A situação não é fácil de explicar, mas pense nesta analogia: a vacina contra a covid-19 é como uma capa da chuva, protege-o de uma "molha", mas não o livra de uns tornozelos "encharcados".
É verdade que a grande maioria das pessoas que são vacinadas vão estar protegidas contra a covid-19, a doença causada pelo vírus SARS-CoV-2. No entanto, não se exclui a possibilidade de infeção e de os vacinados poderem transmitir o vírus a outros, mesmo que não apresentem sintomas. Então de que me vale a vacina? Em primeiro lugar, vai evitar que fique gravemente doente, em segundo há estudos que indicam que pode reduzir a capacidade de transmissão do vírus e, a médio prazo, vai-nos permitir atingir a imunidade de grupo.
O Expresso noticiou, esta sexta-feira, que têm vindo a ser reportados casos de pessoas infetadas após levar não só a primeira, como também a segunda dose da vacina contra a covid-19.
O primeiro alerta foi dado por José Júlio Nóbrega, diretor clínico do Hospital do Funchal, na Madeira, depois de terem sido identificados nesta instituição 156 infetados com a primeira dose tomada e 17 com a segunda, das vacinas da Pfizer e da AstraZeneca.
As causas para estas infeções podem ter várias explicações. Uma delas, diz José Júlio Nóbrega, pode passar mesmo por uma questão de tempo. “Como a doença é sobretudo assintomática, as pessoas podiam estar infetadas antes da primeira dose [da vacina] ou não ter decorrido tempo suficiente para a [adquirir] imunidade, incluindo após a segunda inoculação”, afirmou.
João Paulo Gomes, responsável pelo Núcleo de Bioinformática do Departamento de Doenças Infecciosas do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), corrobora esta tese com base nas amostras já avaliadas. “Só podemos dizer que houve falha vacinal quando a infeção ocorre pelo menos 14 dias após a primeira ou a segunda toma, e a esmagadora maioria dos casos que já investigámos não cumpre este critério”, disse ao semanário. Ainda assim, houve exemplos de infeção após o suposto período de segurança após a toma da segunda dose, estando esses casos “em investigação”.
Posto isto, tudo se resume a uma questão central: serão as vacinas apenas capazes de prevenir casos mais graves de doença ou serão também efetivas na prevenção da infeção e transmissão?
Ao SAPO24, Luís Graça, médico, investigador do Instituto de Medicina Molecular (iMM) e membro da Comissão Técnica de Vacinação, explicou que, para já, “não há dados suficientes” para poder afirmar que após a vacinação há uma diminuição da carga viral aquando da transmissão. “É provável, mas não está provado".
"Em relação à transmissão, há uma forma mais fácil de perceber o dilema que é: as vacinas não são 100% eficazes e há infeções assintomáticas. Por essa razão, vai haver seguramente pessoas vacinadas que vão ficar infetadas e muitas delas assintomáticas. Logo, é necessário assumir que algumas das pessoas vacinadas vão potencialmente transmitir a infeção”, explicou o imunologista.
Se um vacinado pode infetar outra pessoa, mesmo que se sinta bem, isso significa que as pessoas vacinadas têm de usar máscaras e manter a distância social, mesmo que o seu risco individual de contrair doença grave seja muito menor. Henrique Veiga-Fernandes, imunologista e Investigador Principal do Centro Champalimaud, reforça “a máscara e a higienização das mãos são as medidas mais eficazes para parar a transmissão [do vírus]”.
“A primeira é a proteção do indivíduo, ou seja, a pessoa que está vacinada está protegida da doença. Isto quer dizer que eu não desenvolvo doença de todo ou se desenvolver a doença com sintomas, estes serão infinitamente mais ligeiros do que em pessoas não vacinadas”, explica, acrescentando que a vacina têm diferentes graus de eficácia.
Assim, quando a vacina “desenvolve uma resposta imunitária muito eficaz” e “a resposta celular é também elevada” os anticorpos que o indivíduo desenvolve ligam-se praticamente de imediato ao vírus, neutralizam-no e bloqueiam-no. Neste casos, “o vírus não é capaz de infetar as células e a pessoa, à partida, apesar de ter sido infetada, não desenvolve de todo doença”.Ou seja, em caso de infeção por covid-19, poderemos considerar vários cenários que vão desde uma infeção assintomática à morte. Depois de receber a vacina, o ideal é não ficar infetado de todo, mas, realisticamente, o principal objetivo da vacinação é evitar os casos mais graves de doença, que impliquem hospitalização ou morte.
Mas existe ainda uma segunda função da vacina, de que muito se ouviu falar no último ano: a imunidade de grupo.
“Quando multiplicamos a vacinação por uma grande parte da população atingimos aquilo que é chamado a imunidade de grupo – o que acontece quando cerca de 60%, eventualmente 70%, da população tenha imunidade. Nestes casos, mesmo que o indivíduo seja infetado, quando vai transmitir o vírus a um terceiro este não vai encontrar terreno fértil para se propagar. Como tal, o famoso RT, fator de replicação, cai. Quando esse fator começa a cair, quer dizer que não é capaz de se transmitir a outras pessoas. Obviamente, a tendência é que o ritmo da infeção diminua de forma muito manifesta”, explica Henrique Veiga-Fernandes.
Contudo, pelo menos para já, estamos longe da imunidade de grupo. Em Portugal, foram administradas mais de 1 milhão e 505 mil vacinas, das quais apenas 465.367 correspondem a pessoas que receberam as duas doses da vacina, ou seja, estão imunizadas. Assim, por cá,“é importante continuarmos a manter as regras que evitam a transmissão da infeção, mesmo estando vacinados, porque as pessoas com quem vamos contactar, na sua maioria, são pessoas que não estão vacinadas”, diz o imunologista Luís Graça.
Henrique Veiga-Fernandes concorda que “[as medidas de prevenção não farmacológicas] são extraordinariamente importantes”, até porque “estamos muito longe dos 60 ou 70%“. E “mesmo com essa quantidade de pessoas [vacinadas], se elas contribuírem para uma potencial transmissão de doença, ainda que em pequena quantidade, isso cria um problema”.
"Se de repente tivermos 10, 15, 20 mil casos por dia, vamos assistir ao colapso do sistema de saúde”. Com números desta grandeza,“é óbvio que teríamos todos os dias dezenas de pessoas a precisarem de cuidados intensivos e como os[doentes covid-19] têm uma média de ocupação de camas muito longa, rapidamente atingimos as centenas ou os milhares de pessoas internadas”, conclui.
Desta forma, devemos pensar no uso da máscara e no distanciamento social como uma estratégia de mitigação de riscos.
Todavia, as recomendações variam um pouco por todo o mundo, numa altura em que todos ainda estamos a aprender a lidar com os novos desafios trazidos pelo novo coronavírus.
Luís Graça dá o exemplo de uma recomendação adotada pelo Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos, sugere que num ambiente em que as pessoas estejam todas totalmente vacinadas é possível estar sem máscaras e conviver (sendo que as pessoas são consideradas “totalmente vacinadas” duas semanas após terem recebido a sua última vacina).
A ideia patente a esta recomendação é a de uma “mini imunidade de grupo”: “mesmo que alguém vacinado esteja a transmitir [o vírus], as outras pessoas [que também foram vacinadas] estão protegidas e têm uma probabilidade muito reduzida de serem infetadas. Há um género de imunidade de grupo dentro desse ambiente”, clarifica.
A longo prazo, a expectativa é que à medida que mais pessoas forem vacinadas, menos serão aquelas que desenvolvem casos graves de covid-19. Assim, a pressão sobre o sistema de saúde diminui.
De olhos postos no Reino Unido e em Israel, onde a vacinação está mais avançada, viu-se “uma queda a pique dos internamentos por doença grave”, nota Henrique Veiga-Fernandes. “A população ainda não está toda vacinada, mas já foram vacinados os grupos de risco, que são aqueles que acabam, com mais frequência, a precisar de cuidados médicos e de camas nos cuidados intensivos”, acrescenta.
A título de exemplo, no dia 19 de janeiro, o Reino Unido registou o pico diário de mortes desde o início da pandemia: 1,820 pessoas. Apenas dois meses depois, a média dos últimos sete dias é de 74 mortes em 24 horas. Contas feitas o Reino Unido apresenta uma tendência decrescente, e a variação média de mortes da semana passada apresenta uma quebra de -31,6% e de 2% no número de pessoas com um resultado de teste positivo confirmado em relação aos sete dias anteriores.
A direção geral de Saúde de Inglaterra (Public Health England) estimou na quinta-feira que graças à vacina se pouparam 6.100 vidas em pessoas com 70 anos ou mais até o final de fevereiro.
"Esses resultados dão-nos esperança e lembram-nos da importância de receber a vacina assim que formos elegíveis", afirmou o ministro da Saúde, Matt Hancock.
Não há como prever ao certo.
Como vimos, existem ainda várias incógnitas, pelo que o uso da máscara e o distanciamento social vão continuar a ser cruciais por algum tempo. Luís Graça, membro da Comissão Técnica de Vacinação, diz que o alívio deste tipo de exigências terá de “ser avaliado por estudos epidemiológicos e tendo em conta a progressão da epidemia”.
“À medida que as pessoas vão sendo protegidas começamos a aproximar-nos do momento em que estas estratégias não farmacológicas deixam de ser importantes”.
Henrique Veiga-Fernandes explica que “a partir do momento em que atingirmos a imunidade de grupo e que os grupos de risco estiverem vacinados não é expectável doença grave. Como tal, a doença deixará de ser um problema de saúde pública, no sentido do peso sobre os Sistemas de Saúde. Mas, como sabemos, quando os números aumentam muito há pessoas com um perfil que à partida não seria de risco, 50/60 anos, que podem acabar em camas hospitalares. Daí a importância de mantermos todas estas medidas de proteção, pelo menos, até termos uma imunidade de grupo”.
E quanto tempo dura essa imunidade? Completado um ano de pandemia é algo que também ainda continua em análise.
“A resposta rápida é que não sabemos”, diz Luís Graça, mas “podemos ter uma ideia”. “Nós sabemos que a vacinação conduz à produção de significativamente mais anticorpos do que aqueles que são produzidos numa infeção natural [seja ela assintomática ou com doença]. E, nós sabemos que, a infeção natural confere uma proteção muito, muito significativa e há estudos que mostram que essa proteção vai até aos oito meses, nove meses”.
“Como a produção de anticorpos com as vacinas é maior do que nas infeções naturais, podemos assumir como provável que a duração da proteção com as vacinas vá ser superior”, continua. Assim, estamos a falar de uma imunidade “provavelmente superior a um ano”. Apesar de as infeções serem uma possibilidade, já que “as vacinas não são 100% eficazes”, estas “são muito pouco frequentes”.
Henrique Veiga-Fernandes explica que “ao longo do tempo os anticorpos podem decair”. Desta forma, refere, “podemos ter situações em que a pessoa que está vacinada ou que foi infetada por via natural se encontra numa fase em que os níveis de anticorpos já não são muito altos, mas, apesar de tudo, ainda tem outro tipo de imunidade. Daí pode resultar uma infeção que até pode causar uma doença, mas será uma doença muito ligeira, com sintomas extraordinariamente ligeiros e que não passa daí. Ou seja, não há um desenvolvimento de doença grave”.
No imediato é urgente travar a pandemia, mas há já quem esteja a olhar para um horizonte mais lato e estime que entre cinco ou dez anos o vírus se torne endémico.
“A tendência para este vírus é ele tornar-se endémico. Ou seja, continuar a circular”, diz Henrique Veiga-Fernandes. E “a circulação do vírus não é necessariamente negativa, pois ao circular acaba por, de tempos a tempos, reforçar a imunidade de cada um de nós. É isto que acontece com os outros coronavírus”.
A título de exemplo, explica: “Frequentemente temos constipações: uma vez por ano, de dois em dois anos, sempre doença ligeiríssimas – normalmente, nem febre temos, é umas dores de cabeça, o nariz entupido, mas nada de especial. Esse tipo de doença tem um aspecto extraordinário que é o de reforçar a imunidade que nós já tínhamos anteriormente. Ou seja, vem relembrar o sistema imunitário da importância de estar alerta para aquele tipo de infeção. Ora, o agente infeccioso pandémico, é um agente que é de tal forma transmissível que consegue circular na população e consegue um equilíbrio: não é extinto, não vai ser erradicado, continua a circular, mas também não causa doença severa a ninguém. Ninguém morre de constipação hoje, apesar de já terem morrido no passado”.
Assim, o vírus “deixará de ser um problema de saúde pública, mas dificilmente iremos conseguir erradicá-lo. Até porque há uma gigantesca assimetria no acesso às vacina, com países do hemisfério Norte a açambarcar vacinas. Portanto, continuaremos com variantes a circular por aí. Eu vejo este vírus a ficar endémico mais entre os cinco e os dez anos”, estima.
De um modo geral, os investigadores concordam as vacinas são essenciais para acabar com a pandemia, embora demorem a atenuar a propagação da covid-19 e, até lá, é necessário manter o uso de máscaras e o distanciamento social. Nesta situação de emergência que vivemos, o principal objetivo é parar a doença, mais precisamente os casos graves, e, de acordo com os resultados, as vacinas disponíveis cumprem este efeito de forma eficaz, pelo que não precisam, necessariamente, de nos proporcionar uma proteção total para ajudar a combater a pandemia.
[Notícia atualizada às 14:47]
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