Na América do Sul o futebol é como a literatura, mais bonito, mais apaixonante. Os relatos e as crónicas dos jogos tem uma outra paixão. A voz do locutor ou a caneta de um jornalista transformam-se no anúncio do apocalipse quando uma bola bate no poste e sai para fora, ou fazem de um golo a descrição do momento mais belo das nossas vidas.
Por lá o futebol é mais humano, não se discute tanto táticas ou metodologias de jogo. Unem-se homens no balneário e as decisões do jogo ficam arrumadas numa finta, num momento individual de talento, ou num agregado de tudo isto.
Não é por aquelas terras do sol baixo e quente que serve de teto a adeptos e jogadores que estão as melhores ligas do mundo. Mas é de lá que vem o futebol mais puro. O futebol nasceu, historicamente, na Inglaterra, mas é nos bairros, nos pelados, que nascem os craques, aqueles que são capazes de levar a bola na ponta do pé sem que ultrapasse a linha lateral porque estão habituados a jogar entre paredes, aqueles que nasceram numa condição social mais desfavorecida e que ao vestirem a camisola da sua seleção ou do seu clube agigantam-se e sonham. Sonham em ser profissionais, em chegar à Europa, em jogar a Libertadores, Copa América ou um Mundial.
Foi num desses bairros em Medellín, na Colômbia, que cresceu César Mauricio Velásquez, jornalista, escritor, professor de comunicação e antigo embaixador colombiano junto da Santa Sé. Velásquez é um apaixonado pela comunicação, religião e futebol. Fez disso vida e foi esse percurso que o levou terça-feira até ao Colégio Universitário Montes Claros, em Lisboa, a convite do gabinete do Opus Dei em Portugal. A poucos dias do início do Mundial de futebol na Rússia, o livro do jornalista colombiano, “Futebol com Alma”, que retrata o lado humano do futebol através de conversas com o Papa Francisco e seis lendas do desporto-rei, como Alfredo Di Stéfano, Javier Zanetti ou Andrés Escobar, foi tema para uma conversa informal com vários jornalistas.
Andrés Escobar cresceu no mesmo bairro que César. Defesa-central, Escobar fez praticamente todo o seu percurso na Colômbia, no Atletico Nacional, somando apenas uma experiência infeliz no estrangeiro, no clube suíço Young Boys. Ficaria conhecido por um golo. Um golo na baliza errada, num jogo errado e que levou a que algo de muito errado acontecesse, algo que mancharia para sempre a história dos Campeonatos do Mundo.
"Estive 15 anos sem entrar num estádio" depois da morte de Andrés Escobar
Estávamos em 1994, no Mundial disputado nos Estados Unidos da América, e a Colômbia era uma das seleções favoritas a levantar o troféu depois de ter garantido a qualificação para a maior competição de futebol do mundo com uma vitória por 5-0 sobre a Argentina de Batistuta e Diego Simeone, em Buenos Aires.
A Colômbia estava no Mundial e a goleada frente à albiceleste dava-lhes o rótulo de candidatos. Já nos EUA os colombianos tinham pela frente um grupo acessível. Roménia, Estados Unidos e Suíça faziam prever que aquela Colômbia pudesse ir longe, mas não foi.
O primeiro jogo - e a primeira derrota - diante da Roménia caiu como um balde de água fria sobre as expectativas dos adeptos daquele país e como um despertar da ilusão. Não havia espaço para facilitismos e, por isso, vencer o anfitrião do torneio era necessário.
O jogo com os Estados Unidos seria o pré-anúncio do desfecho trágico do torneio. Aos 35 minutos há um cruzamento rasteiro do lado esquerdo do ataque norte-americano. Escobar tenta um corte de rasteira, desvia mal a bola e coloca-a no fundo da sua própria baliza. O central e capitão leva de imediato as mãos à cabeça, não queria acreditar no que tinha acabado de acontecer. O futebol da Colômbia de Valderrama, Rincón, Valencia e Asprilla seria insuficiente para contrariar a equipa da casa que aos 52 minutos dilatou a vantagem para 2-0, golo de Earnie Stewart. A Colômbia reduziu aos 90 por Valencia, mas já não havia nada a fazer.
Para ultrapassar a fase de grupos era preciso vencer a Suíça e esperar que os Estados Unidos derrotassem a Roménia. Aconteceu a primeira, mas não a segunda e a Colômbia estava fora do Mundial.
Seis dias depois da seleção colombiana voltar para casa, Andrés Escobar foi morto. Nas primeiras horas do dia 2 de julho, em frente ao bar que costumava frequentar com amigos, Escobar foi baleado seis vezes.
Ao Observador o autor recorda uma conversa que teve com o defesa pouco tempo após o autogolo. Estava triste. “Estou muito triste e aborrecido com o autogolo. Nunca marquei um autogolo e a primeira vez foi logo num Mundial”, disse.
César foi uma das últimas pessoas a falar com Andrés antes de este perder a vida e foi um dos responsáveis pela coluna que o central do Atlético Nacional escreveu para o jornal “El Tiempo”, e que só foi publicada depois de ter morrido, onde salta a vista a expressão “a vida não acaba aqui”.
O antigo jornalista admitiu ter estado 15 anos afastado dos estádios depois do assassinato do futebolista e seu amigo. “Foi morto porque os apostadores acharam que estava comprado, tinha 27 anos, ia casar daí a dois meses. Era um grande profissional, uma pessoa de valores. Estive 15 anos sem entrar num estádio. Perdi o afeto”, disse, acrescentando: “Voltei a um estádio pela mão do irmão dele Santiago Escobar, mas não recuperei todo o amor e carinho que tinha pelo futebol”.
“O futebol não é uma religião”
“O futebol deve ser uma festa de solidariedade entre as pessoas e os povos. Isto pressupõe, porém, que os jogos de futebol sejam encarados pelo que no fundo são: um jogo e uma ocasião de diálogo, compreensão e enriquecimento humano recíproco”, defende o Papa Francisco numa das conversas expostas nas páginas do livro "Futebol com Alma". César Mauricio Velásquez concorda e sublinha: “o futebol não é uma religião, é um desporto, uma forma de manifestação cultural do ser humano”.
O episódio da morte de Andrés marcou a vida e a visão de César sobre a modalidade, que “o futebol seja uma forma de encontro social”. O jornalista colombiano afirma que o limite da competição deve ser o da “convivência”. “As paixões dos adeptos, jogadores e treinadores têm de ter um ponto”, afirmou perante os jornalistas, sublinhando que é importante “preservar o futebol como um local de encontro sem ideologias”.
Na visão de Velásquez, o estádio é também um local de educação. As pessoas ali, naquelas bancadas, transformam-se, conta. “Os que não gritam em casa, gritam no estádio”, diz entre sorrisos e afirmando que durante os jogos de futebol acabava muitas vezes abraçado a festejar um golo com alguém que nem sequer conhecia. Por isso é necessário, na sua visão, utilizar as idas ao estádio, sobretudo em família, como educação.
“Uma vez fui com o meu pai ao estádio e no momento antes de começar a partida, eu estava sentado e o meu pai levanta-se para ouvir o hino e levanta-me pelo colarinho”, conta entre sorrisos, adiantando que nunca mais voltou a ouvir o hino colombiano sentado.
O futebol como fonte de valores e reflexão é um ideal partilhado pelo sumo pontífice. O Papa descansa quando lê, pensa e fala de coisas do desporto. Tem o bom senso do adepto enérgico, leal, pacífico e reflexivo, capaz de valorizar o alento do rival e incentivar a própria equipa na derrota. É o sócio 88235 do Club Atletico San Lorenzo de Almagro, da Argentina. Durante o Pontificado de Francisco, o San Lorenzo conseguiu dois grandes triunfos seguidos, algo que nunca tinha alcançado em mais de 100 anos de história: ganhar a taça do Torneio Argentino (2013) e a Copa Libertadores de América (2014), triunfos que levantam suspeitas pela “suposta intercessão divina” do Papa
Também fiel seguidor da seleção Argentina, Francisco não viu o jogo da final do Mundial de 2014, entre a seleção argentina e a Alemanha, porque acorda às quatro e meia da manhã, mas pedia que o mantivessem atualizado. No dia seguinte, quando soube que a sua Argentina tinha perdido, disse ao seu secretário “vamos começar o dia com um sorriso, apesar de tudo”.
Conta César Maurício que quando estava a acabar o capítulo do livro sobre o Santo Padre, ele convidou-o para uma missa e ocorreu-lhe pegar numa bola que lhe foi dada pelos diretores do Real Madrid pelo 110º aniversário do clube. “Ele viu a bola na minha mão e pensou que eu lhe a queria oferecer. No entanto, eu disse-lhe: O que eu quero é que você a assine, porque eu quero levá-la para as escolas de futebol nos bairros pobres de Bogotá, onde ela será apreciada por crianças e jovens. Ele ficou muito contente: assinou e benzeu a bola que está em Bogotá numa escola de futebol numa das zonas mais pobres da cidade”.
Noutra ocasião perguntou-lhe: “Santo Padre, você é o Papa mais futebolista da história da igreja?” (risos) “Sim, acho que sim, mas também digo que sou o mais pecador… eu digo os dois: o maior futebolista e o mais pecador…”.
O Papa vê o desporto como uma fonte de valores, que deve ser “orientada para o bem”; e não para dinheiro ou rivalidade. Para o autor de Futebol com Alma, “o Papa, além de ser um líder espiritual de milhões de pessoas, sabe como levar esses valores a uma atividade humana como o futebol. Isso ajuda muito a transmitir valores, procurar pontos de encontro, lutar contra a intolerância e procurar caminhos de comunicação com todas as culturas do mundo encontradas no futebol”.
O lado humano de Cristiano Ronaldo
Tantas vezes apelidado de extraterrestre pelos números extraordinários que resumem a sua carreira, Cristiano Ronaldo é visto por César Velásquez como um homem deste mundo pelo seu caráter humano que se evidencia, a par dos seus valores dentro de campo.
“Cristiano Ronaldo é, para mim, o melhor do mundo. É o número um, tem características profissionais únicas e gestos humanos louváveis, pensa em dar”, afirmou César Velásquez, numa conversa com a comunicação social no Colégio Universitário Montes Claros.
Velásquez, que foi assessor do presidente da Colômbia Álvaro Uribe, lembrou uma conversa que teve com o jogador do Real Madrid, na qual Ronaldo explicou que não tinha tatuagens para poder dar sangue.
“Algumas técnicas de fazer tatuagens impediam as pessoas de darem sangue, ele disse-me que não fez tatuagens por causa disso. É um exemplo de generosidade, e sei que faz muitas coisas que não são públicas. Se cada jogador de futebol fizesse o mesmo seria muito bom “, referiu.
César Mauricio Velásquez defendeu a necessidade de as organizações de cúpula do futebol, os clubes, e os próprios jogadores serem mais solidários.
“As equipas não deveriam contentar-se em ter fundações, deveriam ser mais solidários, apoiando, por exemplo, as comunidades de onde proveem alguns dos seus jogadores”, defendeu, considerando que “também os jogadores devem ser mais solidários”.
O autor do livro Futebol com Alma, publicado em 2016, considerou que a organismos como a FIFA deveriam repensar a atribuição de prémios individuais a jogadores “num desporto coletivo como é o futebol”.
“Ninguém faz um golo sozinho, um golo é um trabalho de equipa. No futebol nada de bom se consegue sem uma equipa. O mundo não avança com individualidades. Oxalá os prémios fossem para as equipas”, disse.
O antigo jornalista, que foi embaixador da Colômbia junto da Santa Sé, lembrou o papel essencial da comunicação social nos fenómenos de violência associados ao futebol.
“A comunicação social deve transmitir alegria e tristeza, mas sem ódio. É preciso separar a pessoa do desempenho, caso contrário geram-se ódios”, concluiu.
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