Com os seus uniformes verdes escuros e armados, os fiscais, recrutados na zona-tampão do Parque Nacional da Gorongosa (PNG), no centro de Moçambique, vão percorrer a pé zonas inóspitas num cenário de paraíso sob um calor dos infernos e dormir no mato, com o objetivo de detetar caçadores furtivos e neutralizar armadilhas.

“Armadilhas, caçadores furtivos, cabos de aço, armas também, catanas…” É com isto que Antónia Vasco, 24 anos, está habituada a lidar, enfrentando ações de pessoas da sua própria comunidade que, na sua enorme pobreza, agravada pelo recrudescimento do conflito entre Governo e Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) no último ano, procuram ilegalmente carne de grandes herbívoros para consumo.

Além de reduzir os efeitos das confrontações militares, que sem entrarem na área do Parque, estiveram recentemente bem perto e com graves impactos indiretos no seu projeto de restauro, a fiscal procura também ganhar conhecimento sobre a importância do ambiente e da conservação, que passará para a sua família e sobretudo para a sua filha, de cinco anos.

Muito antes de ser recrutado para o PNG na vila da Gorongosa, Costa Jornal, 29 anos, já gostava, por sua vez dos assuntos de conservação, agora levados à prática como chefe de patrulha, um ofício que não é como os outros.

“Quando vejo um animal numa armadilha, sinto-me arrepiado, porque as pessoas que a puseram estão a acabar com a biodiversidade”, lamenta. “Mas quando só vemos um cabo de aço e o animal ainda não foi apanhado, temos uma vantagem porque ainda não o perdemos”, refere Costa Jornal, salientando a importância da fiscalização diária no Parque.

Segundo dados da equipa de fiscalização do PNG, só em 2016 foram detetados 521 caçadores furtivos e outros infratores, 35 armas, 247 armadilhas mecânicas e 9.258 cabos de aço.

Os engenhos visam facoceros (javalis africanos), imbabalas, pivas, búfalos e outros herbívoros, mas, por vezes, não poupam sequer os próprios leões.

Na mesma manhã em que os fiscais saem para o mato, Paola Bouley leva um todo-o-terreno fora de estrada, rasgando o capim alto e segurando uma antena fora da janela, em busca de Flávia e suas crias.

É muito do que a diretora do Projeto Leão do PNG faz todos os dias, captando sinais GPS via satélite que lhe dão a localização de cada um dos grandes predadores existentes no Parque e também uma importante ajuda para os fiscais: se um animal fica imóvel por muito tempo, pode ter sido apanhado por uma armadilha.

Depois da guerra civil entre 1977 e 1992, o PNG perdeu 95% da sua vida selvagem e “o leão quase tinha sido varrido”, segundo Paola Bouley, dupla vencedora da National Geographic Big Cats Initiative, e chegada à Gorongosa há três anos: “Era o animal mais abandonado do Parque e, acredite-se ou não, nada tinha sido feito”.

A chegada da bióloga norte-americana de origem sul-africana coincidiu com o agravamento da crise política entre Governo e Renamo e desde então marcada por episódios de confrontações, onde a serra da Gorongosa é parte do mapa essencial do conflito, como base histórica do braço armado da oposição e onde o seu líder, Afonso Dhlakama, passou a maior parte dos últimos três anos, ao lado dos limites do Parque, e onde presumivelmente ainda se encontra.

Tem sido com a guerra nas vizinhanças que o PNG prossegue o esforço de restauro, iniciado em 2007 pela Fundação do filantropo norte-americano Greg Carr, e no qual o Projeto Leão é uma das suas principais componentes, entre uma guerra civil passada, que deixou apenas dez animais após o seu término, e outra presente, que ameaça uma notável recuperação para cerca de oitenta.

“Temos aqui milhares e milhares de herbívoros e comida suficiente para sustentar um grupo de 200 leões”, diz a bióloga, que calcula que o Parque esteja a cerca de metade de uma designação de bastião, num projeto científico inédito no continente africano sobre a recuperação de uma população em sistemas não cercados e em que a atual área é curta.

“Como conservacionista de grandes carnívoros e bióloga, olho para vastas áreas e este Parque é relativamente pequeno em relação à região em que se insere”, aponta a diretora do projeto, referindo que o leão não consegue sobreviver na “bolha” de quatro mil quilómetros do PNG, e precisa de corredores que o liguem aos territórios vizinhos, como as concessões florestais e coutadas de caça.

No final de novembro, o PNG assinou um acordo com o Entreposto para a conversão de mais de 200 mil hectares de uma coutada de caça contígua em área de proteção total e que poderá implicar a quase duplicação da área do Parque até às margens do Zambeze, e trazer novos corredores, não só para o leão como também para a viabilidade de outras espécies, como o primeiro grupo de seis leopardos, na reintrodução de uma espécie entretanto extinta na Gorongosa.

Um bom caminho para a criação de novas áreas de expansão de vida selvagem foram as ações de limpeza no planalto de Cheringoma, onde, segundo Paola Bouley, até há pouco tempo “não se podia andar ali sem literalmente tocar numa armadilha” e agora pronto como corredor para os grandes felinos.

Além da caça furtiva, a guerra atingiu ainda o turismo, que, antes da crise política, estava a ter picos de visitantes acima dos sete mil e, no ano passado, não chegou sequer aos dois mil. Certas zonas de acesso à serra da Gorongosa continuam, por sua vez, encerrados por motivos de segurança,

Foi lá que ficaram abandonados 43 viveiros com cerca de cem mil plantas cada que Pedro Muagura, um engenheiro florestal moçambicano e atual diretor de conservação do PNG, deixou plantados há quase dois anos e lá permanecem “por causa da situação que não está bem”.

A Renamo declarou entretanto uma trégua no início do ano e com ela chegou uma esperança ainda por confirmar do fim da nova guerra em Moçambique, que, entre as suas múltiplas formas de destruição, atrasa a segunda vida e decisiva do seu mais icónico parque nacional.

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