Ainda os mortos e feridos não tinham sido identificados, já François Hollande aparecia na televisão a anunciar medidas implacáveis, a começar pelo imprescindível e inútil fechamento das fronteiras. Imprescindível porque a primeira coisa que se faz depois dum assalto é trancar as portas, inútil porque hoje em dia o terrorismo é sobretudo perpetuado por muçulmanos nascidos na Europa. É que, entretanto, numa mudança que parte da opinião pública europeia não conseguiu ou não quer compreender, o terror mudou de protagonistas e de modus operandi.
Quanto aos protagonistas: a Al-Qaïda, que era o enfant terrible desde o atentado do 11/Set/2001 em Nova Iorque, é um grupo de amadores, quando comparados com a nova entidade surgida do quinto dos infernos, o auto-intitulado Estado Islâmico, também conhecido como ISIS (Islamic State of Iraq and the Levant) ou Daesh (em árabe). A Al-Qaïda era (e ainda é) uma organização sem território (pode estar em toda a parte) dedicada a atacar os Estados Unidos e seus aliados, acreditando estar no começo de uma longa luta contra o Grande Demónio, sem fim à vista.
O ISIS é uma religião salafita baseada em predições da mitologia muçulmana, segundo a qual o fim dos tempos está para breve e colocará frente a frente os cruzados de Roma contra os exércitos do Califado, um estado territorial em expansão permanente, a começar por uma área da Síria e do Iraque, com capital na cidade sagrada de Raqqa. Até chegar essa batalha final, os principais inimigos e aqueles que têm sido massacrados sem dó nem piedade são os outros muçulmanos, os shiitas, considerados apóstatas e muito mais culpados do que os cristãos, ou outras religiões.
A guerra contra os ocidentais, provocada mais porque os ocidentais resolveram que tal aberração não pode subsistir, é apenas uma faceta do domínio do mundo e da extinção das centenas de milhões de apóstatas shiitas. Estranhamente, o ISIS tem recrutado milhares de jovens entre os muçulmanos europeus de segunda geração (isto é, nascidos na Europa) e católicos arrependidos. Quer dizer, a grande movimentação de pessoas dispostas a lutar nesta guerra santa têm sido para entrar no Califado, e não para sair do Califado para a Europa. Isto significa que as polícias europeias têm prendido sobretudo jovens que querem fugir para o Iraque, e não que vêm do Iraque para a Europa.
Isto só para esclarecer e é muito importante que se esclareça que os milhões de sírios e que estão a fugir por terra e a nado para a Europa não vêm fazer terrorismo; estão precisamente a fugir dos massacres do ISIS, das forças do ditador sírio Bashar Al Assad, dos kurdos, e dos vários grupos de insurgentes que transformaram as cidades sírias em montes de entulho. Os terroristas do ISIS ou já nasceram na Europa, ou vêm de avião com bilhete pago e passaporte.
Agora, quanto ao modo de operar: a Al-Qaïda ataca alvos militares, ou inimigos específicos, como o Charlie Hebdo. O ISIS, agora em Paris, atacou alvos civis, indiscriminadamente escolhidos inclusive em bairros classe-média baixa, onde vivem imigrantes. A ideia é semear o terror, fazer com que qualquer pessoa se sinta a perigo, mesmo que não tenha qualquer actividade a não ser viver o seu dia-a-dia pacatamente. Tanto faz se são americanos ou vietnamitas, ricos ou pobres, novos ou velhos; não são os fieis, não seguem os preceitos específicos das escrituras e ainda se atreveram a bombardear as terras sagradas do Califado.
Daí que este ataque de Paris, o primeiro organizado pelo Califado no estrangeiro, represente uma mudança radical, e para pior, do terror terrorista. Utiliza pessoas de nacionalidade europeia, recrutadas, por exemplo, entre os dez milhões de muçulmanos (e muitos não muçulmanos) que nasceram em França ou os muitos milhões que nasceram na Bélgica, na Holanda e na Grã Bretanha jovens sem desígnio na vida e sem futuro para lá do salário mínimo, a quem a doutrinação dá um sentido à vida e permite ventilar as frustrações de uma sociedade de abundância que que só lhes dá miséria e exclusão.
É verdade, Paris ardeu na sexta-feira passada. Já Madrid tinha ardido em Atocha em 2004, e Londres em 2005 nesses, ainda era a Al-Qaëda, mas já com os métodos do ISIS. Maiores deflagrações já estão prometidas para outras cidades europeias e americanas. Outras operações dezenas, segundo os relatórios têm sido evitadas pelas forças de segurança.
A Europa tem uma difícil tarefa pela frente; precisa manter as liberdades individuais que levaram séculos a conquistar e são a essência da vida ocidental; não pode descriminar os muçulmanos que fogem aos milhões do inferno sírio; e tem de descobrir uma maneira de eliminar o Califado sem se meter na tal batalha final na planície de Raqqa.
Paris não pode arder mais.
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