No ano em que se celebra o centenário de Amália Rodrigues, eterna e emblemática fadista portuguesa, Lisboa é cidade sem música e sem fado depois de as medidas de combate ao novo coronavírus terem obrigado a cancelar espetáculos e a encerrar as casas de fado.

No mundo das artes, um setor extremamente afetado pela pandemia, onde de repente se fecharam os palcos, a Câmara Municipal de Lisboa quer dar a mão às “centenas de artistas que, ao longo dos anos, construíram e constroem, ainda hoje, a história do Fado”.

Em Lisboa, nenhum artista é esquecido, com a autarquia da capital portuguesa a aprovar um apoio extraordinário de um milhão de euros para dinamização cultural da cidade, a que se somam 250 mil euros , um reforço aprovado através do Fundo de Emergência Social do município, para garantir a subsistência de trabalhadores independentes e entidades culturais e criativas de Lisboa.

Mas o fado, música e poesia com que se escreve a história da cidade, merece uma atenção especial, em particular as casas históricas, em funcionamento há largas décadas, espaços vivos de aprendizagem, transmissão e fruição cultural do Fado e da Guitarra Portuguesa.

“Para um fadista tudo começa na casa de fados. É ali que recebe os ensinamentos dos mais antigos. É ali que aprende a conhecer os repertórios poéticos, as melodias e o legado dos grandes pilares da tradição fadista. É aqui que cresce, enquanto artista, para passar a integrar, em nome próprio, uma herança coletiva que conta com uma história aproximada de dois séculos e que se assume, ainda hoje, em pleno século XXI, como um património vivo e universal”, lê-se no comunicado em que a Câmara lisboeta anuncia um apoio de 200 mil euros ao setor do faço, uma quantia que não está inserida nos 1,25 milhões de euros de apoio a agentes culturais. As candidaturas para aceder a este apoio abrem no dia 20 de abril.

A edilidade anunciou também, que em parceria com a RTP, está a preparar um documentário sobre as casa de fado, a ser gravado em dez “casas emblemáticas” da cidade, entre as quais A Parreirinha de Alfama, O Faia e Senhor Vinho.

A Severa, Adega Machado, Café Luso, Casa de Linhares, Clube de Fado, Maria da Mouraria e Mesa de Frades são as outras casas indicadas hoje pela câmara.

Numa iniciativa que a autarquia define como “Fique em Casa… de Fados”, este documentário terá “os episódios individuais” transmitidos ‘online’, nas redes sociais da Câmara Municipal de Lisboa e do Museu do Fado, enquanto “o documentário será transmitido pela RTP”.

“O financiamento [deste filme] é da responsabilidade da autarquia”, sublinha a câmara.

Simultaneamente, o Museu do Fado está a desenvolver uma “programação com todos os artistas dos elencos artísticos de todas as casas de fado”, que a câmara descreve como “Fados da Casa”.

Segundo a autarquia é “uma programação de conversas e fado, filmada em ambiente controlado” e que também será transmitida pelas redes sociais da Câmara Municipal de Lisboa, da Empresa Municipal de Gestão dos Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) e do próprio museu.

“Ao longo deste ciclo, intérpretes e músicos são convidados a partilhar memórias e conhecimentos sobre a história do Fado, a selecionar peças emblemáticas do acervo do museu [e] a homenagear as suas referências artísticas”, lê-se no comunicado camarário.

A câmara promete ainda trabalhar “um programa específico para relançar o setor no médio prazo”, em colaboração com a Associação de Turismo de Lisboa, para apoiar “a recuperação das casas de fado e a manutenção da vitalidade de uma instituição e referência cultural que faz parte e preserva a memória da própria cidade”.

Casas de fado e fadistas tinham já manifestado à agência Lusa várias dificuldades que enfrenta, no contexto das medidas restritas impostas no combate à pandemia de Covid-19.

A precariedade laboral dos intérpretes do fado, cantores e instrumentistas, que marca a sua relação com as casas de fado, e a dependência do turismo desta expressão têm exposto a fragilidade do setor, de acordo com empresários e artistas.

Pedro Ramos, proprietário d’O Faia, no Bairro Alto, disse à Lusa que o setor “estava numa boa fase”, mas que a retoma “só começará a sério em março do próximo ano”.

A opinião foi partilhada por outros empresários, como o guitarrista Paulo Valentim, da histórica A Parreirinha d’Alfama, e o poeta José Luís Gordo, d’O Senhor Vinho, na Lapa.

“Vamos tentar recorrer aos apoios da banca para manter a casa, com prejuízos, até ao final do ano, esperando que, dependo do evoluir da situação do coronavírus, possa timidamente surgir algum turismo e, a partir de março [de 2021], temos de acreditar numa retoma”, disse Pedro Ramos.

O fadista António Rocha, que canta há mais de 60 anos, já distinguido com um Prémio Amália, disse à Lusa que “nunca se assistiu a algo assim, uma paragem total. Resta ver como se vai recuperar”.

“Muitos fadistas estão literalmente sem qualquer rendimento, pois muitos são precários, não havendo casas de fado abertas. Não cantam, e logo não ganham”, alertou a Associação Portuguesa dos Amigos do Fado (APAF).

A fadista Luísa Rocha, do elenco da casa Fado em Si, em Alfama, afirmou-se preocupada, e disse à Lusa estar a ponderar encontrar uma segunda fonte de rendimento.

“No meu caso, somos dois, pois eu o meu marido [Guilherme Banza], que é guitarrista, trabalhamos na mesma casa de fados e estamos os dois parados”, disse Luísa Rocha já com dois álbuns editados, “Uma Noite de Amor” (2011) e “Fado Veneno” (2015).

Na ocasião, à Lusa, todos os empresários apelaram a “mais apoios” do Estado e realçaram o papel “único e característico” das casas de fado na indústria turística. “Ninguém vem de facto a Lisboa sem ir uma noite aos fados, e nós somos um cartaz da cultura e língua portuguesas”, realçou Paulo Valentim.

*com agência Lusa