Augusta Conchiglia entrou clandestina em Angola, em abril de 1968, para reportar a luta do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Juntamente com o realizador italiano Stefano de Stefani, seu companheiro na altura, foi guiada pelos guerrilheiros durante meses e ao longo de centenas de quilómetros, nas zonas libertadas de Moxico e Cuando-Cubango.
Dos milhares de fotografias tiradas, uma pequena parte foi publicada em “Guerra di Popolo in Angola / Guerre du Peuple en Angola” (1969), álbum de pequeno formato com edição italiana e suíço-francesa.
Uma outra amostra de imagens está agora exposta no Museu do Aljube, em Lisboa, onde a fotógrafa, que vive em Paris, realizou uma visita guiada nesta terça-feira.
Augusta Conchiglia tinha 20 anos quando chegou a Angola, para “a primeira grande reportagem” e a estreia em África. “Foi uma aprendizagem de toda a espécie”, resumiu, em entrevista à Lusa, depois de ter visto pela primeira vez a exposição, com curadoria de Maria do Carmo Piçarra e José da Costa Ramos.
Desde então, 53 anos volvidos, a fotógrafa italiana continuou “a frequentar Angola”, como ela diz, em bom português.
Angola vive com a “consciência dos enormes erros” cometidos no passado e “uma vontade de os corrigir”, acredita.
“Sentíamos que havia qualquer coisa, mas não estávamos a par a este ponto”, reflete, referindo-se à corrupção e ao esvaziamento dos cofres do Estado angolano, que mais nenhum país africano enfrentou “nesta dimensão”.
Na opinião de Augusta, é a postura do atual Governo que distingue Angola de outros países africanos, como Nigéria e Moçambique. “A posição atual é reconfortante, na medida em que há uma reação forte por parte do Governo”, saúda.
Apesar dos “dez, quinze anos um pouco obscuros”, Angola pode servir de exemplo, “mais uma vez”, o que “não quer dizer que não haja problemas e dificuldades económicas”, que são “partilhados com a maioria dos países africanos”. Mas “a questão da corrupção, que paralisou o país durante um certo número de anos, é enfrentada com uma certa coragem”, destaca.
A fotógrafa não esconde o empenho político, embora não lhe chame “militância”. O destino inicial naquele ano de 1968 era o Vietname do Norte, mas a atualidade desviou-a para Angola, alimentada pela “simpatia casual” que resultou de um encontro com o então líder do MPLA, aquando de uma passagem deste por Roma. O ano era 1967, e Agostinho Neto avisou-os de que teriam de aceitar “as condições” do terreno e de que “seria cansativo, difícil, perigoso”.
Integrada no movimento progressista de esquerda, italiano, “muito mobilizado contra a guerra no Vietname e o fascismo em Espanha e Portugal”, Augusta não hesitou em avançar e explica que o que pode ser hoje visto como “militância”, na altura, era uma realidade que devia ser denunciada.
“Devíamos fazer conhecer, pelo menos. Era esse o espírito”, recorda, reconhecendo que essa denúncia acaba por se tornar, “efetivamente, numa forma de apoio” à causa da libertação anticolonial, porque mobilizava a opinião internacional.
Angola — vinca a fotógrafa — “chegou à independência em condições incríveis”, sob “hostilidade” e “pressão internacional permanente, nomeadamente por parte dos Estados Unidos”.
Da capital italiana, Augusta e Stefano seguiram então para Egito e Zâmbia, antes de chegarem à Tanzânia, onde estava parte da direção do MPLA, da qual receberam o enquadramento da situação e as indicações para acompanharem o movimento de guerrilha.
Foi de Lusaka, na Zâmbia, que partiram para a fronteira angolana, numa carrinha. Entraram “a pé, naturalmente”.
Mais de meio século depois, as memórias daquele ano de 1968 continuam “bastante vivas”, apesar de Augusta ter mantido muitas das fotografias “na gaveta, durante muitos anos”. Por isso, não escondeu “a surpresa” com “algumas” escolhas dos curadores.
A jovem fotógrafa da altura memorizou, daqueles “meses no mato”, as “condições físicas duríssimas”, a falta de comida (“só havia mandioca, de vez em quando chegava feijão”) e os quilómetros a pé. Mas também a riqueza “em termos humanos” e a abertura e o apoio do MPLA.
Maria do Carmo Piçarra destaca exatamente essa “dimensão humanista” do movimento de guerrilha, que procurou destacar do arquivo “extraordinário” de Augusta Conchiglia, ao qual teve acesso.
“São imagens cheias de humanismo, muito complementares, que mostram não apenas as imagens dos guerrilheiros, a formação política e a formação militar, mas todas as dimensões da vida nas zonas libertadas, a alfabetização, o trabalho duro no campo”, descreve.
Por isso, os curadores escolheram fotos de “mulheres, crianças e velhos”, algumas inéditas.
“A guerra não se fazia só do ponto de vista militar”, também se estendia, por exemplo, à alimentação, assinala Maria do Carmo Piçarra, que quis também “restituir a autoria” das imagens, recorrentemente utilizadas ao longo dos anos, sem identificarem a sua autora: Augusta Conchiglia.
Na visita guiada que realizou à exposição no Museu do Aljube, Augusta foi acompanhada por duas dezenas de pessoas, muitas angolanas, entre as quais Maria Eugénia Neto, viúva de Agostinho Neto, e o ex-guerrilheiro Júlio de Almeida (conhecido como comandante Juju), acompanhado pelo filho, o escritor Ondjaki.
Augusta continua a fotografar, mas “pouco” — está agora mais dedicada à escrita. África continua a ser o foco.
“Sou jornalista, tento contar o que se passa com a maior objetividade possível, mas o empenho político mantém-se. Não sei se isto se chama militância…”, diz.
A exposição “Augusta Conchiglia nos trilhos da Frente Leste, imagens (e sons) da Luta de Libertação em Angola” estará patente, no Museu do Aljube, até 31 de dezembro.
As fotografias são acompanhadas por sons (que podem ser ouvidos com recurso a ‘qr code’) registados pelos repórteres em fita magnética e editados, posteriormente, no LP “Angola Chiama”, com uma imagem da autoria de Augusta Conchiglia.
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