“Era uma criança de quatro anos e assustava-me com aquelas visitas permanentes”, contou à agência Lusa Manuel Tavares, hoje com 81 anos.
Quando deu entrada no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, a 24 de dezembro de 1940, calhou-lhe a cama 38.
Demasiado pequeno para entender o seu significado, cedo se apercebeu que alguma coisa se passava com o sítio onde dormia, pois com grande regularidade era rodeado de padres que se ajoelhavam e rezavam frente à cama.
“Durante os 13 anos em que permaneci no Hospital Dona Estefânia fui-me apercebendo que ali tinha acontecido alguma coisa. Mas não sabia o que era”, recorda.
Em causa estava o facto da cama 38 ter sido aquela onde a beata Jacinta — que o papa Francisco vai canonizar no próximo sábado, em Fátima — morreu, a 20 de fevereiro de 1920, e ser, por isso, local de culto para os crentes.
E eram muitos. Segundo Manuel Tavares, os religiosos, que “vinham com aqueles chapéus grandes e barbas”, chegavam e iam sempre àquela cama, onde rezavam e iam-se embora.
Entre estes, um padre em especial chamava a atenção das crianças ali internadas, uma vez que nunca falava nem respondia às provocações dos petizes que chegavam ao ponto de lhe puxar a capa.
“Por volta de 1944-45 começou a aparecer todos os domingos um padre a quem nós ainda miúdos puxávamos a capa e a quem chamávamos o padre mudo porque nunca teve uma conversa connosco. Entrava por ali pelo hospital adentro, chegava ao pé da cama, rezava e ia-se embora”, contou.
Mais de 30 anos depois é que Manuel Tavares soube que se tratava do padre Cruz, um devoto do Imaculado Coração de Maria e que deu a primeira comunhão a Lúcia, uma das crianças que estiveram na origem do fenómeno de Fátima. O padre Cruz chegou a visitar o local das “aparições” na companhia dos três pastorinhos.
Esta presença dos religiosos era de tal forma assustadora que Manuel Tavares ganhou a alcunha de “bebé-chorão”, pois quando estes chegavam, a criança começava logo a chorar.
“Havia uns padres com umas barbas muito grandes, causavam-nos muita impressão e nós fugíamos”, recorda. De tal forma que mudou de cama, primeiro para uma mais afastada e depois para o fim de uma sala.
“Tiraram-me desta cama porque eu tinha perturbações grandes sempre que estas pessoas vinham rezar. Eu entrava em alvoroço”.
O facto de estar hospitalizado e não ter família contribuiu para que Manuel Tavares nem sequer imaginasse a razão para este culto e só mais tarde, após passar por um sanatório e a Casa de Rapazes, é que teve conhecimento de um fenómeno chamado Fátima.
“Eramos todos miúdos, fomos crescendo uns com os outros e não tínhamos ideia do que se passava cá fora”.
Mais tarde, já adulto, visitou “por acaso” um museu em Fátima que reproduz o local onde Jacinta esteve hospitalizada e, confessa, sentiu “um arrepio”.
“Fiquei perturbado, porque eu vi o hospital. Aquela cama que lá está é semelhante àquela onde eu estive e onde morreu Jacinta”, adiantou.
Manuel Tavares diz-se crente, nomeadamente em “qualquer coisa” que não sabe o que é.
“Acredito que há qualquer coisa, mas não sei o que é. Eu normalmente só acredito naquilo que vejo. Só comento aquilo que vejo, só discuto aquilo que sei”, explicou.
Contudo, o seu percurso de vida — alguém sem família, sem nada e que consegue ser um homem bem-sucedido — leva-o a questionar como é que o que era suposto ser difícil acabou por ser tão fácil.
“Que há qualquer coisa há, agora não sei o que é…”
Francisco é o quarto papa a visitar Fátima, na sexta-feira e no sábado, para canonizar os pastorinhos Francisco e Jacinta, no centenário das “aparições”, em 1917.
O papa tem encontros previstos com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, logo à chegada, e com o primeiro-ministro, António Costa, no dia 13.
Os anteriores papas que estiveram em Fátima foram Paulo VI (1967), João Paulo II (1982, 1991, 2000) e Bento XVI (2010).
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