"O sistema de supervisão e de regulação não funcionou", tendo permitido vendas fraudulentas de produtos financeiros (‘misselling'), disse hoje Mário Centeno perante os deputados, justificando o envolvimento do Governo no mecanismo de compensará parcialmente os lesados do papel comercial vendido pelo BES, nomeadamente através da prestação de uma garantia estatal que poderá levar o Orçamento do Estado a assumir perdas de futuro.
Já questionado por deputados do CDS e PSD sobre o facto de haver lesados que não são abrangidos por esta solução - caso de clientes que comparam papel comercial no sucursal exterior do BES na Madeira ou os lesados emigrantes, que comparam outro tipo de produtos financeiros do BES -, o responsável pelo Ministério das Finanças disse que "o Estado não se pode substituir a todas as perdas" e que "a ação do Estado tem de ser equilibrada".
"As garantias públicas só devem ser utilizadas na medida em que consigam ser justificadas pelas próprias responsabilidades do Estado já existentes", afirmou Centeno.
Também o secretário de Estado das Finanças defendeu perante os deputados o mecanismo de compensação criado, tendo reiterado que o Governo decidiu promovê-lo porque é hoje sabido que o Estado falhou na proteção dos investidores.
"Há responsabilidade pública, porque o Estado em sentido lato devia ter feito coisas que não fez (...). O Estado falhou", disse Mourinho Félix.
Segundo o secretário de Estado, em causa estão falhas nas autoridades e entidades de supervisão estatais, "umas vezes por não estarem preparadas para o fazer, outras por não terem enquadramento legal".
Ainda quanto à garantia pública, muito criticada pelo PSD, através do deputado Leitão Amaro, o ministro considerou que o risco de execução dessa garantia é reduzido.
"A expectativa que existe é de que esta garantia não venha a acumular-se às obrigações do Estado nesta matéria", acrescentando ainda que avalia que "esse risco é muito menor do que a perda de confiança que está subjacente a estas práticas".
Também o secretário de Estado afirmou que "a garantia não significa despesa" e disse acreditar que, mesmo que seja executada, no final o fundo de indemnizações conseguirá dinheiro para pagar ao Estado.
Em abril, o Governo enviou ao parlamento a proposta de lei n.º 74/XIII/2 que visa a criação de uma nova figura jurídica, os fundos de recuperação de créditos, com vista a indemnizar parcialmente os 2.000 clientes que investiram, aos balcões do Banco Espírito Santo (BES), 434 milhões de euros nas empresas Espírito Santo Financial e Rio Forte, e cujo investimento perderam com o colapso do Grupo Espírito Santo (no verão de 2014).
O mecanismo para compensar os lesados do papel comercial do BES foi acordado ao longo de mais de um ano por um grupo de trabalho constituído por Associação de Indignados e Enganados do Papel Comercial, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), Banco de Portugal, 'banco mau' BES e Governo, através do advogado Diogo Lacerda Machado.
A solução acordada propõe que os lesados recuperem 75% do valor investido, num máximo de 250 mil euros, isto se tiverem aplicações até 500 mil euros. Já acima desse valor, irão recuperar 50% do valor investido.
Quanto ao pagamento, este será feito pelo fundo de recuperação de crédito, pelo que é necessário aprovar legislação para esse efeito.
O objetivo é que este fundo pague 30% da indemnização aos lesados logo após a assinatura do contrato de adesão à solução. O restante valor será pago aos lesados em mais duas parcelas, em 2018 e 2019.
Como o fundo não terá dinheiro, terá de se financiar junto da banca, estando mesmo previsto na proposta legislativa que o Estado preste uma garantia pública para que o fundo consiga financiar-se.
Além disso, a legislação também refere outro mecanismo de financiamento, com intervenção mais direta pelo Estado.
"Em alternativa à celebração de um contrato de financiamento, e sendo isso também indispensável ao cumprimento de determinadas obrigações legais e contratuais do fundo de recuperação de créditos perante os participantes, o Estado pode ainda assegurar aos participantes a satisfação dos créditos pecuniários correspondentes", refere o ponto 2 do artigo 70.º do documento.
De acordo com informações recolhidas pela Lusa, o que se passará é que na celebração do contrato de adesão será concedida aos clientes lesados uma garantia estatal que assegura que receberão as segunda e terceira tranches da indemnização acordada.
Ou seja, se nessa altura o fundo não tiver dinheiro para pagar, cada cliente lesado pode acionar essa garantia e o Estado paga-lhes diretamente, ficando depois o fundo em dívida perante o Estado.
Em maio, 1.900 lesados do papel comercial, o equivalente a 97% do total, manifestaram interesse por escrito em aderir à solução.
Contudo, estes terão de aceitar determinadas condições.
Desde logo, estes clientes terão de ceder ao fundo de indemnizações direitos judiciais colocados contra as entidades responsáveis pela emissão e venda do papel comercial, para que o fundo continue a litigar em tribunal em nome desses clientes e receba no futuro as indemnizações decididas pelos tribunais ou em acordos extrajudiciais.
Além disso, é exigido aos clientes que assinem o contrato de adesão que abdiquem de continuar com processos que tenham em tribunal contra o Estado, Banco de Portugal, CMVM, Novo Banco e futuro comprador, entre outras entidades.
A solução para os lesados do papel comercial foi uma promessa política do atual primeiro-ministro, António Costa.
Contudo, este processo tem sofrido muitos atrasos. A expectativa mais recente era que o primeiro pagamento chegasse aos lesados em junho, mas esse prazo já derrapou novamente, porque ainda falta constituir o fundo, um processo demorado, já que, além de ter de ser aprovada no parlamento a lei que o enquadra, também é necessário escolher a equipa que irá fazer a gestão do fundo.
Quanto aos outros clientes que se sentem lesados pelo BES e Grupo Espírito Santo em condições semelhantes, mas que não são incluídos nesta solução, como emigrantes portugueses em países como Venezuela, África do Sul, França ou Suíça e mesmo residentes em Portugal que subscreveram papel comercial mas em sociedades localizadas em outras jurisdições (como sucursal exterior da Madeira), associações e movimentos representativos dessas pessoas têm reclamado que sejam encontradas soluções semelhantes.
Também os lesados do Banif querem um mecanismo de compensação para o seu caso.
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