Poucas horas depois do anúncio do Nobel a José Saramago, na vila de Mafra ia uma grande comoção. Os socialistas do concelho do distrito de Lisboa apressaram-se a marcar “de emergência” uma conferência de imprensa.

Não perto, mas com vista panorâmica para o palácio que deu mote àquela que é uma das maiores obras de Saramago (e da literatura), ‘Memorial do Convento’, ia uma grande festa. E abria-se a porta a uma esperança.

Ainda antes da atribuição do prémio Nobel a José Saramago, Ana Gonçalves, que fazia parte do conselho diretivo da então Escola Secundária de Mafra, notava a importância da ligação entre a obra do homem e o concelho. Com a projeção trazida pelo 'Memorial do Convento', o marido, Ismael, professor de português na mesma escola e deputado municipal pela CDU, propôs em assembleia municipal a atribuição de uma medalha de mérito ao escritor ribatejano. Estávamos em abril de 1993.

A assembleia rejeitou a proposta — com os votos contra do PSD.

Três anos depois, em abril de 1996, nova recomendação. Esta, porém, aprovada. O líder do executivo, o histórico social-democrata José Maria Ministro dos Santos, contudo, só viria a entregar a medalha ao escritor mais de uma década depois, em 2007, após uma homenagem do palácio, a propósito dos 25 anos do ‘Memorial do Convento’.

“Catorze anos de calúnias, insultos e mentiras limpam-se com uma medalha de mérito?”, perguntava na altura José Saramago, citado pelo ‘Diário de Notícias'.

“Que méritos tenho hoje que me faltassem ontem? O meu primeiro e natural impulso foi rejeitar, mas depois pensei na fidelidade, na constância com que durante aquele tempo os meus leitores de Mafra sofreram comigo a repugnante injustiça. Será pois por gratidão a eles, e só por gratidão a eles, que aceitarei o distintivo.”, acrescentava o escritor ao jornal.

Eram estes os episódios que o PS de Mafra queria relembrar na conferência de emergência. Os socialistas recordavam a recusa da autarquia, por alegados "motivos políticos", de dar a Saramago a medalha de honra do concelho e de atribuir também o nome do escritor à escola secundária local.

Em declarações à agência Lusa, a 8 de outubro de 1998, o coordenador da Juventude Socialista de Mafra, Pedro Tomás, dizia que elementos dos orgãos autárquicos proferiram "afirmações graves, que evidenciam um sinal claro de perseguição política" ao autor de ‘Memorial do Convento’.

Já sobre a recusa de dar o nome de Saramago à escola secundária de Mafra, um dos elementos da maioria autárquica terá então dito, segundo Pedro Tomás, que o ‘Memorial do Convento’, "não dignifica Mafra, antes pelo contrário, apenas a amesquinha, da mesma forma que amesquinha a história da Pátria".

Declarações que os socialistas classificavam de "preconceitos ideológicos”.

O chumbo do PSD, todavia, não travou a ideia, que “foi amadurecendo na direção [da escola]. Uma vez que o 'Memorial do Convento' estava a projetar Mafra pelo mundo, pensámos na possibilidade de atribuir o nome de José Saramago à secundária de Mafra", conta hoje Ana Gonçalves ao SAPO24.

"Fomos ver a legislação, o que era preciso e começámos o processo", algures no início do ano letivo 1997/98, um ano antes da atribuição do prémio ao escritor.

Na altura, em entrevista à agência Lusa, a então presidente do conselho executivo da Escola Secundária de Mafra dizia esperar que o pedido feito ao Ministério da Educação para ter o nome de José Saramago fosse despachado rapidamente. “Foi óptimo e justo, parabéns ao José Saramago", dizia Ana Gonçalves no dia 8 de outubro de 1998.

A professora explicava que tinha sido o anterior conselho diretivo quem teve a iniciativa de propor o nome de José Saramago para patrono da escola.

Teve, no entanto, pela frente a Câmara Municipal, cuja consulta é obrigatória por lei, que recebeu o pedido, o reteve durante bastante tempo e, depois de insistências, acabou por dar um parecer negativo.

"A pretensão da escola acabou por seguir em maio ou junho para o Ministério da Educação com o parecer negativo da Câmara e agora só esperamos que a resposta seja rápida", dizia Ana Gonçalves.

Hoje, os pormenores vão difusos. Ana ainda está à espera de reaver a documentação acerca do processo, que foi entregue ao atual presidente da câmara, Hélder Sousa Silva, na altura em que o social-democrata tomou posse, sucedendo a Ministro dos Santos, em 2013.

Uma escola dividida e uma ideia na gaveta

"Na escola, as opiniões estavam divididas. Não havia claramente um sim ou um não”, recorda. "Depois de recolhermos a opinião da escola, da associação de estudantes — que era um bocadinho instrumentalizada pelo PSD, o executivo camarário —, a associação de estudantes disse não; os professores estavam divididos”, conta.

Recolhidas as opiniões internas, avançaram para conseguir um parecer da autarquia. "Os pareceres não eram vinculativos, mas convinha tê-los", explica Ana Gonçalves.

A resposta da câmara de Ministro dos Santos foi perentória: não.

Ainda assim, o material foi enviado em maio de 1998 para o ministério da Educação, à altura liderado pelo socialista Eduardo Marçal Grilo. "As coisas ficaram em banho-maria, enfiadas na gaveta, até ao momento em que foi atribuído o Nobel a José Saramago".

"Imediatamente o ministério da Educação foi buscar o nosso processo e no final de outubro despachou a atribuição do nome de Saramago para a nossa escola", resume Ana Gonçalves.

A renitência na atribuição do nome do escritor à única escola secundária pública do concelho devia-se a "questões obviamente políticas", considera taxativa Ana Gonçalves. "Sabemos a cor política do Saramago, sabemos o quão polémico ele era. A questão era somente política. As opiniões contrárias eram por questões políticas."

"O Saramago, independentemente da cor política dele, de estarmos de acordo ou não, é o único prémio Nobel da literatura da língua portuguesa; é traduzido em não sei quantas línguas; o 'Memorial do Convento' deu imensa projeção a Mafra, tanto assim que, quando há quatro anos o retiraram das obras obrigatórias do programa de português, o pessoal de Mafra aí já não estava de acordo, os comerciantes, sobretudo. Porque há imensa gente que vem a Mafra atraída pelo convento e pela leitura da obra".

Ganharam os cafés e restaurantes do terreiro D. João V, mas ganhou também a escola. Na altura a precisar de obras, a escola, cujos edifícios estão construídos nos terrenos dos marqueses de Ponte de Lima, viu uma verba ser desbloqueada pela tutela, quase ao mesmo tempo que, em Estocolmo, o escritor recebia a medalha. "Foi a parte mais imediata e material", explica Ana Gonçalves.

"É uma honra termos uma escola com o nome de uma pessoa como o Saramago, estejamos ou não de acordo... Não é a cor política que conta, é o valor dele como escritor", diz a antiga presidente do conselho executivo da agora Escola Secundária José Saramago.

Mas o impacto da obra vai além da honra, descreve o escritor Miguel Real. “[Saramago] vai mostrar que aquele convento ao fim ao cabo foi feito pela população. Era uma teoria de Brecht: quando disserem quem fez este palácio, dizem que foi o rei tal. Eu digo que foi o povo daquela zona”, explica ao SAPO24.

"Oliveira Martins tinha criticado, Alexandre Herculano criticou o convento, Antero de Quental criticou o convento — era uma mole enorme ali no meio de um descampado, Mafra era ainda um descampado no século XVIII — era uma mole imensa, olha-se para ali, estão lá a viver uns frades que não fazem nada, uma tapada gigante para o rei chegar lá e caçar um dia de seis em seis meses. Uma torre de um lado, uma torre do outro, para o rei e para a rainha, que estão desabitados a maior parte das vezes. Havia uma crítica”, conta.

“O Saramago, criticando a feitura do convento, acaba por reabilitá-lo em termos de caráter estético e hoje são milhares as pessoas que vão a Mafra ver o convento por causa do 'Memorial do Convento’”. “Saramago vai transformar aquela mole imensa num conjunto arquitetónico com características estéticas”.

Apesar de já não estar na liderança da escola, Ana Gonçalves pensa que, se fosse hoje, o processo seria talvez mais simples. "Esse aspeto talvez esteja um bocadinho mais esbatido... Também vejo neste presidente um bocadinho mais de abertura; apesar de serem da mesma cor [PSD], as pessoas são diferentes. Não é que tenha grandes contactos com ele", adverte. "Ele também foi meu aluno e acho que é uma pessoa um bocadinho mais arejada nesse aspeto".

Só em abril de 1999 Saramago conseguiu um furo para ir visitar a escola com o seu nome. Fez apenas um pedido: que o autarca Ministro dos Santos não estivesse presente. À parte isso, autografou livros dia fora na biblioteca da secundária.

A Escola Secundária de Mafra tinha na altura cerca de 1.700 alunos, 300 dos quais iam às aulas no turno da noite. Hoje, está diferente — tal como Mafra. A 5 de Outubro de 2010 foram inauguradas as novas instalações com pompa pelo ministro da Justiça de José Sócrates, numa iniciativa que inaugurou cem novas escolas nos cem anos da República.

Depois dessa última remodelação, num de quatro painéis que se impõem num átrio da escola, diante de um grande mural do convento, Saramago surge pintado, de rosto feroz, ao lado de um Almada Negreiros imponente, simplesmente a dizer: Lê.

Hoje, já não é obrigatório ler-se o ‘Memorial’ nos pavilhões azuis da única escola secundária do concelho; tal como não o há de ser nos bosques do Parque Desportivo Engenheiro Ministro dos Santos, que lhe é anexo — nos terrenos que pertenciam aos Marqueses de Ponte de Lima, também eles figuras do livro que parece ter dado Mafra ao mundo e o mundo a Mafra.


Veja aqui o trabalho especial que o SAPO24 preparou para assinalar os 20 anos do Nobel