Jorge Cancela, médico de hematologia clínica, entrou na zona K3 das consultas externas, que hoje está reservada à vacinação, a meio da manhã. Sorriso de orelha a orelha. Alguns minutos depois, e já vacinado, dirigiu-se a um grupo de colegas que aguardavam pela sua vez.
“Estou tão contente”, disse, enquanto era aplaudido de forma bem mais tímida do que aquela que ocorrera antes, cerca das 10:00, quando o primeiro vacinado, o diretor de serviços de doenças infecciosas, António Sarmento, deu o exemplo em frente a dezenas de câmaras e microfones de jornalistas e na presença da ministra da Saúde, Marta Temido.
“Estou tão contente porque tenho fé na ciência, porque o progresso está a nosso favor, a favor da humanidade. Quando há colaboração de vários países e se esquecem as barreiras só pode acontecer isto: uma vacina tão necessária e importante. Tempo recorde? Não me assusta nada, Estou todo contente”, descreveu Jorge Cancela à agência Lusa.
O médico, que trabalha no São João desde os anos 1990, considera que o momento é “histórico”, mas mais do que isso, “é determinante”.
“Estamos num momento insustentável. Há pessoas que continuam a morrer e aparecem novas variantes. Não há lugar para hesitações. Quando os doentes me perguntam se a vacina pode provocar reações, respondo com outras perguntas: e o efeito do vírus? Não pode provocar a morte?”, contou.
Opinião e entusiasmo semelhantes tem Jorge Lima, enfermeiro do Centro de Endoscopia Digestiva neste centro hospitalar do Porto, um dos cinco onde arrancou hoje o plano de vacinação contra a covid-19. À Lusa, diz estar “orgulhoso por dar o exemplo” porque “sabe que os portugueses precisam de sentir confiança” na vacina que chegou sábado a Portugal escoltada por forças de segurança.
“Se nós [profissionais de saúde] estamos a aderir em massa à vacinação é porque acreditamos que é segura. Acreditamos na ciência. Para erradicarmos esta doença, precisamos que todos sejam vacinados e se atinja imunidade de grupo”, refere o enfermeiro.
Jorge Cancela e Jorge Lima fazem parte de um grupo de 507 profissionais de saúde que às 12:45 estavam vacinados, de acordo com informação enviada à Lusa por fonte hospitalar. “Estavam previstos 400 até esta hora, já superamos. Zero reações [alérgicas]”, referiu a mesma fonte.
Esta “megaoperação” de vacinação mobiliza cerca de 100 profissionais no Hospital de São João. Ao longo de 10 horas está previsto administrar 2.125 doses, num processo quase que cronometrado ao segundo que no sábado o diretor dos Serviços Farmacêuticos, Pedro Soares, chamou de espécie de “ballet russo”.
São 25 os postos de vacinação pelos quais, ao longo do dia, vão passar quer os profissionais a vacinar, quer enfermeiros, num total de 40, que administram as doses de 0,3 mililitros de produto diluído em soro que demora cinco minutos a chegar da farmácia ao centro de ambulatório dentro de bolsas com proteção de luz e transportado em mala térmica para ser administrado à temperatura ambiente.
Patrícia Rodrigues e Filomena Ramos são duas das enfermeiras que aguardam nos consultórios adaptados pelos médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e técnicos de diagnóstico e terapêutica, de serviços referenciados pela Direção-Geral da Saúde (DGS) que receberam convocatória e responderam afirmativamente à vacinação.
“Com este ato simbólico transmitimos confiança ao país. Há quem esteja assustado e compreendemos as hesitações, mas é um processo seguro, é uma vacina segura. O medo da vacina tem de ser superior ao medo da doença”, afirma Filomena Ramos, que é enfermeira-chefe dos serviços de otorrino e oftalmologia.
A convicção de Patrícia Rodrigues é a mesma: “É um ato de cidadania”, refere. Mas a enfermeira, que pelas 12:00 tinha administrado a vacina a cerca de 15 colegas, não vai ser vacinada nesta primeira fase. Faz parte do leque de profissionais de saúde que esteve infetado com o novo coronavírus. Foram mais de 20 dias em outubro em isolamento em casa e agora mais alguns de espera pela sua vez de tomar a vacina.
“Acredita-se que à partida quem esteve infetado tenha alguma imunidade, portanto temos de dar lugar a outros. É uma opção que faz todo o sentido”, diz à Lusa, repetindo as palavras da enfermeira-chefe Filomena Ramos de que, “se necessário for”, vai explicar “até à exaustão” que “a doença é pior do que a vacina”.
Ao lado, Ana Maria Lourenço, enfermeira do agrupamento de centros de saúde Porto Oriental acompanha as operações. Tem como tarefa “colaborar no registo clínico” dos vacinados, mas confessa que se voluntariou para “observar”, uma vez que tem “esperança” de que o processo “passe rapidamente a comunitário e envolva todas as pessoas”.
“É um momento de muita emoção. A história tem-nos mostrado que a vacina é a melhor forma de combater as pandemias. E esta [a covid-19] é dura, está a ser dura”, aponta Ana Maria Lourenço.
A “emoção” e o “orgulho” de que falam enfermeiros e médicos são sentimentos partilhados por Rosário Ricardo, assistente operacional do serviço de neonatologia do Hospital de São João. Recebeu a convocatória há cerca de uma semana. Disse que sim, mas à Lusa aponta que “trocaria com um idoso se fosse possível”.
“Eu percebo a lógica de vacinar profissionais de saúde. Não podemos ficar doentes. Já tantos ficaram e todos fazemos falta. Mas os idosos são tão vulneráveis. Trocaria com eles” afirma, satisfeita, no entanto, por ficar a saber que ao início da manhã, nestas mesmas instalações e antes de partir para outros hospitais, a ministra da Saúde disse que quanto aos lares “o trabalho está avançado”.
Sem se comprometer com datas para arranque da vacinação nas estruturas que acolhem idosos, Marta Temido respondeu aos jornalistas: “em janeiro”.
À semelhança de outros países da União Europeia, em Portugal a vacina é facultativa, gratuita e universal, sendo assegurada pelo Serviço Nacional de Saúde.
Os profissionais dos centros hospitalares universitários do Porto, Coimbra, Lisboa Norte e Lisboa Central são os primeiros a ser vacinados.
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