INTRODUÇÃO
Os homens estão grávidos», «as mulheres têm pénis», «as mulheres trans são mulheres», «todos os brancos são racistas», «todos os negros são vítimas», «se afirmares que não és racista, isso significa que és», «a biologia é virilista», «a matemática é racista», «Churchill é racista», «Schœlcher é esclavagista», etc. Este tipo de proclamações surpreende pela sua faceta absurda. Todavia, são elas que formam os enunciados de base do pensamento woke, aquele pensamento «iluminado» que tende a impor-se em todas as sociedades ocidentais. Assenta em teorias como a «teoria de género», a «teoria crítica da raça» ou a «teoria interseccional», que se tornaram verdades puras nas nossas universidades. Os wokes explicam que o género «se escolhe» e que tudo o que conta é a nossa consciência de sermos homem ou mulher ou qualquer outra coisa que seja. A raça volta a ser um determinante essencial das nossas existências em sociedade: os brancos serão, por definição, racistas, e os «racizados» jamais o poderão ser. Quanto à interseccionalidade, trata-se de uma «ferramenta» para potenciar todas as identidades vitimárias e apelar à luta contra o responsável por estas discriminações. Responsável esse que já está mais do que encontrado: é o homem branco ocidental heterossexual, por definição sexista, racista e colonialista, sendo o «perfeito bode expiatório» (1). Aqueles que não aceitam estas teorias woke são denunciados nas redes sociais e, sempre que tal seja possível, são despedidos do seu emprego, na universidade ou outro qualquer lugar. Os meios de comunicação e um grande número de políticos aderem a estas teorias com entusiasmo, e algo que, não há muito, era apenas uma curiosidade americana tornou-se, com uma velocidade extraordinária, o discurso oficial das nossas elites.
Poderíamos sentir a tentação de nos tranquilizarmos, dizendo que isto afecta apenas as faculdades de Letras e de Ciências Humanas, que já passámos por experiências semelhantes. Contudo, hoje em dia, é nas faculdades de Ciências e de Medicina que se opera a ofensiva woke: as próprias ciências puras e duras são acusadas de ser «racistas» e «virilistas». É igualmente preciso tomar consciência de que esta vaga woke já não fica só dentro das portas das universidades. Através do ensino do género e da teoria crítica da raça, está cada vez mais presente no ensino primário e secundário, tanto nos Estados Unidos como em França. Os activistas woke, transformados em professores, são militantes entusiastas, cujo fito é formar a humanidade nova que é pregada pela religião woke: ensinam às crianças, desde a escola primária e sem o consentimento dos pais, que o género «se escolhe» e que nada tem que ver com o corpo. Ensinam aos alunos brancos que são necessariamente racistas e aos alunos «racizados» que, do mesmo modo, mecanicamente, são vítimas.
Contudo, o wokismo não se restringe ao mundo da educação. Como referiu muito acertadamente o jornalista norte-americano Andrew Sullivan, «agora vivemos todos no campus» (2). As elites ocidentais, que se tornaram militantes durante os seus estudos, difundem agora estas ideias nas redes sociais, nos meios de comunicação, no meio editorial e nas indústrias da cultura. Nas grandes empresas, desenvolve-se um capitalismo woke que aplica políticas de «Diversidade, Equidade, Inclusão», isto é, políticas de discriminação positiva que vão contra todos os princípios meritocráticos (3). As GAFAM, como a Netflix e as redes sociais, fazem uma promoção maciça de um pensamento politicamente correcto. Os wokes estão também cada vez mais presentes no mundo político com, por exemplo, uma Sandrine Rousseau que faz o elogio das bruxas contra os engenheiros: «O mundo está repleto de demasiada racionalidade, de decisões tomadas por engenheiros. Prefiro mulheres que lêem a sorte a homens que constroem reactores nucleares.» (4)
Os que há pouco ainda acreditavam que este entusiasmo se limita- ria aos países anglo-saxónicos estão a perder o seu tempo. Deveriam ter-se lembrado da lei estabelecida por Bruno, em As Partículas Elementares de Michel Houellebecq, a propósito do pai, cirurgião plástico a quem «tinha passado completamente ao lado o mercado dos seios de silicone»: «Para ele, era uma moda passageira que não passaria do mercado americano. Era, evidentemente, um disparate. Não havia um só exemplo de alguma moda nascida nos Estados Unidos que não acabasse por inundar a Europa Ocidental uns anos mais tarde; nem um só.» (5)
Diante desta vaga de irracionalidade que arrasta tudo à sua passagem, ficamos tentados a nos limitarmos a «rir» ou «chorar», mas é conveniente, segundo o imperativo de Espinosa, esforçarmo-nos por «compreender» o que está a acontecer diante dos nossos olhos (6). Isto parece-me tanto mais urgente porque estas teorias estão constantemente a ganhar terreno, ainda que o seu patente carácter absurdo as pudesse ter desqualificado há muito tempo. Já não basta exaltarmo-nos, sendo pelo contrário necessário tentar compreender as razões do seu êxito. O mais espantoso não é, com efeito, o facto de meia dúzia de entusiastas professar teorias extravagantes, é o facto de estas encontrarem um enorme eco e se propagarem a uma velocidade exponencial. Podemos, infelizmente, pressupor que estas ideias não estão destinadas a desaparecer tão cedo.
Loucuras epidémicas?
Dois dos críticos mais incisivos da «cultura» woke deram aos seus livros títulos que a designam como uma espécie de loucura. O ensaísta inglês Douglas Murray acusou-a, com muito sentido de humor, de «loucura das multidões» (7). O seu livro começa com uma observação, que é também um apelo ao sobressalto: «Vivemos numa época de grande despropósito colectivo. Em público e em privado, na internet, na vida em geral, o comportamento das pessoas é cada vez mais irracional, febril, gregário e simplesmente desagradável [...]. Este despropósito, esta loucura colectiva, é um fenómeno que nos submerge e de que devemos tentar extirpar-nos.» (8) De igual modo, Gad Saad, professor na Universidade Concordia, em Montréal, diagnostica que o wokismo é uma espécie de «parasita» que atinge as mentes: «O Ocidente sofre actualmente de uma pandemia terrivelmente devastadora, uma doença colectiva que destrói a capacidade de as pessoas pensarem racionalmente.» (9) Saad atribui aliás um nome humorístico a esta nova doença. A «síndrome parasitária da avestruz» (OPS, ostrich parasitic syndrome) é «uma doença do pensamento desordenado que priva as pessoas da sua capacidade de reconhecer verdades tão evidentes como a existência do Sol» (10). Saad diagnostica, com efeito, uma perda total do sentido de realidade nos wokes, que multiplicam proposições contraintuitivas. Qualificar o wokismo de «loucura» permite caracterizá-lo bastante bem, mas não basta para o explicar. Todas as tentativas efectuadas desde o século XIX para explicar os «contágios» de ideias delirantes, quer sejam qualificadas de «loucuras colectivas» ou de «contágio mental», nunca aliás produziram resultados satisfatórios.
Estas hipóteses não têm em consideração o facto mais espantoso, isto é, que as teorias woke se desenvolveram inicialmente no seio das universidades. Como se explica que professores universitários, teoricamente instruídos e dotados de espírito crítico, sejam os primeiros a entusiasmar-se com a ideia de um género desassociado do corpo ou a reabilitar a odiosa noção de raça? Podemos, evidentemente, recordar a profunda observação de George Orwell: «É preciso ser intelectual para escrever tais coisas: uma pessoa comum não poderia jamais alcançar uma tal palermice.» (11) Existe, por certo, uma verdadeira satisfação em professar ideias que vão contra o senso comum e que dão um ar de profundidade e chique elitista ao discurso de uma pessoa. É muito empolgante proclamarmo-nos detentores de uma verdade totalmente inaudita e, como fez notar, a propósito de outro assunto, o sempre sagaz filósofo inglês John Gray, «as ideias mais loucas são muito frequentemente as mais influentes» (12).
Contudo, a ideologia woke não é apenas um snobismo passageiro e sem consequências. Defrontamo-nos com militantes que se entusiasmam pela sua causa. Não são professores universitários, mas sim combatentes ao serviço de uma ideologia que dá sentido à sua vida. Quem já tenha tido a ocasião de tentar debater com wokes compreende bem que tem pela frente, no mínimo, entusiastas e, em muitos casos, aquilo a que Kant chamava de «visionários». Basta consultar um dos inúmeros vídeos que relatam a tomada de poder dos wokes na Universidade de Evergreen, nos Estados Unidos, para compreender que não é concebível argumentar com estes jovens militantes, bastante comparáveis aos guardas vermelhos chineses durante a Revolução Cultural. Como resume muito brutalmente um dos agressores de Bret Weinstein, o único professor da Universidade de Evergreen, nos Estados Unidos, que teve a coragem de resistir a estes militantes e que tentava chamá-los à razão: «Pára de argumentar, a lógica é racista.» (13) Esta afirmação resume o radicalismo de um movimento inacessível à razão.
Um efeito de bumerangue da French Theory?
Outra hipótese para explicar o advento do pensamento woke consistiria em ver nele o resultado indirecto da importação, nos Estados Unidos, dos autores da French Theory, principalmente Foucault, Derrida e Lyotard. Os pensadores e militantes woke teriam recuperado estas ideias, que, depois de se terem difundido nos campus americanos, estariam agora a regressar, como num efeito de bumerangue. É o ponto de vista de adversários dos wokes, como James Lindsay e Helen Pluckrose, autores de um livro de referência sobre o assunto, que responsabilizam os autores franceses por estas ideias que visam destruir a razão. (14) Pluckrose estima, inclusivamente, que estas ameaçam, não apenas a razão, mas também «a democracia liberal e a própria modernidade». A sua constatação é definitiva: «Os intelectuais franceses arruinaram o Ocidente.» (15) Brice Couturier faz a mesma análise, no seu estudo global da geração woke. A French Theory estaria a agir como um «vírus» que teria sofrido mutações e se teria transformado numa «verdadeira força política que ataca a liberdade de expressão». Este vírus ter-se-ia «disseminado a uma grande velocidade, depois de se ter evadido do mundo, relativamente fechado, das universidades». E, actualmente, a French Theory, «convertida em loucura nos campus norte-americanos, regressa como um bumerangue devastador, sob a forma de estudos “pós-coloniais”, de “interseccionalidade”, de “estudos de género”, de “racialização” e de “indigenismo”» (16). Também do lado dos partidários dos wokes, Rama Yade, que admira o seu «nobre combate, de justiça e reivindicação da igualdade», regozija-se com eles com um surpreendente chauvinismo: «Este movimento, que é denunciado como uma importação americana, vem na verdade de França, da French Theory, que, com efeito, se disseminou nas universidades americanas: de Lacan a Foucault, foram pensadores franceses a inspirar o movimento woke! Como franceses, devemos estar orgulhosos!» (17)
Permita-se que sejamos mais reservados quanto a esta origem francesa. Parece, antes de mais, que evocar uma tal filiação é sobretudo a marca de uma certa húbris dos intelectuais franceses, que gostariam de acreditar que tudo o que existe no mundo intelectual, ainda hoje, é o resultado das «teorias francesas» dos anos 1960. O facto de este pensamento woke ser uma verdadeira catástrofe não é perturbador, é sem dúvida mais uma razão para admirar a força das ideias francesas, capazes de mudar o mundo, mesmo que para pior. Há também, atrás desta genealogia francesa, uma verdadeira nostalgia da época em que o pensamento francês dava cartas. Dito isto, e mesmo se descartarmos, por ora, a questão de saber se os principais pensadores woke leram e citam os autores franceses dos anos 1960, o que não é, de todo, evidente, parece-nos bastante difícil aproximar o wokismo da French Theory (18).
Antes de mais porque os filósofos franceses em questão são teóricos puros, que desenvolvem análises extremamente sofisticadas, mas que não se preocupam nada em agir no mundo e concedem um espaço apenas escasso à acção política. Mantiveram claramente a distância do «comprometimento» de Sartre. Recordemos a metáfora de Foucault da «caixa de ferramentas». Com os meus livros, dizia Foucault, ofereço aos meus leitores, se eles se dispuserem a abri-los, «pequenas caixas de ferramentas» nas quais poderão «servir-se de certa frase, certa ideia, certa análise como usam uma chave de fendas ou um aparafusador para curto-circuitar, desqualificar, quebrar os sistemas de poder» (19). Ou seja, ele não indica o seu modo de utilização e evitará «envolver-se» em acções políticas no sentido tradicional. Neste sentido, como reconhecem Lindsay e Pluckrose, estes autores são mais «descritivos» do que «prescritivos». Este afastamento da política caracteriza a globalidade dos autores franceses dos anos 1960. Estamos por isso longe do pensamento woke, eminentemente político e mesmo militante. Lindsay e Pluckrose têm consciência deste problema e, para tentar manter o elo que estabeleceram entre o wokismo e a French Theory, descrevem, depois de uma era de teoria pura, uma outra época do pensamento woke, nos anos 2000 e 2010, que qualificam de «pós-modernismo aplicado». Esta expressão parece contraditória, o pós-modernismo era, precisamente, em Lyotard e nos outros pós-modernos, uma constatação do fim das grandes narrativas do progresso e da emancipação e, por conseguinte, de uma suspensão da acção política.
Uma outra diferença, ou mais exactamente uma oposição essencial, entre os wokes e autores como Foucault ou Derrida, reside evidentemente na questão da identidade. Os pensadores woke são ultra-identitários que pretendem combater em nome desta ou daquela comunidade oprimida: os negros, os trans, os gays, etc. Para eles, trata-se apenas de reforçar estas identidades vitimárias, ou potencializá-las com recurso a teorias inter-seccionais. A noção de identidade está no centro da sua política e nunca é colocada em causa. Ora, os filósofos da French Theory são, pelo contrário, pensadores que fazem por perturbar, ou mesmo apagar, as noções de identidade e de indivíduo. Foucault não aceitava que lhe fosse colocada a questão da unidade da sua obra: «Não me perguntem quem sou e não me digam para me manter igual: é uma moral de estado civil; é esta que rege os nossos documentos. Que nos conserve a liberdade quando o assunto é a escrita.» (20) Se nos interessarmos pela French Theory, torna-se bastante claro que dela estão ausentes o «subjectivismo» e a «política das identidades». Como observa muito bem Bruno Chaouat, «é aliás a imagem de marca da “French Theory” o facto de ter tentado abolir o indivíduo. Herdeiros de Mallarmé e do seu “desaparecimento elocutório do poeta”, o pensamento francês, de Maurice Blanchot a Jacques Derrida, passando por Foucault, e mesmo o Nouveau Roman, trabalharam no sentido de uma execução do autor [...]. Bem ao contrário do subjectivismo racial que domina hoje em dia a cultura universitária dos dois lados do Atlântico» (21). É, no mínimo, curioso afirmar que um pensamento que recusa a própria noção de identidade está na origem de uma política identitária.
Uma terceira diferença essencial tem que ver com os estilos de pensamento totalmente opostos dos militantes woke e destes intelectuais franceses. O pensamento sempre irónico e interrogativo de uns dá-se mal com a boa consciência satisfeita dos outros. A seriedade e a ausência de questionamento de si mesmos caracterizam o pensamento woke. A falta total de sentido de humor é sem dúvida a característica mais distintiva do pensamento woke, e também a mais enregelante: é aqui que mais bem se percepciona o seu carácter totalitário. Nos autores da French Theory, observa-se, pelo contrário, um constante questionamento de si mesmos e de normas às quais nunca aderem completamente. É este «jogo com as normas» que os caracteriza. Como dizia Foucault, «há sempre em nós alguma coisa que luta contra outra coisa em nós» (22). É absoluta a diferença entre indivíduos que jogam com as normas e militantes fanáticos que aderem a uma norma predeterminada sem jamais a questionar. De um lado, filósofos, curiosos e móveis; do outro, militantes e pregadores.
«Acredito porque é absurdo»
É bastante surpreendente e aflitivo ver certos colegas, amigos de longa data, eruditos e respeitados, a aderir de um dia para o outro às utopias woke e, consequentemente, a banir tudo o que possa fazer lembrar o mundo antigo. Como pode um professor universitário que dedicou a vida aos estudos gregos propor acabar com as Letras Clássicas por serem brancas e virilistas? Como é possível que um matemático decida abolir o ensino da sua disciplina por ser alegadamente discriminatória? Como é possível que um biólogo defenda que a biologia não é uma ciência? Como é possível que estas pessoas inteligentes acreditem em ideias tão absurdas? Como é possível não aceitarem sequer debater e responder a qual- quer crítica mediante a «anulação» dos seus interlocutores?
É o carácter brutal e irracional destas escolhas que permite entrever uma outra explicação. Ocorreu-me subitamente que, se estes professores universitários aderem a tais teorias, não é apesar de serem absurdas, mas precisamente porque são absurdas. A melhor explicação para o seu comportamento parece encontrar-se resumida na célebre fórmula atribuída a Tertuliano, Pai da Igreja do século III: credo quia absurdum, «acredito porque é absurdo». É, na verdade, uma fórmula similar à utilizada por Tertuliano, no seu livro sobre a «Carne de Cristo», De Carne Christi. Ao gnóstico Marcião, que considerava impossível, e mesmo indigno, que Cristo, «o filho de Deus», tivesse realmente podido encarnar, nascer e, sobretudo, morrer, Tertuliano respondia: «O Filho de Deus está morto: é credível porque é absurdo e, depois de enterrado, Ele ressuscitou: é certo porque é impossível.» (23) É muito chocante que Cristo, o filho de Deus, tenha escolhido encarnar, mas, segundo Tertuliano, é precisamente este o enigma e a glória da religião cristã. É preciso, por conseguinte, segundo ele, dar lugar à fé, que é superior à sabedoria dos filósofos. Tertuliano cita neste mesmo livro a famosa passagem da Carta aos Coríntios que opõe a loucura de Deus à sabedoria do mundo: «O que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios.» (24) A razão deve, em dado momento, abrir espaço à fé para compreender as verdades mais profundas. A morte de Cristo é seguramente incompreensível, e, por isso, é necessário ir mais além da razão dos filósofos.
Se os wokes acreditam nas suas doutrinas, é porque são absurdas, porque apontam para verdades mais profundas, muito para lá da razão. É aliás curioso reparar que, tratando-se de wokes, o primeiro milagre que pregam, com a teoria de género, incide também na relação entre o corpo e a consciência. Para eles, o que parece inexplicável não é a encarnação de Cristo, mas sim a integração das nossas consciências em corpos, estes corpos que, como no caso de Cristo, segundo os marcionitas, são consi- derados impuros. Existem apenas consciências, é esta a mensagem da teoria de género, no âmago desta nova religião. E é justamente o seu carácter provocador que lhe confere o poder de sedução. Por este motivo, a teoria de género não é uma categoria do pensamento woke entre outras, mas é o seu âmago, a primeira descoberta, que abre a via a todos os assaltos à ciência, contra a verdade e contra a própria realidade. As outras componentes da ideologia woke, as teorias da raça e da interseccionalidade, com, em França, as suas variantes indigenistas ou decoloniais, são apenas acessórios relativamente à teoria de género, que é o verdadeiro mistério, em sentido religioso, desta nova religião.
Este radicalismo entusiasma professores e estudantes universitários, que têm a sensação de ter descoberto uma verdade superior, inacessível ao homem comum. À atracção por propostas paradoxais acrescenta-se o sentimento de fazer parte de um grupo de «eleitos» chamados a reconstruir o mundo de acordo com a nova doutrina. Com o wokismo, estamos assim realmente diante de uma nova religião. Deste ponto de vista, o nosso espanto faz lembrar a angústia que sentiram os últimos filósofos pagãos diante da ascensão da religião cristã. O melhor exemplo dá-nos Contra os Cristãos, do filósofo Celso, no século II. Ele espantava-se e indignava-se com as teses dos primeiros cristãos: a sua doutrina «não assenta na razão» (25), «a sua cosmogonia é de uma puerilidade que ultrapassa todos os limites» (26). Como é possível o seu Deus ser abandonado e crucificado? «Pertence a um deus deixar-se prender, deixar-se levar como um criminoso? Ainda menos conveniente é o facto de ter sido abandonado, traído pelos seus próximos, que o seguiam como um Messias, Filho e enviado do grande Deus.» (27) Como é aliás possível ter ressuscitado? E porque teria descido à terra? «Terá sido com o objectivo de perceber o que acontece entre os homens. Mas ele não é omnisciente?» (28) Para Celso, tudo isto parecia desprovido de sentido. O abismo que separa o nosso pensamento racional do pensamento woke parece mais ou menos tão radical quanto o que separava o pensamento grego da religião cristã.
Estes pagãos cultos tinham a sensação de que o seu mundo estava prestes a escapar-lhes, e que a sabedoria, que derivavam da filosofia grega, ia sucumbir ao assalto das doutrinas insanas dos cristãos. A situação actual não evoca tanto a ascensão do comunismo, amiúde referido, quanto a emergência do cristianismo, no ocaso do mundo antigo. Os wokes, por seu lado, acham por bem rejeitar a ciência em bloco, recusam a linguagem comum e negam inclusivamente a existência da realidade comum. Estamos diante de uma mudança extremamente radical: não se trata simplesmente de uma nova ideologia, mas de uma nova crença, de uma nova religião. Alguns autores americanos estão convencidos de que estamos perante a «próxima religião americana» que quer «apagar toda a memória histórica da civilização», tal como o cristianismo, tornado religião de Estado, no século IV, quis apagar todo o «mundo greco-romano» (29).
«O fracasso de uma profecia»
O cariz muito intolerante da religião woke e a sua recusa em abordar aqueles que não partilham o seu ponto de vista, a sua ausência de transcendência, fazem que se assemelhe, mais precisamente, para já, a uma seita de dimensão política e social. Não é um panorama muito encoraja- dor, na medida em que é extremamente difícil combater tais movimentos: os argumentos não têm influência nos seus membros, e a própria realidade não basta para invalidar as suas crenças. Uma referência muito esclarecedora para o que se passa neste momento, nas nossas universidades e sociedades, é o célebre livro de Leon Festinger e dois dos seus colegas, When Prophecy Fails (30). Conhecemos aquele estudo notável de psicologia social, levado a cabo em 1954-1955, que visava a análise do percurso de um grupo sectário que anunciava o fim do mundo para uma data precisa. Festinger tinha tomado conhecimento, pela imprensa, de que um grupo de crentes se reunia em torno de uma mulher no núcleo de Chicago, Marian Keech, que anunciava que o fim do mundo ocorreria no dia 21 de Dezembro seguinte, em 1954, na sequência de um dilúvio. Mas Marian Keech dizia aos seus discípulos que poderiam ser salvos e extraídos para outro planeta, num disco voador que os viria buscar na véspera do dilúvio. Festinger decidiu então, com dois dos seus colegas e estudantes, juntar-se ao grupo para observar as reacções dos membros quando chegassem à conclusão de que a sua profecia era desmentida pela realidade. Na verdade, «quando a profecia falhou», segundo o título do livro, os membros da seita viveram seguramente um breve momento de hesitação: sentiram o que Festinger qualificaria de estado de «dissonância cognitiva», um estado no qual coexistem crenças contraditórias num mesmo indivíduo. Contudo, face a esta situação, decidiram reduzir estas tensões, adaptando as suas crenças. Os membros da seita concluíram então que as suas orações não tinham sido inúteis, já que tinham permitido evitar a catástrofe final: «O plenário do pequeno grupo tinha difundido tanta luz na noite, que Deus tinha salvado toda a gente da destruição.» (31) Os discípulos decidiram então retomar a sua pregação numa escala ainda maior. A seita não desapareceu de imediato, levou tempo a desmembrar-se. A realidade, por conseguinte, não conseguiu dissipar as ilusões deste pequeno grupo de crentes. Festinger tirou daqui uma conclusão radical, afirmando que é impossível convencer um membro de um tal grupo sectário: «O homem de fé é inabalável. Se o confrontarmos com a nossa discordância, ele volta-nos as costas. Se lhe mostrarmos factos e números, ele interroga-nos acerca da sua proveniência. Apelamos à lógica, ele não percebe de que modo isso lhe diz respeito.» (32) E Festinger prossegue, envolvendo o leitor no «nós» razoável dos cientistas autores do estudo: «Sabemos todos, por experiência, o pouco que vale tentar mudar uma convicção forte, sobretudo se o partidário tiver dedicado uma parte da sua vida a esta sua experiência. Conhecemos bem as múltiplas e engenhosas defesas a que as pessoas recorrem para proteger as suas convicções, e sabemos como se organizam para as manter intactas, através dos ataques mais devastadores.» (33)
Podemos temer que o mesmo aconteça com os wokes mais exaltados. É, no entanto, preciso recordar que este estudo de Festinger inspirou a romancista Alison Lurie a escrever um livro simultaneamente cheio de humor e profundo, Imaginary Friends (34). Trata-se de uma recuperação romanesca que propõe uma continuação do estudo de Festinger. Lurie imagina que o investigador principal, o robusto professor McMann, de nome muito viril, acaba por considerar que é ele próprio o enviado dos extraterrestres. Afirma ter entrado em contacto com o espírito de «Ro» do planeta «Varna» e propõe-se a assumir a orientação da seita. Depois de tentar manipular os membros, é tomado pelos seus delírios e acaba encerrado num hospital psiquiátrico. O jovem e ingénuo investigador que trabalhava com ele vai então visitá-lo, mas nunca chega a saber se McMann é realmente louco ou se está simplesmente a fingir a loucura. É, de certa forma, o que corre o risco de acontecer com a seita woke.
Notas de rodapé
(1) Cf. P. Bruckner, Un coupable presque parfait. La construction du bouc émissaire blanc, Paris, Grasset, 2020. Pascal Bruckner já tinha pressentido esta evolução no visionário Le sanglot de l ’homme blanc. Tiers‐Monde, culpabilité, haine de soi, Paris, Le Seuil, 1983. (Livro intitulado em português O Remorso do Homem Branco; N. da T.)
(2) A. Sullivan, «We All Live on Campus Now», New York Intelligencer, 9 de Fevereiro de 2018.
(3) Para os Estados Unidos, ver V. Ramaswamy, Woke, Inc.: Inside Corporate America’s Social Justice Scam, Nova Iorque, Center Street, 2021. Para a França, ver A. de Guigné, Le capitalisme woke. Quand l ’entreprise dit le bien et le mal, Paris, Presses de la Cité, 2022.
(4) L. Daussy, «Sandrine Rousseau et le “féminisme inclusif ”», Charlie Hebdo, 25 de Agosto de 2021.
(5) M. Houellebecq, Les particules élémentaires, Paris, Flammarion, 1998, p. 93.
(6) Cf. Espinosa, Tratado Político (I, § 4): «Empenhei-me a fundo para não ridiculizar as acções dos homens, para não chorar por sua causa, para não as detestar, mas, pelo contrário, para adquirir um verdadeiro conhecimento sobre elas.» (Traité politique, Œuvres, t. IV, Paris, Garnier- -Flammarion, p. 12).
(7) D. Murray, La grande déraison. Race, genre, identité, Paris, Éditions du Toucan/L’Artilleur, 2020. Da nossa parte, tínhamos igualmente formulado esta hipótese em La philosophie devenue folle. Le genre, l ’animal, la mort, Paris, Grasset, 2018.
(8) D. Murray, La grande déraison, op. cit., p. 13.
(9) G. Saad, The Parasitic Mind. How Infectious Ideas Are Killing Common Sense, Washington, Regnery Publishing, 2020, prefácio, p. XI.
(10) Ibid., p. XII.
(11) G. Orwell, «Notas sobre o nacionalismo», in G. Orwell, Essais, articles, lettres, vol. III (1943- -1945), Paris, Ivrea-Encyclopédie des nuisances, 1998, p. 476.
(12) J. Gray, Seven Types of Atheism, Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux, 2018, p. 51.
(13) Deve consultar-se o vídeo francês que mostra como estudantes woke assumem o controlo da Faculdade de Evergreen, em 2017, sem nenhuma resistência dos docentes, que aceitam as humilhações que lhes são infligidas. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=u54cA-vqLRpA. Para mais informações sobre este assunto, cf. O. Moos, «The Great Awokening. Réveil militant, justice sociale et religion», Études et Analyses, n.o 43, Dezembro de 2020.
(14) H. Pluckrose, J. Lindsay, Le triomphe des impostures intellectuelles. Comment les théories sur l ’identité, le genre, la race gangrènent l ’université et nuisent à la société, Béziers, H&O, 2021.
(15) H. Pluckrose, «How French “Intellectuals” Ruined the West: Postmodernism and Its Impact, Explained», Areo, 27 de Março de 2017.
(16) B. Couturier, OK Millenials! Puritanisme, victimisation, identitarisme, censure... L’enquête d’un baby‐boomer sur les mythes de la génération «woke», Paris, Éditions de l’Observatoire, 2021, pp. 162-163.
(17) Entrevista com R. Yade, «Passer à Paris devant la statue de Colbert est une micro-agression», L’Express, 18 de Novembro de 2021.
(18) A única que realmente citou os autores da French Theory é Judith Butler, mas cita-os no meio de inúmeras referências, a granel, de Descartes a Habermas, passando por Hegel, Nietzsche, Freud, Saussure, Austin, Sartre, Beauvoir, Gayle Rubin, Monique Wittig e muitos outros.
(19) M. Foucault, «Des supplices aux cellules», in Dits et écrits, t. II, Paris, Gallimard, 1994, p. 720. O único combate que viria a travar incidiu na questão das prisões, com o movimento Groupe d’information sur les prisons.
(20) M. Foucault, L’archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 28.
(21) B. Chaouat, «Bataille des idées à l’université», Le Point, 30 de Dezembro de 2020.
(22) M. Foucault, «Le jeu de Michel Foucault», in Dits et écrits, t. III, Paris, Gallimard, 1994, p. 311. introdução 21
(23) «Mortuus est Dei f ilius: prorsus credibile est, quia ineptum est; et sepultus resurrexit; certum est, quia impossibile» (Tertuliano, De Carne Christi 5,4). Foi sem dúvida este «credibile est quia ineptum est», «é certo porque é impossível» que foi deformado em «credo quia absurdum».
(24) I Carta aos Coríntios, 1:27.
(25) Celso, Discours vrai contre les chrétiens, Paris, Jean-Jacques Pauvert, 1965, p. 39.
(26) Ibid., p. 41.
(27) Ibid., pp. 51-52.
(28) Ibid., p. 76.
(29) M. Vlahos, «Church of Woke: The Next American Religion», Humanitas, vol. XXXIV, n.o 1-2, 2021, p. 120.
(30) Título original da obra. Versão usada pelo autor: L. Festinger, H. W. Riecken, S. Schachter, L’échec d’une prophétie. Psychologie sociale d’un groupe de fidèles qui prédisaient la fin du monde, Paris, PUF, 1993.
(31) Ibid., p. 165.
(32) Ibid., p. 1.
(33) Ibid.
(34) Título original da obra. Versão usada pelo autor: A. Lurie, Des amis imaginaires, Paris, Rivages, 1991.
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