As quintas eleições gerais do país decorreram com “serenidade”, este terá sido o termo mais utilizado durante todo o escrutínio, pelo menos, até ao começo da contagem dos votos. Isto porque, historicamente, “o processo eleitoral é tranquilo até começar a publicação dos números”, começa por dizer, Gilson Lázaro, professor associado da Universidade Agostinho Neto, em entrevista ao SAPO24.
“Regra geral, a votação, em Angola, decorre na maior da tranquilidade. O drama são os resultados, a partir daí é que começa a dar confusão”. Isto “deve-se à Comissão Nacional Eleitoral (CNE) de Angola”, que tem demonstrado “pouca transparência nos processos eleitorais anteriores”, diz o investigador.
De acordo com o docente, há um histórico de desconfianças e suspeições que resvala para o órgão gestor do processo, que é a CNE. “Há uma grande polémica, já do passado, de se saber quem é o responsável, e quem não é, de conduzir a fase preparatória do processo (qual a instituição responsável de preparar as eleições)". A dúvida está entre o MAT (ministério de Administração do Território), uma estrutura governamental, e o CNE. “Isto já vem desde que Angola retomou o processo eleitoral em 2008, repetiu-se em 2012 e 2017. Ora, o ano de 2022 não trouxe novidade nesse aspeto”, afirma.
E isso traz à tona um conjunto de situações, a começar na aprovação do pacote legislativo.
Segundo Lázaro, “a lei anterior consagrava que o modelo de apuramento dos resultados era ao nível dos municípios. As assembleias, após encerramento, faziam a contagem dos votos, transferiam os dados para o município e era ao nível do centro de escrutínio dos municípios que se fazia o primeiro apuramento. Depois havia o provincial e, por último, o central [nacional]”. Mas a lei atual alterou tudo isso, este ano, "meses antes das eleições", as actas são enviadas diretamente para o centro de escrutínio de Luanda.“A lei atual traduziu aquilo que acontecia na prática. Os juristas chamam-lhe a lei material (a prática material traduziu-se na lei). Isto foi um processo tenso, que levantou muita discussão", lembra o docente e investigador no Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola.
Depois, voltou-se para o registo dos eleitores, que, de acordo com o investigador, deu “grande polémica”. Seria um registo oficial ou uma atualização geral? O MAT veio dizer, “não vamos ter um registo oficioso, exceto, apenas para atualização de aqueles que perderam os cartões de identificação ou mudaram de residência e para aqueles que votariam pela primeira vez. Os que não tinham qualquer um desses cenários não teriam que se preocupar, isto é um ponto".
O outro ponto que levantou muita polémica, fazendo inclusive com que a UNITA efetuasse uma queixa, refere-se a nomes de pessoas falecidas que ainda figuravam nos cadernos eleitorais. "Os partidos de oposição e várias associações cívicas chamaram a atenção para a necessidade da CNE, antes de receber o ficheiro de cidadãos maiores, ter de o auditar. Ou pedia ao MAT que o fizesse, ou ao ministério da Justiça. São os únicos órgãos que têm mecanismos para fazer essa “expurgação”, é a eles que compete a atualização”, frisa.
Facto que não terá acontecido, “60 dias antes, o MAT entrega esses ficheiros ao CNE, sem se saber se estavam ou não auditados. Ou seja, logo do início o processo sai ensombrado. No decorrer na campanha, surgem as irregularidades. Como a polémica dos falecidos. Segundo sei, os ficheiros não são atualizados desde 1992”, afirma o investigador. "A CNE volta a contratar uma empresa com reputação duvidosa" [a espanhola Indra, que trata da logística eleitoral]. Tudo conjugado, faz com que o processo incline”, lamenta. É assim que surgem os movimentos, como o exemplo do “Votou, sentou”.
“As pessoas não acreditam na CNE. Estamos a colher os resultados daquilo que foi ignorado, mal preparado e até premeditado ou propositadamente mal preparado”.
A questão do “receio de conflitos”, muitas vezes referido durante as eleições, “é uma construção que faz parte da narrativa política do MPLA”, declara o investigador. Antes do dia da votação, foi ficando adjacente o desencadeamento de incidentes, sobretudo depois do acto. A polícia chegou mesmo a emitir comunicados para que os eleitores regressassem a casa depois de exercerem o seu direito de voto. “Esta narrativa tem a mesma idade da República. É uma narrativa muito útil para a manutenção da estrutura de poder. Em certo sentido, é uma narrativa cujo seu equivalente - como o próprio MPLA critica – é a narrativa da fraude associada à UNITA. O reverso desta última é a narrativa da guerra, do medo da instabilidade ou da ausência de paz. O MPLA joga eficazmente com isso em momentos de tensão política, não apenas em situação eleitoral. É claro que, em época eleitoral, essa narrativa é usada ao máximo que se consegue com apoio ostensivo da imprensa pública”. Foi a “estratégia do medo” que segurou José Eduardo dos Santos ("Zedu") no poder por mais de 35 anos, descreve o investigador.
João Lourenço é de "muitas promessas para pouco cumprimento"
A chegada de João Lourenço em 2017, foi vista com muita esperança para a mudança do futuro democrático angolano. "JLo" (como é conhecido) deu a entender que com ele haveria total combate à corrupção, maior abertura para a comunicação social e maior tolerância face ao ativismo e as organizações da sociedade civil. Mas toda essa energia foi desaparecendo no decorrer do mandato. “Eu penso que João Lourenço acabou sendo absorvido pelo sistema de que ele já fazia parte antes de chegar à Presidência da República", afirma Lázaro.
Desafiado a fazer uma comparação entre "JLo" e "Zedu", Lázaro foi perentório, “objetivamente não visualizo diferenças. Penso que houve uma certa reconfiguração da mesma estrutura de poder do anterior presidente. Talvez a forma como se posiciona o atual presidente em face da crítica e das vozes da sociedade civil e da oposição seja muito contundente. Às vezes mesmo de uma certa dureza na adjetivação dos seus adversários sejam eles os críticos da sociedade civil, seja a oposição. Num certo sentido, pode dizer-se que a diferença mais notável é de caráter e na forma de atuar nas coisas da República e na relação com a diferença de opinião e de opção política".
Em jeito de balanço do último mandato de João Lourenço, Gilson Lázaro aponta três promessas não cumpridas. “O balanço que faço é deveras pouco positivo. Muitas promessas para pouco cumprimento”, atira.
“Houve inclusive o fracasso de pelo menos três das principais promessas eleitorais de 2017: 1. Fracasso do combate à corrupção, em termos de resultados. Não são visíveis para os angolanos. 2. Não implementação das eleições autárquicas, apesar de estar em falta aprovação de apenas uma das leis do pacote legislativo autárquico. 3. Fechamento da comunicação social a vozes independentes da sociedade civil e à própria oposição política", descreve.
Por isso, diz, “o balanço não é nada positivo, embora tenha havido algumas coisas positivas no decorrer do seu mandato. A montanha pariu um ratinho. O Presidente João Lourenço perdeu uma soberana oportunidade para colocar Angola no trilho dos Estados Democráticos".
“A luta desencadeada por ele para a ocupação da presidência do MPLA, ao mesmo tempo que ocupava a da República, só reforçou ainda mais o poder. Ou melhor, a acumulação de poder. Eu diria que houve uma metamorfose de João Lourenço tão logo se sentou naquela cadeira. Eu não teria ilusões a seu respeito para este mandato”, conclui Gilson Lázaro.
(Artigo atualizado às 22h20)
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