Arora trabalhou durante quatro anos nas Nações Unidas. Mas quer isso dizer que tem experiência diplomática? Não, até porque foi recrutada como auditora, em 2016, para fazer parte da equipa de reforma financeira. Mas estando descontente com a ONU, nomeadamente por considerar que não está a fazer aquilo a que se propôs aquando a sua fundação, manifestou em fevereiro a intenção de disputar o lugar de secretário-geral.
"Na última semana, dei o primeiro passo numa jornada para fazer uma #UNThatWorks (Uma ONU que funciona). Não estou a concorrer ao lugar de secretário-geral das Nações Unidas para cumprir uma ambição de longa data. Nem me sinto no direito por causa da minha idade, sexo ou etnia. Opto por concorrer a esta eleição — neste momento — por causa da urgência do agora. Não estamos a cumprir o nosso propósito ou a nossa promessa. Estamos a falhar com aqueles a quem estamos aqui para servir", escreveu numa carta endereçada ao presidente da Assembleia Geral da ONU, a dar conhecimento dos seus intentos.
Em bom rigor, ainda não se pode considerar que a indo-canadiana seja realmente candidata ao posto. Para efetivamente o ser, necessita primeiro do apoio formal de um dos 193 estados-membros das Nações Unidas — e só depois disso é que poderá avançar com os trâmites e formalizar a sua candidatura. No entanto, caso consiga e seja escolhida e apoiada por algum país, e em caso de sucesso, seria a mais jovem secretária-geral de sempre, e a primeira mulher no cargo.
O caminho que tem pela frente é extremamente difícil, e talvez até ingrato. A realidade é que tem apenas 34 anos — precisamente metade da idade do atual secretário-geral, António Guterres, que tem 71 — e o facto de não ter qualquer experiência diplomática deverá ser algo que vai condicionar a sua campanha. Os jornais internacionais salientam que, contudo, não se deixa iludir: as hipóteses de sair vitoriosa na votação são escassas. Os Estados-membros sabem-no, ela sabe-o também. Porém, esse é precisamente o foco de toda a sua campanha — apostar na candidatura improvável para desafiar o sistema.
"Deus salvou-me por uma razão"
Foi durante a recuperação de um acidente que se apercebeu, ao estar em contacto com uma situação que podia ter sido fatal, do que é a vida. Pensou no seu obituário, nas palavras que utilizaria para se descrever. Foi aí que pensou no futuro, no que queria fazer, no que podia "oferecer ao mundo". Numa entrevista ao Expresso, entra mais em detalhe e relata o que lhe passava pela cabeça numa altura em que não tinha conhecimento da extensão dos ferimentos que sofrera e não sabia se sobreviveria.
"Ainda não conhecia a dimensão dos danos internos, mas foi aí que tive verdadeiro contacto com a morte, antes um conceito abstrato", confidenciou ao semanário. Ao ruminar entre vários pensamentos, explicou que fez um pacto com Deus: se saísse ilesa, viva, iria "dedicar a vida a fazer a diferença no mundo". O motivo que a levou estar naquela situação? Foi atropelada por um taxi durante a noite, à saída da sede das Nações Unidas, após um dia de trabalho. Acabaria por ser transportada para as urgências, com um joelho partido e várias escoriações.
Arora estava há quatro anos na ONU quando tomou a decisão de que iria intrometer-se numa corrida com António Guterres. Este episódio, ou melhor, o acidente que a levou ao hospital, aconteceu em 2017, mês e meio depois de aterrar em Nova Iorque para começar a trabalhar nas Nações Unidas. Facto curioso e sem coincidência: a data em que escreveu a carta e fez o anuncio de que queria ser a próxima secretária-geral foi no quatro "aniversário" do atropelamento.
Num perfil traçado recentemente pelo New York Times, explica que prefere que seja tratada por Arora, o apelido da família. Nasceu em Haryana, um estado no norte da Índia, mas passou os seus primeiros anos de vida na Arábia Saudita, país para onde os seus pais, ambos médicos, se tinham mudado. Dos 9 aos 18 anos regressou à Índia para frequentar um colégio, mas acabou por decidir mudar-se para o Canadá, onde se licenciou com distinção na Universidade de York e trabalhou para a PricewaterhouseCoopers (PwC) como auditora. Tem passaporte canadiano.
Foi então que o futuro a levou para a Big Apple, nos Estados Unidos. Estávamos em dezembro de 2016 quando foi recrutada como auditora e colocada numa equipa que tinha a missão de reformular as contas das Nações Unidas. E logo durante esse período inicial ficou em choque com a realidade da ONU e a imagem idílica que tinha da organização começou a esbater-se.
"O sistema é tão espantoso por fora, mas não há coerência para se conseguir fazer as coisas", explicou. E o atropelamento aconteceu semanas depois dessa constatação, depois de ver como é que as coisas eram por dentro do edifício. Deitada numa cama de hospital com o joelho esquerdo fraturado, pensou: "Se eu morresse, qual seria o meu legado?". Este, frisa, foi um momento que a fez despertar e perceber que tinha de fazer algo. Mas não foi o único.
Nesse verão, explica ao NYT, enquanto trabalhava no Uganda, encontrou uma criança a comer lama. "Essa imagem ficou-me na cabeça", disse, recordando que partilhou aquele momento que a incomodou com um alto funcionário das Nações Unidas, mas que a resposta recebida de foi deveras insensível; algo que a deixou atordoada.
"E ele respondeu-me: A lama é boa para as crianças, tem ferro. Essa foi a primeira vez que fiquei sem palavras na minha vida", relembra Arora, enfatizando que o episódio "foi um dos grandes gatilhos" que a motivaram para mudar a organização em que, apesar de tudo, ainda acredita.
"É destemida"
A ambição é grande. O salto pode ser maior do que a perna. Mas a sua ambição não é vista como "tola ou quixotesca" pelos que a conhecem. Aliás, segundo o NYT, os amigos admiram mesmo a sua coragem e propensão para falar aquilo que lhe vai na cabeça. Afinal, não são todos os dias que aos 34 anos se tenta romper com o status quo de uma organização com a dimensão da ONU.
Arora crê que o estado atual das coisas faz com que as intenções das Nações Unidas sejam "escleróticas, esbanjadoras, à deriva, paternalistas" para com os membros mais jovens de uma equipa de 44.000 espalhada pelos quatro cantos do globo.
Um exemplo mais concreto está explícito num dos seus vídeos da sua campanha no YouTube, salienta o NYT. Segundo indica a própria no vídeo, apenas 29 cêntimos de cada dólar (da receita total anual da ONU de cerca de 56 mil milhões de dólares) vai efetivamente para o terreno e para as causas e de quem delas necessitam.
"Gastamos os nossos recursos em conferências e a escrever relatórios. Atividades todas elas frívolas que são publicidade. Perdemos a noção da razão de existirmos, do que é suposto fazermos", explicou, condenando ainda a maneira como a organização é gerida, ao afirmar que se as Nações Unidas fossem uma empresa privada estaria "sem negócio".
Um das críticas que Akanksha faz às Nações Unidas passa pelo facto de o perfil do secretário-geral ser impreterivelmente o mesmo, avesso às mudanças: "Homens mais velhos e com o mesmo nível de experiência na política", afirma a pré-candidata ao Expresso. Essa é uma das razões porque deseja trazer uma "a perspetiva fresca de uma millennial e uma capacidade de representação a vários níveis".
O mandato de cinco anos de Guterres, que assumiu o cargo de secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em janeiro de 2017, termina no final deste ano, a 31 de dezembro. Aclamado pelos 193 Estados-membros da Assembleia-Geral da ONU para o cargo de secretário-geral em 13 de outubro de 2016, o ex-primeiro-ministro português anunciou, em janeiro último, a sua disponibilidade para cumprir um segundo mandato de cinco anos no período de 2022-2026.
Em fevereiro, as Nações Unidas deram início este mês ao processo formal de seleção do próximo secretário-geral da organização, ao pedirem aos 193 Estados-membros que submetessem os nomes de candidatos ao cargo.
Até ao momento, ainda nenhum país endossou formalmente a improvável candidatura de Arora. Só que, como frisa o NYT, mesmo que nenhuma nação o faça, a sua ousadia deixou a organização de 193 membros em alerta e chamou a atenção para a forma historicamente opaca como o seu líder é escolhido. Embora o processo tenha sido tornado mais transparente em comparação com as negociações de bastidores que prevaleceram há anos, é sabido que o desfecho provável é que Guterres ganhe um segundo mandato quando a escolha for feita no próximo mês de outubro.
O jornal americano lembra que o secretário-geral das Nações unidas pode ter um lugar cimeiro e um púlpito, mas o cargo detém tem pouco poder real; é que o seu ocupante, seja ele qual for, está basicamente refém dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança — Reino Unido, China, França, Rússia e Estados Unidos —, que desempenham um papel decisivo.
Questionado pelo NYT sobre a hipótese real de Arora cair no goto destes países, o homem que escreveu os discursos para Kofi Annan (secretário-geral da ONU entre 1997 a 2006) acredita piamente que ela "não tem qualquer hipótese", e que a própria o sabe. No entanto, salientou Edward Mortimer, a sua intenção de se candidatar "é uma forma corajosa de demonstrar a sua insatisfação que, sem dúvida, é largamente partilhada pelos seus colegas".
Arora tirou uma licença sem vencimento do seu trabalho para se concentrar na sua campanha. Tem recebido encorajamento por parte dos seus colegas e conta com mais de 2.600 votos no seu site. A intenção é agora apresentar a sua candidata, as suas ideias, aos embaixadores das Nações Unidas nos próximos meses. "Não quero fazer joguinhos, só quero fazer uma campanha honesta", disse.
Mas e a falta de experiência? No que diz respeito aos céticos que apontam esta nuance como fator decisivo, numa entrevista a um meio de comunicação canadiano, citado pela Canadian Broadcasting Corporation (CBC), frisou que a experiência nem sempre se materializa em resultados.
"Às vezes demasiada experiência numa área faz-nos ficar confinados nas políticas daquela organização", disse. "Não se pode sequer pensar de forma diferente. O silêncio torna-se uma resposta aceitável", rebate.
Naquela que foi a sua primeira entrevista no Canadá, Arora confirmou no programa "Power & Politics" que se encontrou com o embaixador canadiano nas Nações Unidas, Bob Rae, mas que ainda não tem a confirmação se este vai ou não endossar a sua candidatura. Ainda assim, salienta que a "discussão foi positiva".
Apesar de tudo, no mesmo programa frisou aquilo que tem dito também a outros meios internacionais que estão a fazer perfis e a tentar descobrir quem é a mulher de 34 anos que está a tentar abanar as Nações Unidas: continua a acreditar na ONU e no propósito para que foi criada. Mas considera que atualmente não está a servir as pessoas da maneira como devia. E que por isso "precisamos de uma nova ONU e precisamos dela agora".
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