive dúvidas, pela atenção com que ela me ouvia, de que conquistara o meu auditório.
No caminho de regresso, atravessando o parque pelas áleas desertas e um pouco lúgubres sob a luz artificial, aproveitei a ocasião para lhe segurar várias vezes o braço que ela abandonava nas minhas mãos sem resistência nem cumplicidade.
À saída do parque, e antes que ela decidisse sobre o rumo a seguir, propus‐lhe irmos jantar a um restaurante, mas ela disse que ainda era cedo, que não tinha fome, num tom em que reconheci uma certa hesitação, uma contradição íntima, o que me deu coragem para a convidar para uma última bebida no bar do meu hotel antes de a acompanhar a casa. O meu convite foi aceite e ao chegar ao hotel subimos directamente para o quarto sem passar pelo bar. Despedimo‐nos de madrugada, depois de uma noite em que dissemos e fizemos as coisas mais risíveis e mais loucas, sem paralelo com as noites mais quentes da minha laboriosa e fraca vida amorosa. Ela desvairada, sôfrega, insaciável, com uma panóplia infindável de desejos e deixando‐me pouca ou nenhuma margem de liberdade, eu todo entregue ao prazer de ser um joguete nas suas mãos.
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