O diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) chama-se António Filipe Pimentel e foi nomeado em 2010 pela então ministra da Cultura Gabriela Canavilhas. É professor de História da Arte, tem carreira na área da gestão museológica e é reconhecido por uma postura empreendedora. Nos oito anos que passou à frente do MNAA, aumentou o número de visitantes, fez exposições antológicas e comprou obras de arte que estavam em perigo de sair do país sem gastar um centavo do erário público. Não será exagero dizer que há um MNAA antes de Pimentel e um MNAA depois de Pimentel. A campanha “"Vamos pôr o Sequeira no Lugar Certo"” e o mote lançado - “compre um píxel da Adoração dos Magos” - conseguiu que milhares de pessoas metessem a mão no bolso para o museu adquirir uma peça importante da pintura portuguesa. Teve tanto sucesso que sobrou dinheiro, usado para comprar mais dois quadros. Uma ação que não só não custou um cêntimo ao Estado, como aumentou o interesse do público pelo museu.
Em Portugal não é habitual este tipo de iniciativas partir de um museu, mas são comuns e fazem parte da agenda anual noutros países em que instituições semelhantes ao MNAA procuram em efemérides ou em propostas de abordagem à arte motivos, que também se traduzam em boas oportunidades promocionais, e que fazem parte da gestão dos espaços. Em Portugal, os museus não têm independência funcional, administrativa ou financeira. Nem sequer têm identidade fiscal. O Ministério da Cultura, que é a tutela, diretamente ou através dos seus vários departamentos, toma as decisões e arrecada as receitas. E estas duas visões distintas sobre a gestão dos espaços de cultura colidiram na gestão do MNAA e o desenlace acabou por ser a decisão de António Filipe Pimentel de não se manter à frente do museu. Nas suas próprias palavras, no centro da questão está uma "palavra maldita que ninguém se atreveu a pronunciar durante muitos anos": autonomia. Não poupa críticas aos dois últimos ministros da Cultura, Castro Mendes e Graça Fonseca, por oposição a João Soares, com quem afirma o "diálogo com a tutela atingiu o clímax".
Seis meses antes da saída anunciada, conversámos com o diretor do MNAA sobre estes e outros temas.
Foi um pouco surpreendente saber que tinha pedido a demissão. Alguns jornais referiram que tem a ver com a autonomia dos museus, mas também li que está na calha um novo decreto-lei com um estatuto que lhe daria mais autonomia. Demitiu-se porque não concorda com esse novo estatuto?
Não é assim tão simples. Por um lado, existe a minha discordância objetiva, que foi comunicada num extenso documento ao ministro Castro Mendes [anterior ministro da Cultura] e cujas objeções não foram objetadas. A formulação final do documento que me foi enviada pelo ministro Castro Mendes em setembro e a cronologia dos factos é conhecida, porque num texto no “Público” eu refiro-a e em si mesmo é eloquente. Estamos a falar de uma questão que envolve uma palavra maldita que ninguém se atreveu a pronunciar durante muitos anos, que é a palavra “autonomia”. Finalmente, quando se pretendia falar de autonomia, mantêm-se os museus completamente afastados da informação. Além disso, tendo em conta que este museu é dirigido por um subdiretor geral, isso significa que a informação foi sonegada no seio da própria Direção Geral do Património Cultural. Portanto, há uma reserva total de informação até ao momento em que somos confrontados todos, também de acordo com aquela cronologia, – às 19:47 do dia 23 de Julho – para conhecimento com carácter de urgência de um documento que nem sequer já estava à discussão e toda a gente dizia, e penso com fortes razões, que se destinava a ser aprovado no dia 27, cinco dias depois, na última reunião do Conselho de Ministros antes do verão. Menos de 24 horas depois, às três da tarde, enviei ao senhor ministro um documento de 17 páginas com as reservas do museu, que têm a ver com o modus operandi desde logo, mas também com a substância do dito documento e com aquilo a que se chamou o regime jurídico e autonomia – palavras que evidentemente questionei na sua essência, porque não há nem novo regime jurídico, visto que as estruturas continuam todas integradas na Direção Geral do Património Cultural –, nem existe autonomia fiscal (o tal número de contribuinte). Existe uma mera delegação de competências, que continuam a residir na entidade que as detém. Eu, portanto, posso ver removidas as minhas competências delegadas de direcção deste museu porque elas pertencem ao diretor-geral. Por conseguinte, não existe nenhum novo quadro jurídico e a autonomia obviamente que é puramente ficcional porque, mantendo-se a estrutura centralizada, administrativa e fiscal, continua a dependência das estruturas.
A manutenção do MNAA como Primeiro Museu desaparece, o que fere a honra do compromisso que eu recebi quando aqui entrei. Significa que eu deixaria uma instituição menor do que a que tinha recebido, o que não estava nos meus propósitos.
Portanto não é verdade que com este novo regime há mais autonomia?
Pode haver mais autonomia na medida em que não havia autonomia nenhuma. A partir daí tudo são ganhos. O mérito estrutural deste documento é que existe finalmente uma questão que se tornou política, que é a da autonomia dos museus, o que quer que isso seja. Isso existe e não existia. Agora, outra questão é que essa autonomia seja com A grande e não carregada de aspas. A minha discordância e a minha disponibilidade para continuar não têm que ver apenas com a discordância em relação ao teor desse documento, que tem outras matérias graves implícitas, como a perda do estatuto de Primeiro Museu que sempre foi consignada jurídica e legalmente em todos os documentos oficiais – o último dos quais a portaria que organiza o Instituto dos Museus e da Conservação e aquela que cria a minha própria função de sub-diretor geral e ainda, muito recentemente, quando se regularizou enfim a situação do diretor adjunto do museu. A manutenção do MNAA como Primeiro Museu desaparece, o que fere a honra do compromisso que eu recebi quando aqui entrei. Significa que eu deixaria uma instituição menor do que a que tinha recebido, o que não estava nos meus propósitos.
E são esses os fundamentos do seu pedido de demissão?
Com o nome regime torna-se impraticável vir eu a suceder a mim próprio. Ora, o programa que eu defini para este museu, logo após a entrevista do Público, a que me referi (fim de abril de 2010) onde estão traçadas as linhas todas, desde a questão da autonomia, do regime jurídico e até a ampliação (das instalações), tudo está aí definido, a minha visão para o museu como centro de investigação, etc.. Quando aceitei a nomeação, foi uma espécie de risco calculado a partir do património que eu sabia que a casa tinha – e refiro-me às coleções e ao saber do corpo de conservadores e técnicos. Ora acontece que, nove anos volvidos, o património das coleções foi substancialmente aumentado e o património humano foi substancialmente reduzido – e não me refiro à questão dos vigilantes, como toda a gente fala, porque a questão dos vigilantes é a mais fácil de resolver, com outsourcing . O que não se resolve é a transmissão do conhecimento. Como disse à senhora ministra [Graça Fonseca], não posso ir à bolsa de emprego público à procura de um especialista em artes ornamentais. Torna-se tecnicamente impossível que eu me comprometa a um programa de cinco anos quando pretendo que o meu mandato termine com dignidade – levar o museu até junho sem que ele colapse pelo meio.
Mas, para o público, dava a sensação que durante o seu mandato tinha imensa autonomia. Porque tomou uma série de iniciativas inéditas em Portugal e nos museus portugueses que dava a sensação que o senhor estava à vontade para fazer o que queria.
Uma coisa é a autonomia doutrinária, outra é a autonomia operativa. Este museu de facto conseguiu construir autonomia doutrinária e autonomia fática, que eram duas coisas que não tinha. Não falo evidentemente da terceira que é a autonomia administrativa. A autonomia doutrinária tem a ver com o museu programar o que entende, sem intervenção política externa e isso tem que ver com a quota de respeito que o museu criou.
Mas também tinha uma autonomia orçamental. Por exemplo, quando fez aquela campanha dos píxeis ("Vamos pôr o Sequeira no Lugar Certo") esse dinheiro veio para o museu e pode dispor dele como quis.
Não. De todo. Como não temos número de contribuinte, tivemos de usar o do Grupo dos Amigos do MNAA - uma espécie de ponte, digamos assim, entre autonomia doutrinária e o pensamento, que tem a ver com o respeito que a casa vai ganhando a partir do trabalho que desenvolve. Esse respeito gerou uma aproximação ao Grupo dos Amigos que existia antes e fez com que a tutela, por uma espécie de contradição de velocidades, não nos pudesse acompanhar. O museu foi ganhando velocidade cada vez maior e a tutela não podia funcionar com esse ritmo. Isso ficou explícito quando foi a exposição da Cidade Global, que abriu um mês e tal mais tarde exatamente por esses problemas. Até que a tutela, finalmente baixou a guarda e aceitou a colaboração do Grupo dos Amigos na produção das nossas exposições.
Quer dizer, o Grupo dos Amigos era uma maneira de contornar as limitações de não ter identidade fiscal, logo, jurídica.
Com certeza. Todos os mecenas, todos os apoios do museu, apoiam o Grupo dos Amigos para que o Grupo dos Amigos apoie o museu. Os portugueses que subscreveram os tais píxeis da “Adoração dos Magos” compraram o quadro entre si para o Grupo dos Amigos e o Grupo pediu licença à tutela para poder oferecer a pintura ao museu.
E, com o dinheiro que sobrou, comprou as outras duas obras.
Exatamente.
A única forma de dar agilidade operativa ao museu, a todos os níveis, desde as lâmpadas à dignidade, tudo, tudo o que o museu faz é intermediado pelo Grupo dos Amigos
Tudo isso fazia parecer que havia uma autonomia financeira.
Parecia, apenas. Até porque em Administração Pública não é possível consignar uma receita a uma despesa. Se o meu amigo quiser apoiar uma exposição, isso não pode ser feito assim. Apoia a Direção Geral do Património Cultural, que por seu turno apoiará, se o entender, a exposição. O que normalmente aconteceria é que a exposição a ser apoiada viria a sê-lo nove meses depois da data em que devia ter terminado. A única forma de dar agilidade operativa ao museu, a todos os níveis, desde as lâmpadas à dignidade, tudo, tudo o que o museu faz é intermediado pelo Grupo dos Amigos. Ultimamente criou-se, e é justo dizê-lo, uma consciência da tutela que tem de colaborar na programação e vai fazendo-o, mas sempre de uma forma extremamente penosa. A única garantia de segurança que nós temos é o nosso Grupo de Amigos.
Mas porque é que a tutela, vendo como funcionou bem esse sistema, não só o apoiou, como não o estendeu a outros museus? Parecia ser uma boa solução.
Nunca é solução, porque a solução tem de ser estrutural. O Grupo dos Amigos não tem capacidade económica para sustentar uma instituição como esta. Portanto ele vai permitindo, graças a uma relação de extrema fluidez, de confiança e de respeito mútuo que existe entre a direção e o Grupo – passa pelo relacionamento que o diretor num dado momento, é capaz de ter. E depois tem outro problema essencial, que é o dos recursos humanos. O museu está verdadeiramente a partir e a colapsar nesse plano. Basta ver o seguinte: temos neste momento 67 funcionários no total. É menos de metade do que tínhamos em 1987. Imagine a diferença entre a pressão que existe no museu hoje e a que existia em 1987. Graças ao reforço da marca, à visibilidade das coleções, ao poder da investigação científica desenvolvida, e ao prestígio que alcançou e reforçou internacionalmente, a pressão é cada vez maior. No ano passado foram 600 obras que transitaram do museu para fora e para dentro. 150 das nossas obras estiveram presentes em exposições em todo o mundo e 450 vieram para cá. Cada uma dessas obras implica num processo administrativo complexo, obriga à viagem dum courrier, de um acompanhamento. Como é possível fazer isso com este grupo de pessoas?
Imagino eu a euforia que existirá em Nova Iorque quando abrir o concurso do Museu das Terras de Miranda, mas isso é outra história.
O museu não pode contratar pessoas? Tem de ser através do processo usado na função pública, com concurso?
Exatamente. Aliás, um dos vícios deste absurdo decreto de lei, ao ser feito com a esperteza saloia – que é o termo – de quem pensa que tudo sabe e que terá eventualmente outros projectos que não sejam o serviço estrito dos museus, leva a que não tenham sido consignados os tais aspetos positivos que evidentemente tem. Um aspeto positivo é a possibilidade do recrutamento dos diretores dos museus em concursos externos à função pública, nacionais e internacionais. Imagino eu a euforia que existirá em Nova Iorque quando abrir o concurso do Museu das Terras de Miranda, mas isso é outra história. O que importa é que o princípio está consignado, o que é fundamental para renovar o saber. Mas isso passa-se apenas com os diretores; e porque não os conservadores? Este museu é o único (nacional) que tem verdadeiros conservadores de gestão das coleções. A ninguém ocorreu que, mais importante ainda do que a abertura externa para os diretores, é a dos conservadores. Do mesmo modo que, extraordinariamente, ficou fora do Projeto-Lei o Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo, que está a morrer.
Será que é uma filosofia nacional, a questão de não dar autonomia às instituições? Porque esse problema existe também com as universidades.
O problema que existe com as universidades é muito grave, mas não é comparável. As universidades têm número de contribuinte. São estruturas autónomas sobre as quais se exerce o controle administrativo do Estado, do Tribunal de Contas. O mesmo acontece com a Cinemateca, os teatros, a Companhia Nacional de Bailado, a Torre do Tombo, a Biblioteca Nacional – com todos. Este museu e os museus públicos em geral são a única exceção.
Os grandes museus não me parece que tenham problemas financeiros. Tenho conhecimento de algumas iniciativas que tomam, que provavelmente não seriam possíveis no contexto português...
Este museu chegou ao ponto de, recolhendo o repto que a tutela lançou em 2014, na própria Direção Geral do Património Cultural, três diretores gerais atrás, quando era dirigido pela Dra. Isabel Cordeiro, que era uma senhora que tinha experiência e sabia quais os problemas, porque era da área dos museus – chegou ao ponto de fazer uma reunião com os diretores todos, no Museu Nacional de Etnologia, para propormos alternativas para o modelo de gestão atual, que é efetivamente ineficaz. De todos os museus, o único que pegou no repto foi este. Fez os estudos MNAA 2020 com uma equipa de luxo, desde logo o atual Presidente da República, e todo o Conselho de Curadores. Uma coisa que teria custado uma fortuna se fosse paga pelo Estado, foi tudo gratuitamente feito, por devoção a esta casa, e foi o mais complexo, sério e rigoroso estudo que foi feito alguma vez sobre a cultura em Portugal. Foi entregue em setembro de 2015. O método foi de rigor absoluto; cada vez que se chegava a uma premissa, para passar para a premissa seguinte cortava-se 50% do resultado, em vez da hipertrofia habitual. Ficaram absolutamente demonstradas as potencialidades do museu. Além disso, trabalhámos com a Câmara [de Lisboa] para fazer o estudo da ampliação do museu. Fizemos o master plan meticuloso das áreas de que precisamos para tudo, até as áreas técnicas, oficinas de restauro, tudo, tudo. E fizemos ainda um debate público sobre a gestão do museu com colegas de instituições internacionais de referência, com tudo dimensionado à nossa escala. Não nos interessava nada trazer o Museu do Louvre, ou o que fosse. Existe ali um case study cujas actas foram apresentadas agora em novembro – o debate foi em outubro de 2017. A imprensa não esteve, infelizmente, e perdeu declarações de fundo. Lá estão, exatamente, todos os modelos propostos – o modelo do Luxemburgo é absolutamente excecional, chama-se “de gestão separada” e mantém no público tudo aquilo que tem de ser público – inclusive os recursos humanos, as coleções, naturalmente, o controle das grandes empreitadas, mas libertando tudo o que pode ser liberto, para o museu. Não só a dotação como as receitas próprias de mecenato, sponsoring, etc. Se pensar que se trata do museu equivalente ao nosso, no Grão-Ducado do Luxemburgo, sendo um museu muito mais pequeno, tem 108 funcionários e sete milhões de orçamento consignado, fora todas as receitas que gere, mecenato, loja, patrocínios e etc. Tem-se mostrado tão eficiente que o modelo que foi criado para três ou quatro estruturas já está a ser aplicado nas instituições de ensino e até nas embaixadas. O Estado mantém o controlo total, financeiro, das instituições, libertando-se de encargos – porque tudo o que implica controlo administrativo exige uma máquina administrativa. Como é que se pode, aliás, por o ónus da pseudo-autonomia administrativa em casas que não têm estrutura administrativa? A estrutura administrativa desta casa está a morrer, vai morrer pelo meio do ano. Vão ficar duas pessoas. Todos os outros, entre reforma, aposentação e quadros de doença, já não voltam. Isto passa-se nesta casa que conseguiu esta força. Agora imagine-se como é que no Museu Grão Vasco, no Museu Soares dos Reis, nos outros museus, que não têm ninguém na secretaria, não têm nenhum quadro administrativo - como é que fazem relatórios, contas, avaliações, contratos?
Quando todos pararam, nós arrancámos. Porquê? Porque não estávamos dependentes do Estado
Esta situação de apatia, quase diria de antipatia, entre o Estado a estas instituições não me parece exclusiva deste governo. A cultura passa sucessivamente de Ministério a Secretaria de Estado, ou então funde-se com a Educação, com a Ciência...
Mas a cultura é uma coisa e este museu é outra. É preciso pensar na viagem que o museu fez desde que iniciámos o nosso mandato, em março de 2010. Para trás havia um quadro de rotina e de rotura. Ora essa viagem começa exatamente no momento em que o país começa a mergulhar na vertigem da troika. Criámos a capacidade, com o saber já instalado e uma visão estratégica, de entrar em contra-ciclo. Quando todos pararam, nós arrancámos. Porquê? Porque não estávamos dependentes do Estado. Por termos desenvolvido essa parceria estreita com o Grupo dos Amigos, que permitiu dar visibilidade e força à instituição. Também é preciso pensar que essa viagem foi feita num período extremamente duro, com limitações orçamentais e restrições de todo o tipo. A verdade é que o museu foi ganhando um respeito e um acatamento tais que, quando finalmente chegamos a 2016, temos um novo Governo, temos a campanha do Sequeira a chegar ao fim, temos as declarações que o senhor Primeiro-Ministro faz neste museu a 18 de Maio de 2018 – a 5 de Maio tinha terminado a campanha do Sequeira - e entretanto tínhamos tido uma relação extraordinária com o ministro João Soares. Tudo isso fez com que o senhor Primeiro-Ministro declarasse neste museu, historicamente, para o novo ministro que acabava de chegar, Castro Mendes, que este museu tinha um extrato do que havia a mostrar e precisava obviamente da autonomia do novo modelo jurídico e da ampliação das instalações. Ou seja, tínhamos feito um caminho de pedras, no período em que o país esteve mal, e portanto podíamos andar para a frente.
Existe de facto uma relação de antipatia do Governo atual – personificada nos sucessivos ministros, e a atual ministra, Graça Fonseca, não a inverteu, pelo contrário
E porque é que acha que isso não aconteceu?
O museu, toda a vida tinha tido uma relação estreita de colaboração e diálogo com a tutela – que com o Dr. João Soares atingiu o clímax. Eu não o conhecia e ele, três dias depois de tomar posse, ligou-me diretamente, sem ser através do chefe de gabinete, veio ao museu e passámos a ter uma relação de trabalho gratificante. Mas ele demitiu-se logo a seguir, como se sabe, e com o ministro Castro Mendes aconteceu exatamente o contrário. Foi cortada a relação com o Ministério e nós ficámos em suspenso. Existe de facto uma relação de antipatia do Governo atual – personificada nos sucessivos ministros, e a atual ministra, Graça Fonseca, não a inverteu, pelo contrário. Disse-lhe, quando estive com ela a primeira vez, que foi na posse da secretária de Estado, que precisávamos muito de falar e por conseguinte, quando pudesse vir ao museu ver com os seus olhos e estudar uma série de coisas seria muito gratificante. Não deu qualquer sinal, esteve na inauguração da exposição do Sorolla (7 de dezembro de 2018) e não disse quando viria. Falhou a inauguração da nova ala de acesso à Capela das Albertas e do Presépio do Marquês de Belas, que é uma obra estrutural do museu. Eu tinha preparado um discurso para ela ouvir – e aí falando já coisas sérias – e depois mandei-lho, mas não obtive qualquer resposta. Houve então uma reunião de conjunto com todos – portanto manifestamente dando o sinal de que o MNAA não teria um tratamento especial, estava diluído no meio dos 30 equipamentos e das direções regionais de Cultura. Isto fez-me antever que a próxima ocasião em que voltaria a estar com a senhora ministra seria na próxima inauguração, a 6 de junho de 2019 – no caso dela vir. Esse corte da ligação com o museu põe em causa a minha relação funcional, porque eu durante estes anos defendi o museu como me competia, com toda a minha energia, na presunção de estar a servi-lo. Se, pelo contrário, sou inconveniente, deixo de servir a instituição e, portanto, é melhor que eu me retire e que venha outro.
E já decidiu o que vai fazer?
Não, eu nessas coisas penso sempre ao contrário, só sei para onde não vou. É exatamente como quando uma pessoa se divorcia; só sabe que não quer continuar casado com aquela pessoa. Preciso de fazer um reset. Em junho já será outra coisa; neste momento... estava muito preocupado com esta questão, porque era uma decisão que já estava quase tomada e colocada internamente, primeiro na sede restrita do Conselho de Curadores e depois com a própria equipa, com toda a lealdade, mas que estava naturalmente sempre suspensa, dependendo de uma hipotética reversão. Nós estamos ainda em estado agónico mas suscetíveis de uma injeção de adrenalina, de qualquer coisa que pudesse ressuscitar; agora, com uma aspirina, é evidente que um doente terminal já não ressuscita.
Como é que um país como Portugal se dá ao luxo de desperdiçar e deitar fora uma instituição desta natureza, que fez um exercício absurdo em termos de administração pública, exigindo que se autojustifique. Mas a que propósito é que precisamos de autojustificar-nos?
Dá que pensar porque sou um homem muito racional, mas consigo pressentir na cara das pessoas e nas reações... Como é que um país como Portugal se dá ao luxo de desperdiçar e deitar fora uma instituição desta natureza, que fez um exercício absurdo em termos de administração pública, exigindo que se auto-justifique. Mas a que propósito é que precisamos de auto-justificar-nos? O Estado é que tem de saber se precisa ou não de uma instituição como esta. O Estado é que a criou e a tutela; ora, se entende que a instituição deve ser outra coisa do que aquilo que a equipa tem feito...
O que parece é que o Estado tem outra ideia sobre o que quer para a instituição.
O Estado tem uma ideia, e uma ideia claríssima, porque tem sido implementada nos últimos dois anos de forma sistemática, asfixiando a instituição, e só não a asfixia mais porque a instituição ganhou uma tal força pública... O grande problema é que nós conseguimos fazer uma operação que não estava prevista no cardápio, que foi quebrar o pacto de silêncio. Porque a situação dos museus portugueses só existe pelo pacto de silêncio que está estabelecido, pois se todas as pessoas que dirigem as instituições, desde o corpo técnico aos seus diretores, que são funcionários não só das casas, mas também da própria Direção Geral do Património Cultural, antigo IMC, quebrassem essa conivência...
Com o Pedro Lapa (diretor do Museu Nacional de Arte Contemporânea, vulgo “do Chiado”) também houve um problema que me parece semelhante, embora não tenha vindo a público.
Pois, o Pedro Lapa já não está no MNAC e não parece que a saída dele tenha resultado num brilho para a instituição... Agora estamos numa nova fase, mas, durante anos, ele e a Helena Barranha foram as últimas luminárias daquele museu.
Os museus beneficiaram muito com o aumento do turismo...
Não, os museus não beneficiaram com o aumento do turismo. Os visitantes do museu não provêm do turismo organizado, esses são os visitantes dos monumentos, que é exatamente uma das pequenas nuances que a senhora ministra tem dificuldade em entender.
Os visitantes pagam o funcionamento dos museus, ou não?
Claro que não. Não pagam aqui nem pagam em nenhum lado. Tal como os utentes dum hospital não pagam o hospital e os alunos não pagam o sistema de ensino.
Há museus no estrangeiro que cobram bastante caro aos visitantes e presumo que é exatamente para financiar o museu.
Repare numa coisa: porque é que os museus têm dotação do Estado? Os museus nunca se destinam a ter lucros que sejam distribuídos pelos sócios.
Mas pensava que as dotações do Estado eram para compra de peças, despesas pontuais, e não despesas de funcionamento.
Pois, essa é outra das coisas ofensivas em relação a este museu. Em outubro, o grupo total, isto é os técnicos, curadores, administrativos e colaboradores, assinaram um texto no “Público” que uma das coisas que dizia é que de facto é extraordinário como é que o mesmo Estado dava a Serralves o dobro do que dá a este museu, atendendo à sua importância...
Este museu custa ao Estado – que é uma vergonha, nem se pode dizer lá fora – dois milhões de euros
Mas Serralves não é um museu público.
Pois não. Mas é uma instituição privada que tem um subsídio do Estado, que é de quatro milhões e seiscentos mil euros, dos quais um milhão e seiscentos mil euros para aquisição de obras de arte. Este museu custa ao Estado – que é uma vergonha, nem se pode dizer lá fora – dois milhões de euros. Tal como este museu tem um fundo de maneio, ou seja, dinheiro de giro para as coisas essenciais, que é uma “mesada” de 600 euros. São os números da casa. As estruturas da educação, cultura, saúde e justiça são áreas que fazem parte da estrutura dum país civilizado. Aliás o património tem uma capacidade de reprodução financeira extraordinária. Vale a pena ver o estudo do MNAA 20/20 que tem os cálculos feitos por economistas de prestígio, sobre a capacidade de transformação financeira do museu uma vez ampliado. A atual não está medida, mas não deve ser menos de metade. Mas, uma vez ampliado, com a nova frente na Avenida 24 de Julho, o museu estaria em condições de render 70 milhões de euros para a economia nacional. Se vir os textos que eu escrevi no Facebook sobre o Museu das Descobertas, vai perceber do que se está a falar quanto aos custos das instituições. Estamos a falar dum país muito estranho, onde ninguém tem a noção do que é um museu, não têm a noção da diferença entre um museu e um monumento. O Monte da Lua, por exemplo, uma estrutura de que fui a favor, que só tem monumentos e o parque natural, conseguiu criar uma economia fechada, um circuito de sucesso que permite uma reinversão contínua no restauro e na reabilitação.
Mas o António Lamas, que criou esse modelo, acabou por sair... Foi para o CCB para fazer a mesma coisa, mas saiu quando o Governo mudou.
O Monte da Lua consegue ter uma economia fechada e auto-sustentável. O que ele fez foi zerar as dívidas da Parques de Sintra e fazer o seu programa a partir daí. Sendo que, tendo um número fiscal, por exemplo, pode fazer projetos europeus e ter colaborações de todo o tipo que a nós estão vedadas. Fixa o preço do bilhete, enquanto nós não o podemos fazer. Veja o absurdo de uma instituição financeira e administrativa como esta que poderia ser mais auto-sustentável, embora nunca rentável. Mas um monumento é uma caixa registadora; não tem os custos de um museu, não tem programação, não tem investigação científica, obras que circulam por toda a parte, obras que vêm, etc. Por isso é aquele segmento em que o turismo verdadeiramente se projeta. Ora, isso foi de tal maneira apetecível que sobre o Monte da Lua desceu uma opacidade total. Ao Dr. António Lamas sucedeu o Dr. Manuel Batista; e a ele sucedeu uma vereadora da Câmara de Sintra. Ele entrou e saiu e ninguém deu por ele e agora quem manda é a Câmara de Sintra, que se vai aboletar com três palácios reais, por causa da caixa registadora. Quanto a este museu, sempre se imputam os custos, que é uma estrutura altamente deficitária – quando o défice é apenas de um milhão e meio de euros – e depois esse valor poderia ser menor se nós tivéssemos a autonomia de gerir pelo menos as nossas imagens. Nós não somos donos das imagens das nossas obras. Não as podemos usar.
Então e o merchandising, o que se vende na loja do museu?
A loja não é do MNAA; é uma loja no MNAA. As receitas não são nossas. Veja, por exemplo, o museu Thyssen, que tem cerca de um milhão de visitantes, gera quatro milhões de euros na loja. Além disso, a loja de um museu tem uma dupla finalidade, não é só fazer dinheiro, é também promover o dinheiro futuro, ou seja, afirmar a marca da instituição, criando nas pessoas a apetência de voltar. Ora, se nós vendemos na nossa loja as loiças do Palácio da Ajuda, é um bocadinho difícil as pessoas identifiquem as suas compras connosco.
O negócio das lojas está centralizado pela tutela, é isso?
Exato. Portanto ou temos a loja só com meia dúzia de produtos nossos ou, para ter uma loja que apeteça entrar, temos de receber peças dos outros museus nacionais. É extraordinário que se tenha desperdiçado, mais uma vez, a oportunidade de finalmente se olhar a sério para a questão dos museus, e que todos eles precisam de meios. Uma coisa é perceber que todos os museus são importantes e têm que ter meios e outra e tratá-los por igual como se tivessem a mesma escala. Eu fui diretor do Museu Grão Vasco, portanto sei a diferença de escalas. É um museu encantador, com imensas potencialidades. Nos cinco meses que lá estive fiz uma revolução de que já não existe nenhuma marca – o que é bom para o futuro, foi tudo apagado meticulosamente. Quando fui convidado para dirigir este museu pensei seriamente no risco que estava a assumir – tive a noção do salto que ia ser, com a ausência de meios que já sabia que tinha, entre uma estrutura que é um pequeno Stradivarius e dirigir uma orquestra como esta.
Desde que anunciou a sua demissão, a senhora ministra disse alguma coisa?
A mim, não. Apenas anunciou que ia ser aberto um concurso internacional para o MNAA e para o Museu das Terras de Miranda.
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