Seis desafios à escala do mundo

Chefe da Igreja universal, o Papa não tem de se dirigir somente aos fiéis católicos. A sua missão fá‑lo estar entre os grandes deste
mundo e também perto dos mais distantes. Os grandes dossiês de alcance internacional, as questões do diálogo com as outras religiões e culturas exprimem‑se em parte nas viagens, mas também nas audiências muito numerosas de responsáveis religiosos e políticos que se deslocam ao Vaticano. Dossiês tão sensíveis como as questões internas, que exigem firmeza e diplomacia.

O acolhimento dos migrantes

O empenho do Papa Francisco a respeito dos migrantes é um dos aspetos mais constantes e proféticos do seu Pontificado.

Desde 2013 que o Papa Francisco fez da defesa dos migrantes refugiados e das pessoas deslocadas uma prioridade da sua ação pastoral e diplomática. Filho de migrantes italianos instalados na Argentina, Jorge Mario Bergoglio transporta consigo essa atenção a questão das deslocações forçadas, que considera como um desafio não so humanitário, mas também espiritual e moral.

Foi poucos meses apenas após a sua eleição, em julho de 2013, que efetuou a sua primeira deslocação fora de Roma à ilha de Lampedusa, na Sicília. Um lugar simbólico: é uma das principais portas de entrada na Europa para milhares de migrantes que atravessaram o Mediterrâneo, muitas vezes com risco da própria vida. Francisco denuncia lá a «mundialização da indiferença» e chama o mundo a «chorar» por aqueles que morrem no mar na indiferença geral.

Essa visita imprime uma direção clara. Francisco lembrou por várias vezes que «cada migrante tem um rosto, uma história, um nome». Exorta os católicos a acolher, proteger, promover e integrar os migrantes. Insiste no facto de que a hospitalidade para com o estrangeiro é uma exigência cristã fundamental, enraizada no Evangelho. Na sua Encíclica Fratelli tutti (2020) consagra vários capítulos aos migrantes, sublinhando a importância de uma solidariedade universal e apelando a que se ultrapasse a lógica dos nacionalismos.

Além da ida a Lampedusa, Francisco efetuou várias visitas emblemáticas aos migrantes, nomeadamente na ilha grega de Lesbos, em 2016, de onde voltou a Roma trazendo simbolicamente consigo três famílias de migrantes muçulmanos.

Qual será a posição do novo Papa, quando Francisco teve muitas vezes de enfrentar críticas, mesmo no seio do mundo católico? Certos fiéis, nomeadamente na Europa e nos Estados Unidos, acusavam o Papa defunto de ingenuidade. «Os migrantes não são uma ameaça, são um desafio», afirmava ele. Para Francisco, a questão migratória não é apenas humanitária: toca o cerne da mensagem cristã sobre a dignidade da pessoa humana. Nos seus discursos, liga migração, pobreza, ecologia e desigualdades globais e lembra que as causas das migrações – conflitos, crises climáticas, injustiças económicas – têm de ser combatidas na sua raiz.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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O desafio climático

A outra urgência que o Papa Francisco remeteu ao mundo foi o desafio climático. Desde a sua eleição em 2013 que o Papa Francisco fez da proteção da criação e da questão da crise ecológica um dos grandes eixos do seu Pontificado. Para ele, ecologia, justiça social e fé cristã estão intimamente ligadas: cuidar do planeta é cuidar dos mais pobres e honrar a Deus. A grande originalidade do empenho ecológico de Francisco é ter articulado a ecologia com uma visão global do homem e da sociedade.

Aquilo a que chama «ecologia integral» concerne não só o ambiente natural, mas também as questões económicas, sociais, culturais e espirituais. A destruição da natureza anda a par da opressão dos mais vulneráveis: «Está tudo ligado», afirmou ele. O ato principal desse empenhamento é a publicação em 2015 da Encíclica 'Laudato si’ (Louvado sejas). Esse texto poderoso tira o seu título do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis. Nunca um Papa tinha consagrado uma encíclica inteira à questão ecológica. A sua palavra fez-se ouvir no debate internacional pelo seu vigor e empenhamento. Na 'Laudato si’, Francisco denunciou com efeito a «pilhagem irresponsável» da Terra, causada por um modelo económico baseado no consumo sem limites e no lucro imediato. Criticou o «paradigma tecnocrático» que isola a tecnologia da preocupação ética e convidou a uma mudança radical de modo de vida, a uma conversão ecológica pessoal e coletiva.

Dirigindo-se aos crentes e «a todas as pessoas de boa vontade», o Papa ecologista convida todos a «ouvir ao mesmo tempo o grito da Terra e o grito dos pobres», escreveu ele, insistindo no facto de que são os mais desfavorecidos que sofrem em cheio as consequências das alterações climáticas e da degradação do meio ambiente.

Embora houvesse urgência em responder ao desafio ecológico, Francisco tinha consciência de que a crise climática ultrapassava o tempo de um Pontificado, o que compromete o seu sucessor num domínio que incomoda as forças económicas internacionais. Ia ao ponto de nos alertar contra «a cultura do desperdício» que trata os recursos naturais, mas também as pessoas humanas, como objetos descartáveis. Embora lá não tenha ido, o Papa apoiou os Acordos de Paris sobre o clima, firmados em dezembro de 2015, fazendo da questão climática um espaço de diálogo da Igreja com o mundo.

O Sínodo sobre a Amazónia, realizado em outubro de 2019, participou dessa mobilização pela ecologia, fazendo a ligação entre a desflorestação, as violações dos direitos dos povos autóctones e a crise climática mundial. Através da Exortação Apostólica Querida Amazónia exprimiu o seu sonho de uma Amazónia que defenda a vida, proteja as suas riquezas naturais, respeite as culturas autóctones e se desenvolva de forma sustentável.

Em outubro, a Encíclica Laudate Deum (Louvai Deus) atualiza a Laudato si’ frente ao agravamento da crise climática. Francisco exprime nela a sua crescente inquietação perante a inação internacional e o atraso sofrido na limitação do aquecimento planetário. Reafirma a necessidade de uma «conversão ecológica urgente» e sublinha que a ecologia não pode ser separada da justiça social. Para ele, defender o meio ambiente não é uma opção secundária para os cristãos, mas um aspeto fundamental da fé num Deus criador. E a luta pelo ambiente passa também por uma transformação interior, encorajando uma «sobriedade feliz».

Cada pequeno gesto, cada decisão quotidiana, conta.

Enquanto «arde a casa comum», a questão ambiental parece uma oportunidade de diálogo com outras tradições religiosas e espirituais, impondo-se a salvaguarda da Terra como um desafio comum a todas as crenças. Mas o empenhamento ecológico do Papa por vezes suscitava críticas. Uns censuravam-lhe o imiscuir-se nos debates políticos, económicos ou científicos. Outros estimam que a Igreja deveria concentrar-se unicamente na Fé e na moral. Para Francisco, a ecologia não é um tema político entre outros: respeita ao próprio cerne da missão cristã, que é proteger a vida sob todas as suas formas. Uma urgência com a qual o seu sucessor não tardará a ser confrontado.

Livro: "Leão XIV: O Sucessor Inesperado"

Autor: Christophe Henning

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 9 de junho de 2025

Preço: € 14,39

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Uma diplomacia todo-terreno

Se a ecologia nutriu as relações diplomáticas do Papa Francisco, não foi, contudo, o único domínio da intervenção do Vaticano e do Papa argentino, que nunca cessou de se levantar contra as guerras e conflitos que tingem o mundo de sangue. Também nisto, não faltarão ao novo Papa motivos de preocupação, dada a tradição de mediador internacional do Vaticano. O pequeno Estado possui, com efeito, uma extensa rede diplomática. Com as Nunciaturas presentes no mundo inteiro, mais de 180 Estados mantêm relações oficiais com a Santa Sé, que se compromete a defender a dignidade humana, proteger a paz, promover o diálogo inter-religioso.

Com Francisco, essa diplomacia esteve muito ativa, pondo a tónica no encontro direto com os povos e os dirigentes, mesmo em contextos de tensão. Assim, podemos registar no ativo da diplomacia a aproximação entre Cuba e os Estados Unidos obtida em 2014 ou ainda a assinatura de um acordo entre o governo boliviano e as FARC, em 2016. Perante os conflitos da Ucrânia, da Síria, da África e de outros lugares, Francisco multiplicou também os apelos à paz, condenando sem ambiguidade as guerras e o comércio das armas. O novo Papa será certamente muito mobilizado pela sorte da Ucrânia depois da invasão russa de 2022, tanto mais que, condenando o conflito, Francisco fez questão de manter o contacto com Moscovo.

Seria preciso dar a volta ao mundo para medir a atividade diplomática do Vaticano. Podemos apenas lembrar dossiês que contaram, como o acordo histórico de 2018 com a China sobre a nomeação dos Bispos católicos, visando ultrapassar a divisão entre Igreja clandestina e Igreja oficial, assunto extremamente sensível que não concitou unidade.

O Médio Oriente em chamas há anos foi também um terreno diplomático prioritário da Santa Sé e que não perde atualidade. Francisco multiplicou os apelos à paz na Terra Santa e em toda a região. Em 2021 chegou ao ponto de ir a Mossul, quando da sua histórica viagem ao Iraque, empenhando-se em defesa dos cristãos perseguidos e apelando à coexistência entre religiões.

Tomando como testemunhas os delegados de todos os países quando dos seus dois discursos na ONU, o Papa Francisco sublinhava a urgência de unir forças face aos desafios mundiais, pandemia, pobreza, alterações climáticas, guerras. O Chefe da Igreja propugnava uma governação ética mundial, ao serviço do bem comum.

Enfim, o peso internacional do Vaticano já não se discute, quando nada menos que 130 delegações e uma meia centena de Chefes de Estado foram a Roma para o funeral do Papa Francisco em 26 de abril. E são numerosas as personalidades internacionais que foram assistir às primeiras celebrações do novo Papa, que voltarão sem demora para o encontrar.

Prosseguir o diálogo com o Islão

Desde a eleição de Francisco em 2013 que o diálogo entre a Igreja Católica e o Islão conheceu um novo impulso, quando justamente as religiões instrumentalizadas estiveram no centro de conflitos e violências em muitos países. Apóstolo da fraternidade humana, não se contentou com palavras, marcando os espíritos com gestos, provas dos «laços de estima e amizade» que quis tecer no decurso do seu Pontificado.

É nomeadamente o encontro histórico com o Grande Imã Ahmed al-Tayeb, em 2016, que se impõe como o momento-chave desse diálogo. Esse encontro no Vaticano marcou a retoma oficial do diálogo com a universidade sunita de Al-Azhar, principal centro do Islão moderado, após vários anos de rutura. Seguiu-se ao encontro em 2017, uma visita do Papa ao Egito onde pronunciou um discurso muito notado sobre a necessidade de rejeitar todas as formas de violência religiosa e promover a educação para a tolerância. Por fim, a assinatura, em 4 de fevereiro de 2019, em Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos) da Declaração sobre a Fraternidade Humana com o Grande Imã da Al-Azhar, apela à paz entre as nações e à coexistência entre as religiões, rejeitando todas as justificações religiosas da violência. «A fé conduz o crente a ver no outro um irmão a apoiar e amar», insiste o documento que iniciou um Dia Internacional da Fraternidade Humana, celebrado todos os anos a 4 de fevereiro, sob a égide das Nações Unidas. Em 2021, o Papa foi ao Iraque, viagem histórica a um país martirizado, com um encontro importante com o Aiatola Ali al-Sistani, grande figura xiita. Esse encontro marcou um avanço decisivo do diálogo com o Islão xiita.

O novo Papa deverá, sem dúvida, aprofundar o caminho de fraternidade iniciado por Francisco, para que o diálogo islâmico-cristão não seja apenas fruto de um Papa argentino profético, mas efetivamente um diálogo concreto e duradouro, a despeito das violências alimentadas por vezes pelos reflexos comunitários. As Congregações Gerais permitiram, decerto, abordar esta questão.

Judaísmo e antissemitismo

As relações entre a Igreja Católica e o Judaísmo conheceram uma transformação histórica no século XX, em particular a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). Esse processo de aproximação, fundado no reconhecimento do laço espiritual entre judeus e cristãos – nomeadamente pela declaração conciliar Nostra Aetate em 1965 – foi prosseguido e aprofundado pelos Papas seguintes, até Francisco, que deu um rosto particularmente fraternal a essa relação.

João Paulo II foi o primeiro Papa a entrar numa sinagoga, em Roma, em 1986. Reconhecia os judeus como sendo para os católicos «os nossos irmãos mais velhos na fé». O Papa polaco visitou o Muro das Lamentações em 2000, depositou lá uma nota a pedir desculpa pelas faltas dos cristãos para com os judeus. Bento XVI prosseguiu esse diálogo, mesmo face a tensões, nomeadamente a propósito da oração pela conversão dos judeus.

O Papa Francisco fez do diálogo com o Judaísmo um dos componentes mais pessoais e constantes do seu ministério. A sua proximidade com a comunidade judaica remonta à sua vida na Argentina, onde, como Arcebispo de Buenos Aires, estabeleceu uma amizade profunda com o Rabino Abraão Skorka, com quem escreveu um livro e participou em conferências inter-religiosas. «Um cristão não pode ser antissemita. As nossas raízes são judias», declarou, por exemplo, o Papa Francisco. Visitou a sinagoga de Roma em janeiro de 2016, na esteira dos seus dois predecessores.

Visitou também o Muro das Lamentações de Jerusalém, em 2014, acompanhado pelo Rabino Skorka e por um Imã muçulmano, e foi a Auschwitz em 2016. Embora gestos fortes tenham selado a amizade judaico-cristã, a ascensão recorrente do antissemitismo e das políticas de extrema-direita – nomeadamente na velha Europa – será necessariamente uma das preocupações do novo Papa.

A diversidade ortodoxa

O diálogo entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, separadas desde o cisma de 1054, intensificou-se no decurso de 2013, nomeadamente após o Concílio Vaticano II. Desde a sua eleição em 2013, o Papa Francisco prosseguiu e aprofundou essa relação com um estilo pessoal fundado na fraternidade, a simplicidade e o respeito mútuo. Mau grado os obstáculos doutrinários e geopolíticos, tiveram lugar avanços importantes nos últimos dez anos.

O Papa Francisco inscreveu o seu Pontificado na continuidade ecuménica, mas com uma ênfase mais pastoral e fraternal do que estritamente teológica. Estabeleceu laços fortes com vários patriarcas ortodoxos, nomeadamente o Patriarca Ecuménico de Constantinopla Bartolomeu I, Teófilo III de Jerusalém e o Patriarca Cirilo de Moscovo.

Os mais frutuosos desses laços foram os estabelecidos com Bartolomeu, «primeiro entre os iguais» no mundo ortodoxo. Francisco avistou-se com ele várias vezes, nomeadamente por ocasião da sua peregrinação comum a Jerusalém, em 2014, que marcou os 50 anos do encontro entre Paulo VI e Atenágoras em 1964. Exatamente como Francisco, Bartolomeu está muito empenhado na defesa da «casa comum» e na salvaguarda do ambiente. Têm também em comum o acolhimento dos migrantes: em 2016, juntos, em Lesbos, quiseram manifestar a sua preocupação quanto aos refugiados do Mediterrâneo.

Francisco foi o primeiro Papa a avistar-se com um Patriarca russo, no caso Cirilo de Moscovo, em Cuba, em fevereiro de 2016. A sua declaração comum apela à defesa da vida, da família, dos cristãos perseguidos e à superação das tensões históricas. Mas a guerra na Ucrânia, os laços da Igreja russa com o poder e as tensões no seio do mundo ortodoxo entre Moscovo e Constantinopla não permitiram reais avanços nestes últimos tempos. É um terreno diplomático delicado que calha ao novo Papa.