A tese de doutoramento é sobre a cisão de um núcleo atómico e chegou antes do desastre de Chernobyl. O nuclear de má fama é um dos temas desta conversa (o bom também), que em 90 minutos deu a volta ao universo, fazendo lembrar os livros de Júlio Verne, que marcaram mais de uma geração.

A metafísica também veio à baila: Deus existe? O diabo seguramente e revela-se no lado mais animalesco deste Homo Sapiens, por vezes tão irracional. A ciência não responde a tudo, mas explica muita coisa. Por isso os professores e a escola são tão importantes.

E se as perguntas levam à descoberta, foi através delas que ficámos a conhecer Carlos Fiolhais, o investigador e divulgador de ciência premiado, professor catedrático licenciado em Física pela Universidade de Coimbra e doutorado pela Universidade de Goethe, na Alemanha, mas também o rapaz pintor, filho de um militar da GNR e de uma miúda que vendia hortaliças no Mercado da Ribeira, onde as tias tinham lugar.

A conversa com Carlos Fiolhais, um espírito irrequieto.

Qual a resposta para "o sentido da vida, o universo e tudo o resto" que não seja 42?

"A vida, o universo e tudo o resto", acho que há um romance de ficção científica [Douglas Adams] em que a resposta à grande pergunta era um trivial "42". Ora bem, não há respostas triviais a grandes questões.

Nós somos uma parte do universo. E, que saibamos, a única parte que o consegue compreender somos nós, Homo Sapiens. Uma forma de vida inteligente que vive no único sítio conhecido no universo onde existe vida, o que é curioso. Há aqui uma vocação, chamemos-lhe assim, que é interrogarmo-nos sobre grandes questões.

Carl Sagan [cientista norte-americano] punha o problema de uma maneira muito curiosa: nós somos a consciência do universo. Nós somos, a certa altura da evolução cósmica, a parte do universo que permite compreendê-lo. E colocamos questões - quem somos, onde estamos, de onde vimos e para onde vamos -, que só em parte têm resposta científica. E a ciência continua à procura de complementar essas respostas.

Para já, que respostas dá a ciência?

Vivemos no universo, um espaço muito vasto, provavelmente infinito, com uma história que vem de há 14 mil milhões de anos. A nossa história é muito recente aí, os seres vivos têm 3,8 mil milhões de anos na Terra, mas nós, Homo Sapiens, temos só 300 mil.

Se colocar outras questões, ou se colocar estas questões de outra maneira, já a ciência não sabe dar respostas. É muito difícil dizer por que motivo existimos, se é que a pergunta faz sentido. Estas já não são perguntas da ciência, é a Filosofia que trata disso.

Há quem diga, até, que somos o sujeito mas também o objeto. Quer dizer, o universo pode ser muito complexo, mas a parte que nos interessa somos nós próprios. De algum modo, temos um interesse egoísta no conhecimento, a pergunta é sempre "quem somos nós". E às vezes parece que estamos a olhar para muito longe, mas estamos sempre a pensar nas nossas capacidades, nos nossos limites, no nosso futuro.

"Se algum dia acontecer vermos outras formas de vida, porventura vamos ter surpresas, não estaremos nunca a olhar ao espelho. Quer dizer, o mundo vai revelar-se muito mais imaginativo do que a nossa imaginação"

Isso tem-nos levado longe, mas essa visão um tanto egocêntrica também nos limita, não?

Limita, sim. Porque no dia em que descobrirmos outras formas de vida noutro sítio, eventualmente vida inteligente, aí poderemos olhar melhor para a nossa paróquia e, em comparação com a outra, perspetivar as coisas de maneira diferente. Já imaginamos isso na ficção científica. Parece-nos que somos únicos e, porventura, não somos. Isso ia relativizar muito o nosso papel.

Pensa que existem outras formas de vida no universo?

Penso. Diria que é natural que neste longo processo tenham aparecido outras formas de vida, resta saber se baseadas no mesmo código, mas isso é outra questão. Vida inteligente será mais difícil, mas não é impossível.

O universo é muito vasto, como disse, só desde há pouco mais de 100 anos temos a possibilidade de fazer e enviar ondas de rádio. As primeiras ondas de rádio só vão 100 anos luz daqui, pouco mais do que isso. O tamanho da nossa galáxia é muito maior do que isso. Os outros, se existem, poderão dizer o mesmo. Mas direi que se algum dia esse encontro se der, será um grande marco para a humanidade.

Estou a dizer isto, mas já ouvi pessoas dizerem que a vida vai continuar como até aqui. Para a ciência e para a filosofia poderá ser diferente, mas para a vida de todos os dias vai ser como quando chegámos à lua. Uma vez, na televisão, perguntaram a um português o que ia mudar com a chegada do homem à lua. Ele respondeu: "Não vai mudar nada, aqui o preço do bife é o mesmo" [ri].

Mesmo a visão do que poderá ser outra vida é limitada, porque é sempre imaginada à nossa imagem.

Quando pode ser uma coisa completamente diferente. Temos algumas expectativas e, normalmente, somos sempre a referência. Por exemplo, quando hoje fazemos a chamada Inteligência Artificial - um dos grandes desafios com que a humanidade está confrontada, tentar imitar o nosso cérebro usando máquinas -, a referência é sempre o nosso cérebro, tentamos antropomorfizar, dar-lhe características semelhantes a nós, com todas as limitações que temos.

Mesmo assim, as máquinas não são exatamente como nós, há coisas que só nós fazemos, como ter crenças, paixões, consciência. Penso que se algum dia acontecer vermos outras formas de vida, porventura vamos ter surpresas, não estaremos nunca a olhar ao espelho. Quer dizer, o mundo vai revelar-se muito mais imaginativo do que a nossa imaginação.

"A diferença genética do chimpanzé é de apenas 5% (é o que está mais próximo de nós)"

Falou na ficção científica, nos filmes vê-se muito essa limitação.

Aumenta os olhos, aumenta os braços, mas o extra-terrestre é sempre mais ou menos terrestre. Percebe-se, os autores estão sempre limitados pela sua natureza humana. A imaginação humana não é tão ilimitada como isso, porque vem de seres agarrados ao chão, com as contingência da vida biológica, têm de se alimentar, de dormir, de fazer todas as coisas que os humanos fazem. A capacidade de imaginar é naturalmente limitada pela sua circunstância.

"Ah, a imaginação é livre"... Terá alguma liberdade, mas não tem a liberdade toda. A natureza é, porventura, mais livre do que nós. Tem a liberdade toda? Bem, sabemos que existem leis universais, os cientistas sabem que a lei da gravidade funciona aqui como funciona noutro sítio qualquer da Terra, se funcionasse em cada sítio de sua maneira, não teríamos a possibilidade de perceber o mundo.

O mundo tem regras unificadas e os cientistas aceitam as regras fundamentais. Mas, dentro do funcionamento dessas regras fundamentais, pode haver estruturas altamente complexas. O cérebro será a peça mais complexa do universo que conhecemos, temos mais neurónios na cabeça do que existem estrelas na Via Látea.

A natureza lembrou-se, entre aspas, de fazer esta coisa. Mas, sendo tão vasta como é, pode lembrar-se de fazer outras coisas noutros sítios. Pode ter feito isso em sistemas que não imaginamos neste momento nem sequer nos melhores livros de ficção científica.

Carlos Fiolhais
O porquê das coisas créditos: Pedro Santos

Somos Homo Sapiens. Damo-nos conta do que significa ser Homo Sapiens ou somos um pouco mais tolos do que gostaríamos de admitir?

Temos, de facto, o nome sapiens na espécie. E é a única espécie de hominídeos - já houve outras, uma chamada Neandertal, que até se cruzou com a nossa. Pode haver diferenças entre indivíduos no mundo, e há, mas do ponto de vista genético elas não ultrapassam os 1% do genoma. Somos diferentes mas, fundamentalmente, somos todos iguais. E isso devia fazer-nos refletir.

Do ponto de vista biológico, no fundo, somos mesmo os mesmos. Às vezes exageramos as diferenças, é o que isso quer dizer. Ter a pele de uma cor diferente, ter os olhos de uma cor diferente, ter o cabelo de uma cor diferente ou ter um sexo diferente não significa muito. Quer dizer, não devia significar aquilo que nalguns casos significa. Portanto, neste mundo devíamos sentir que somos parte da mesma espécie e não nos devíamos embrenhar, como tantas vezes embrenhamos, e a história é muito antiga, em guerras que podem até levar a grandes prejuízos para a própria espécie.

Sendo o homem um ser sábio, se quisermos, um ser inteligente, por que razão temos também atitudes que não têm esta marca, que não são racionais?

Bem, direi que tem a ver com o nosso lado animal. Há muitas coisas dos outros animais - mamíferos, aves, répteis e outros - em nós. Partilhamos genes. A diferença genética do chimpanzé é de apenas 5% (é o que está mais próximo de nós). Mas temos coisas dos peixes em nós, também. De algum modo, São Francisco de Assis tinha razão quando falava dos nossos "irmãos peixes", mesmo sem saber nada de genética. São primos afastados.

Há uma grande afinidade no reino animal e nós fazemos parte desse mundo. É natural que tenhamos partes de nós que não são das mais apuradas, que não são racionais. E estou a falar de todos, não estou a falar de uns em detrimento doutros. Em cada um de nós há uma parte racional e uma parte irracional. E há quem estude essas coisas para fazer apelo aos nossos piores instintos.

"As mudanças tecnológicas, que não vão parar por aqui, não vão tirar o essencial da Escola"

Qual o papel da escola em tudo isto?

A escola tem uma dimensão de socialização, de integração na sociedade, de preparação para a vida. Os pais confiam os filhos à instituição escola, na qual todos devíamos confiar mais, já agora - e podemos fazer as críticas que quisermos, muitas delas justas -, e tem dado um resultado enorme até hoje. Tão grande, que ainda não arranjámos alternativa melhor para transmitir o melhor do património da humanidade.

A família também tem um papel, claro. Somos a combinação dos genes do pai e dos genes da mãe e é com eles que aprendemos as primeiras regras. Mas, a certa altura, os pais, mesmo tentando o melhor deles, não conseguem dar-nos a preparação suficiente para a vida.

E também há pais que não podem fazê-lo, alguns mal frequentaram a escola. Até falo no meu caso pessoal, os meus pais tinham uma escolaridade limitada, os filhos encontram um mundo mais amplo na escola. Eu, felizmente, pude entrar na primeira classe aos seis anos e saí com o doutoramento aos 26. Andei vinte anos da minha vida a preparar-me para a vida, o que é uma parte significativa, quase um terço da vida que já levo.

São os professores que transmitem o tal património. A minha mãe, se calhar, não sabia quem era Sócrates na Filosofia. O meu pai, se calhar, não sabia ou sabia pouco sobre Leonardo da Vinci. E essas são figuras extraordinárias da humanidade, são génios. Aquilo que conseguiram, mensagens de conhecimento, de sabedoria, de arte, coisas que nos iluminam a vida e nos tornam melhores, mais capazes, não temos de reinventar.

A escola tem vindo a atualizar-se ou parou no tempo? Porque hoje há muito mais informação disponível e as curiosidades também são outras.

Foi sempre assim, a escola pode sempre funcionar melhor. Mas ao criticar a escola estamos também a criticar a sociedade. A escola teve sempre um grande problema à partida, tem de dar o melhor do passado, não pode ainda dar nada do futuro porque o futuro é uma incógnita. Em coisas tão simples como a World Wide Web, que ninguém imaginou que ia mudar o mundo como mudou. Portanto, a escola tem de ser de algum modo conservadora. Pode usar meios modernos, mas a melhor coisa que temos para interrogar o futuro é conhecer o passado.

Fala-se agora em alunos do século XXI e professores do século XX, formulações bonitas para dizer que não precisamos da escola, que os alunos vão aprender sozinhos. Como se isso fosse possível.

A escola não é só o edifício, os livros, os quadros, os computadores. A escola são os professores. Pessoas mais velhas, com outra experiência, que têm visto outras crianças e jovens e que tomaram para si essa responsabilidade de transmissão do património da humanidade, fizeram disso a sua profissão. É uma responsabilidade imensa, confia-se neles para que a humanidade possa prosseguir. Não acredito que se possa fazer uma Escola sem os professores.

Vejo algumas tentativas, quando se fala em Inteligência Artificial ou quando se diz "está tudo no Goolge". Falso. O que a escola tem de fazer, com certeza, é viver essa realidade; viver com a televisão, com a Internet, com os media. Mas já antes se ouvia a escola pela rádio, depois pela televisão e agora pela Internet. Mas as mudanças tecnológicas, que não vão parar por aqui, não vão tirar o essencial da escola.

O lado humano é fundamental. O humano é capaz de ver coisas que a Internet ou a Inteligência Artificial não conseguem, como perceber os estados das pessoas, as emoções, os sentimentos, a sua vida. O afeto também se aprende na escola, como a solidariedade, a empatia, a disponibilidade. "Está tudo na Internet", pois, mas se não tenho outras pessoas com quem falar, se não tenho quem me possa orientar nesse labirinto, não vou a lado nenhum. O excesso só causa fastio.

"É uma coisa burra chamar burro a alguém. Porque as pessoas têm oportunidades distintas, às vezes resultado da sorte genética ou da proveniência social"

O ensino podia retirar mais e melhor dos alunos, das capacidades de cada um, se não fosse tão voltado para a média, tão padronizado? Ainda há aquela divisão do "tu és burro" e "tu és muito inteligente"...

Quando há pouco disse que temos alguma coisa de animal, também temos de burro [ri]. Todos nós. Mas é uma coisa burra chamar burro a alguém. Porque as pessoas têm oportunidades distintas, às vezes resultado da sorte genética ou da proveniência social. Nascemos num ou noutro berço sem ter culpa.

A escola tem também a missão de assegurar a coesão social. Não é só transmitir conhecimentos, é pôr aquelas pessoas a viver em conjunto, rico ou pobre, tenha este ou aquele talento, porque as pessoas têm sempre algum talento. Para funcionar, a sociedade precisa de estar ligada, e isso também se aprende na escola, ainda que não faça parte das disciplinas curriculares. Depois, quando mais tarde entramos na vida, e a vida pode ser muito complicada, já temos o ensinamento da escola.

Já falou várias vezes no seu pai e na sua mãe. O que recorda quando pensa neles, que memórias?

O meu pai e a minha mãe eram pessoas de origem modesta, já dei a entender isso. A minha mãe era de Trás-os-Montes, de uma aldeia muito pequenina, perto de Chaves, quase quando Portugal acaba, e o meu pai era de uma aldeia também pequena, na zona de Peso da Régua, no vale do Douro. A minha mãe é da terra da água, o meu pai é da terra do vinho.

Curiosamente, sendo os dois do interior de Portugal, os dois nortenhos, conheceram-se em Lisboa, nos anos 50, no fim da guerra, já Portugal não estava a desenvolver-se como outros países - ainda hoje há grande assimetria entre o litoral e o interior, entre a aldeia e a cidade -, e o interior era muito pobre.

O meu pai fez a quarta classe e tem histórias de vida de andar a trabalhar aos dez anos - o pai faleceu mais ou menos por essa altura, ele tinha de assegurar a subsistência da mãe. Fez muitas coisas, desde trabalhar em moinhos, em tonéis de vinho, até em minas (era a altura do volfrâmio). Não sei se teve grande infância, mas tornou-se adulto aos dez anos.

Entrou na vida mais urbana, digamos, quando foi para o serviço militar, aos 17 ou 18 anos. Gostou e acabou por fazer carreira. A certa altura ingressou na Guarda Nacional Republicana, começou de baixo, como guarda, cabo, sargento, o que já era uma grande coisa. Encontra a minha mãe precisamente quando está no quartel, em Lisboa, a ajudar no serviço da messe, e vai comprar mantimentos ao Mercado da Ribeira, onde a minha mãe estava com umas tias a vender. Estamos a imaginar a cena: o Mercado da Ribeira, que ainda lá está, e alguém fardado, que vai sempre ao mesmo lugar da hortaliça e da fruta, onde está uma menina de vinte e poucos anos a quem pisca o olho. Acabaram por falar, é assim que começam os namoros, e casaram. Eu sou uma espécie de mais-valia, o filho mais velho de três rapazes.

Nasce em Lisboa...

Nasço em Lisboa. A primeira casa dos meus pais era ali perto do mercado, penso que casaram na igreja de São Paulo, mesmo ao lado. Mas lembro-me da minha casa de Lisboa, perto do quartel do da Ajuda, onde o meu pai estava colocado, que era na Calçada do Galvão.

Até aos sete anos a minha infância foi passada muito perto de um grande centro cultural: os Jerónimos [Mosteiro], a Torre de Belém, o monumento aos Descobrimentos, o Jardim Colonial, agora Jardim Botânico Tropical. Nascido de pessoas lá da terra das berças, nunca senti afinidade com o interior, porque nasci no meio da cidade. E nasci na Maternidade Alfredo da Costa, porque já nos anos 1956 havia essas condições, em Lisboa não se nascia em casa. E nasci um rapaz grande.

"A minha mãe era de Trás-os-Montes, de uma aldeia muito pequenina, perto de Chaves, e o meu pai era de uma aldeia na zona de Peso da Régua, no vale do Douro. A minha mãe é da terra da água, o meu pai é da terra do vinho"

Sobre as afinidades, ia "à terra" nas férias grandes, durante  infância?

Sim, ia à terra da minha mãe e à terra do meu pai, e tenho experiências longínquas na memória de um comboio que nunca mais lá chegava...

Agora é igual.

Mas agora é só quando há comboio, porque às vezes há greve [ri]. Por acaso, comboio para a terra da linha mãe já não há, acho eu, fechou-se a Linha do Tua. Mas aquele ambiente... As pessoas viviam em condições muito difíceis, faziam uma agricultura de subsistência, quer no Douro, quer em Trás-os-Montes. Com certeza havia coisas muito bonitas, as vinhas, o Marão, mas também havia muito calor, muita poeira, muito sofrimento, via-se nas pessoas.

O meu pai ainda manteve alguma ligação, tinha lá casa e quando se reformou ia lá tomar conta das coisas. Mas depois já não tinha capacidade para lá ir  - ele gostava, sentiu sempre aquela ligação à terra -, perguntou-nos se queríamos ficar com alguma coisa. Dissemos que não e vendeu o pouco que tinha. O meu lado campesino e bucólico nunca foi muito cultivado.

"No 25 de Abril estou no meu primeiro ano universitário, numa aula de Análise Matemática. [...] Éramos quatro no curso de Física, três rapazes e uma rapariga"

Disse que viveu em Lisboa até aos sete anos. Foi nessa altura que se mudou para Coimbra?

Quando eu tinha sete anos, o meu pai foi colocado em Coimbra - há pouco falei no fator sorte, às vezes é preciso ter sorte, mas também é preciso saber aproveitar as oportunidades. Fiz a primeira classe ainda em Lisboa, o resto do ensino primário e secundário, na altura chamava-se liceu, em Coimbra, numa escola a 100 ou 200 metros de casa, a universidade a 500 metros.

Tive boas escolas, um dos melhores liceus e uma das melhores universidades nacionais. No 25 de abril, era uma quinta-feira, estou no meu primeiro ano universitário, numa aula de Análise Matemática. Apesar de ter havido alguma confusão, e depois o caos do PREC [Processo Revolucionário em Curso], éramos quatro no curso de Física, três rapazes e uma rapariga.

Mal acaba o curso, em 1978 - na altura não havia mestrados, a licenciatura era cinco anos -, dizem-me que há uma oportunidade de ir para o estrangeiro fazer um doutoramento. Convidaram-me para ser assistente na Universidade de Coimbra, porque tinha boas notas, mas passado um ano estava com uma bolsa na Alemanha [Universidade Goethe, em Frankfurt], de onde vim doutor em 1982, ainda Portugal não tinha entrado na União Europeia [CEE]. Foram-me dadas oportunidades, e estou grato por isso, mas também as soube aproveitar. Nunca me senti menor que os outros, menos capaz, em Portugal ou noutros países.

Portugal e Alemanha, sul e norte da Europa. Que diferenças notou?

Havia uma diferença de organização. Há um choque, horas são horas, uma pessoa atrasa-se três segundos e nota, pelo olhar do outro, que está três segundos atrasada. E isso funciona. Foi lá que aprendi que a sociedade vive melhor se acertar os tempos e se tiver melhores sistemas organizativos.

Do ponto de vista dos conhecimentos adquiridos, a Física é universal, sabia o suficiente para poder ter a minha bagagem, encher mais a mochila cerebral, e regressar. E fiz um percurso de 44 anos no ensino, saí por vontade própria aos 65 anos, quando me pude reformar, há dois anos.

Saiu, mas não deixou de divulgar a ciência, de ensinar.

Saí porque acho que devo dar lugar aos novos, tal como muito novo tive oportunidades que hoje não se tem. Gostava muito que gente muito nova, como eu era, e com talento, mais do que eu tinha, tivesse hoje oportunidades que não está a ter.

Por várias circunstâncias, consegui entrar nos jornais, publicar livros, entrar nas rádios e televisões, e perceber que havia um público além dos meus estudantes universitários, que queria que eu lhes desse atenção. A ensinar também se aprende. Aliás, a melhor maneira de aprender é a ensinar.

Um ensino mais livre, no sentido de poder ir ao encontro de outro público, mais novo e mais velho, mas mais diverso. Na universidade tenha alunos de 18, 19 ou 20 anos, tenho de dar Mecânica Quântica II, campos eletromagnéticos, essas coisas. Cá fora tenho outras chamadas: "Porque é que o céu é azul?", perguntam os mais pequeninos, "O que é isso dos robots inteligentes?" ou "Como é que as alterações climáticas vão mudar o mundo?", querem saber os mais velhos.

Há uma quantidade de questões que são preocupações sociais, como os perigos das combinações genéticas ou se é possível fazer novas espécies. E uma pessoa com a minha preparação científica pode dar respostas e ajudar a pensar, quanto mais não seja a não acreditar em tudo o que ouvimos.

Um defeito que encontro na escola de hoje, voltando ao tema escola, é que ensina factos que as pessoas decoram e respondem nos testes ou nos exames, mas não ensina o verdadeiro espírito da ciência, que é fazer perguntas e procurar saber se as respostas que damos estão corretas ou se ainda se pode ir mais além. O espírito da ciência é inquietar.

"Gostava muito que gente muito nova, como eu era, e com talento, mais do que eu tinha, tivesse hoje oportunidades que não está a ter"

Porquê a Física? Podia ter escolhido outro ramo da ciência.

De facto, não tinha físicos em casa, não havia sequer licenciados na família. O meu pai perguntou-me: "O que é que vais fazer em Física?", como quem diz, para o que é que serve? Dei a única resposta honesta que podia dar: "Não sei, não faço a mínima ideia, mas agrada-me, atrai-me". Fui atrás do desconhecido, como às vezes vamos atrás de alguma coisa por impulso, por instinto. Às vezes apanhamos desilusões, mas a Física nunca me desiludiu, foi uma bela senhora pela qual me apaixonei e continuamos juntos até hoje.

A propósito de mecânica quântica, descobri há pouco que a sua tese de doutoramento é sobre a divisão do núcleo atómico...

Talvez possa explicar. Dentro da Física, escolhi a Física Teórica, porque sempre fui muito melhor - o que não quer dizer que seja muito bom - com a cabeça do que com as mãos; não sei apertar um parafuso nem atarraxar uma lâmpada, diz a minha mulher, que é muito melhor em parafusos e em lâmpadas do que eu. Não sou o protótipo da pessoa que arranja as coisas em casa.

Os físicos experimentais têm essa capacidade de mexer nas coisas, desenvolver aparelhos. Eu não, é mais a questão da imaginação, da modelação do mundo. Os meus instrumentos são os computadores, fazer jogos de simulação, imaginar o mundo segundo certas regras e depois analisar os resultados. Tornei-me físico teórico.

Na altura, talvez ainda devido às leituras de juventude, ao espírito dos tempos, interessava-me muito a energia nuclear e os núcleos atómicos. Até porque não aparecia muito nos livros escolares. Falava-se em energia nuclear, mas núcleos era quase só na Química. Na Física era as alavancas, as roldanas e outros instrumentos de tortura, coisas que não me entusiasmavam muito.

"A Física nunca me desiludiu, foi uma bela senhora pela qual me apaixonei e continuamos juntos até hoje"

Pergunto exatamente porque a discussão sobre o nuclear voltou a estar na berra, por diversos motivos, do receio da bomba atómica à produção de energia 'limpa'.

Sim, está muito na berra outra vez, em parte por causa do filme "Oppenheimer" [físico que liderou o Projeto Manhattan, que leva à bomba atómica], que fala das primeiras armas atómicas (ou nucleares, porque quando se diz atómicas, quer-se dizer nucleares).

Mas há várias razões para se voltar a falar de núcleos, uma delas é a energia nuclear - e não estou a defendê-la, estou só a dizer que volta a ser discutida, porque é uma energia limpa, não emite dióxido de carbono, o responsável pelo efeito de estufa. E também por causa das ameaças da guerra, como na Ucrânia, e da eventual utilização de armas de destruição maciça.

Faço um projeto de tese antes de Chernobyl, o grande acidente numa central nuclear, em 1986. Embora não tivesse depois tido grande continuidade, a tese é sobre a cisão de um núcleo de urânio. Tudo teórico, num modelo para computador, numa altura em que não havia computadores pessoais, havia uns monstros, trabalhei na Alemanha com computadores melhores do que aqui, em que passava uns cartões que eram engolidos e esperava horas que aquilo regurgitasse as respostas. Fazia modelos da cisão.

O problema teórico que considerei foi saber qual a resistência ao movimento, porque há a força que puxa e as resistências, eu queria saber o efeito de inércia na separação. Publiquei um artigo da tese de doutoramento e pouco mais, até por causa da falta de popularidade da Física Nuclear. O que é uma pena, porque a Física Nuclear é um grande ramo da Física, com enormes aplicações na saúde, por exemplo.

Ou seja, essa coisa do nuclear de má fama devia dar lugar a discussões mais abertas sobre as suas aplicações?

Sim, é um exagero, uma má fama muito injusta. A radiologia nuclear, por exemplo, serve para fazer diagnósticos e tratamentos, como do cancro. A ressonância magnética e nuclear é uma técnica recorrente e que não tem nada de radioatividade. Mas como a palavra nuclear tem má fama, só lhe chamam ressonância magnética, a palavra nuclear não está lá.

Depois de Chernobyl houve Fukushima [2011], ainda hoje temos um problema complicado para resolver. Mas abandonei a Física Nuclear passado pouco tempo, embora depois a tenha vindo a aplicar noutros domínios, porque a Física tem esta característica de unidade e de coerência.

O Oppenheimer, que foi diretor científico do projeto da bomba atómica, também trabalhou em estrelas, em problemas do Espaço. A Física é a tentativa de encontrar uma unidade naquilo que é a enorme diversidade da natureza. Parece-nos que nada tem a ver com nada, que é tudo diferente, mas só há três partículas essenciais e quatro forças fundamentais. Tudo em doses e combinações diferentes. E isso é espantoso.

"Não sei apertar um parafuso nem atarraxar uma lâmpada, diz a minha mulher. Não sou o protótipo da pessoa que arranja as coisas em casa"

E também dá aquela imagem de sucessão de descobertas, um cientista aos ombros do outro: Galileu, Newton, Einstein - que, aliás, escreveu uma carta ao presidente Roosevelt por causa da bomba atómica.

É verdade, porque tinha medo que Hitler pudesse fazer uma arma com isso. E Hitler era louco - tinha a parte irracional muito desenvolvida, para dizer o mínimo. Einstein sempre defendeu os seus irmãos judeus, embora nunca tenha entrado numa sinagoga para rezar.

Quando vieram ter com ele com a possibilidade desta energia poder ser utilizada pela Alemanha para dominar o mundo, Einstein escreve a Roosevelt, para avisar do perigo, mas nunca se envolveu diretamente no projeto. Foi essa carta, no fundo, que esteve por trás do Projeto Manhattan, que era secreto.

Mais tarde, perante a tragédia dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki - ainda hoje nos podemos perguntar se fazia sentido, sobretudo quando a guerra já estava próxima do fim, haver aquele sacrifício de vidas humanas -, Einstein teve um sentimento que é muito judaico-cristão: culpa. E disse: "Fui eu que carreguei no botão". Mas esse é o lado muito humano de saber qual é a responsabilidade individual. E Oppenheimer, que acabou de certo modo condenado e perseguido, também havia de ser contra a bomba de hidrogénio.

Evocou a imagem dos cientistas uns aos ombros dos outros, que é de Newton: agora estão muitos a tentar subir aos ombros de Einstein. Mas ele está muito alto, é muito difícil. É esta a pirâmide humana que ambicionamos, tendo sempre a certeza, e o caso da bomba nuclear ensina-nos muito, que não se trata apenas de saber mais; trata-se de ter a sabedoria suficiente para saber usar esse conhecimento.

Hoje fala-se muito da ética no desporto, da ética na política, da ética nos negócios, mas não se ouve falar da ética na ciência. Porquê?

A ética é precisa em todo o lado. E se não se fala da ética na ciência, devia-se falar, porque os cientistas também precisam de ética. A ciência precisa de ética e precisa de se saber responsabilizar. Os cientistas podem fazer certas coisas, mas não devem fazer certas coisas. Devem aventurar-se em todos os domínios do conhecimento, mas não devem, com o seu conhecimento, ter ações que causem prejuízo à humanidade. E têm uma responsabilidade especial, porque têm domínio do conhecimento e obrigação de ajudar a zelar pelo seu bom curso.

Já agora, a ética não é apenas deles, porque quem vai usar esse conhecimento, em seu beneficio ou em seu prejuízo, é a humanidade. Já vimos cientistas ao serviço do poder pessoal, muitas vezes. Como aconteceu no caso do nazismo, do estalinismo, em que os cientistas eram usados com interesses específicos, para dizer o mínimo.

Daí a necessidade de ligarmos a ciência à sociedade. Mas o importante é repetir a mensagem de que os cientistas são parte da sociedade e só trabalham porque têm um mandato da sociedade, que não é para satisfazerem a sua curiosidade da forma que bem entenderem. Têm de dar contas à sociedade sobre as aplicações, para a sociedade poder escolher.

Sabemos que a ciência não resolve tudo. Temos uma vacina para a Covid, mas como é o acesso à vacina? Paga-se, não se paga, é para os ricos, como é distribuída, quem é vacinado em primeiro lugar? Isto já não são problemas da ciência, são da ética, da política, da economia. E exigem a participação de todos.

Há pouco, quando falámos da sua infância e juventude, não perguntei, mas sei que gostava de pintura (e que é daltónico). Continua a pintar?

Ser daltónico é genético, um defeito de origem - e sabemos até que são as mães que transmitem esse defeito, apesar de as mulheres muito raramente serem daltónicas. Calhou-me na lotaria genética.

Já não pinto, mas sim, em jovem ganhei prémios de pintura, aos 16 anos até ganhei um concurso internacional para jovens sobre a  temática ferroviária, fazia anos a União Internacional dos Caminhos de Ferro. Fez um concurso em Portugal, que ganhei, e depois fez um concurso com os melhores de cada país, que também ganhei.

"Perante a tragédia dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, Einstein teve um sentimento que é muito judaico-cristão: culpa. E Oppenheimer também havia de ser contra a bomba de hidrogénio"

Isso não sabia.

Foi. A pintura até saiu numa revista suíça. E a primeira entrevista que dei a um jornal foi aos 16 anos, ainda no liceu, por causa disso: "Fala no seu projeto o estudante de Coimbra que ganhou um primeiro prémio num concurso internacional de arte". Cá estou eu [mostra foto de recorte de jornal], camisola de gola alta, que se usava na época. "Com os seus 16 anos, pintor, investigador, jornalista, estudioso de problemas de astronáutica, cioso de conhecimento e de cultura, é um exemplo e um caso raro nos nossos dias", diz o jornal.

É de 17 de dezembro de 1972. Começam a fazer-me perguntas e eu dou uns bitaites: "Nunca me dedicaria exclusivamente à arte, porque no nosso país ainda não se pode viver exclusivamente da arte. Procuro formar-me em Engenharia ou Física para depois trabalhar num qualquer organismo científico entregue à investigação". E não é que acertei? Ainda sou esta pessoa, mas já não sou.

Já viajamos no espaço, no tempo ainda não. Mas levamo-nos sempre connosco.

O passado é irreversível, não se volta lá. Não acredito no regresso ao futuro ou no regresso ao passado. Mas há esta viagem no tempo que acabo de fazer e que nos diz a pessoa que fomos. E ainda somos um bocadinho a pessoa que fomos, mas, felizmente, somos outros. Porque temos outra experiência do mundo. E eu não tenha experiência de artista, tenho experiência de ser físico.

Na altura respondeu que em Portugal não se podia viver da arte. E hoje, pode-se viver da ciência em Portugal?

Quando se tem 16 anos diz-se tanta asneira, sabia lá eu se se podia ou não viver da arte. E sim, pode-se viver da ciência, tanto que eu vivi. Digo sempre aos jovens que devem seguir aquilo que os atrai, que não pensem no aspeto material, porque para os melhores haverá sempre lugar. Pode é não ser aqui e ser noutro sítio do mundo.

E, infelizmente, é isso que está a acontecer em Portugal, que tem dado formações ao mais alto nível na ciência, e não só, mas não está a dar oportunidades. Não está a haver no campo da ciência a renovação geracional que devia funcionar, não apenas em favor dos jovens, mas em favor de todos.

A sociedade só pode progredir se houver impulsos criativos, mais desenvolvidos nos jovens. Falo por mim, tinha muito mais capacidades criativas - hoje tenho outras - quando tinha 20 ou 30 anos, tinha muito mais atrevimento, até. E é esse atrevimentos que nos leva a ousar. Sempre foi assim, os jovens sempre tiveram alguma irreverência. Hoje, além disso, têm mais escolaridade e acesso à informação, o que lhes alarga os horizontes. Têm o mundo nas mãos.

É uma pena que o país que lhes deu essa preparação, muitas vezes bolsas para chegarem mais longe, não lhes dê vidas que tenham correspondência. Alguns estão a usar a preparação que têm noutros países, o que é excelente. Estão no mundo, estão connosco, o mundo é global. Isso é bom, mas interrogo-me porque não podem ser eles a escolher entre sair e ficar em Portugal, onde têm as suas raízes, onde há coisas muito boas e coisas muito más, como a desorganização, a falta de desígnios nacionais, uma estratégia para desenvolver a ciência, que devia juntar as pessoas em vez de as separar. Mas não vejo isso nas discussões políticas.

""A Fábrica de Cretinos Digitais", [um livro] que diz que os miúdos estão a regredir em termos cognitivos por causa do tempo que passam nos smartphones, tablets e computadores"

Ainda sobre os jovens, uma coisa que tínhamos, e de que até nos fartávamos, era as férias grandes, às vezes intermináveis. Hoje não há vazio, vive-se numa voragem. Faz falta parar?

Percebo o que diz, e tenho de dar nota daquelas férias que nunca mais acabavam e que, no meu caso, serviam para ler livros que ia buscar às bibliotecas e que expandiam os meus horizontes mentais, mesmo quando os horizontes geográficos não mudavam. Tenho bastantes saudades desse tempo em lia um livro em dois ou três dias, depois outro e mais outro.

Penso que às vezes não sabemos gerir o nosso tempo. Os jovens têm mais dificuldades com isso, porque têm muitas solicitações. Mas é preciso uma pessoa saber organizar-se e também é preciso fazer escolhas. Por vocação natural sou mais de ler do que de ver filmes. E tenho de abdicar de outras coisas para ler um livro.

Quanto às crianças, acho que há um enorme exagero da utilização de ecrãs. Há até um livro de um neurocientista francês [Michel Desmurget], "A Fábrica de Cretinos Digitais", que diz que os miúdos estão a regredir em termos de capacidades intelectuais por causa do tempo que passam nos smartphones, tablets e computadores, porque só respondem a estímulos e não desenvolvem outras partes do cérebro. É como um vício.

Se calhar é mais fácil largar um livro, mas o livro dá-nos um gozo imenso se estivermos metidos na história, ser nos deixarmos prender pela sucessão de palavras, se nos pusermos a imaginar como vai acabar. Sou quem sou porque li os romances de Júlio Verne e outros romances quando era miúdo, se fosse ler agora não teria o mesmo impacto.

Carlos Fiolhais
O porquê das coisas créditos: Pedro Santos

O homem é uma criação de Deus ou Deus é um a criação do homem?

Bem, não sei explicar a questão de Deus, é das mais difíceis. Mas sei que há pessoas que têm necessidade de Deus. Se têm essa necessidade, tem de ser uma criação do homem, no sentido em que tem de lhes preencher um vazio. Se o homem é uma criação de Deus, tenho mais dificuldade em aceitar, porque significa uma existência divina, o criador de todas as coisa, implica dar um salto, aquilo a que se chama uma profissão de fé.

Mais de 80% das pessoas no mundo são religiosas, respeito muito essa dimensão da humanidade, mas não sinto isso em mim. Não digo isto como cientista, digo como ser humano. Mas na minha experiência individual não tenho essa necessidade de acreditar num ser que é responsável por tudo.

A questão de Deus é uma questão muito individual. E, para ser rigoroso, a coisa não é assim tão a preto e branco; nem todos acreditam sempre, nem todos duvidam o tempo inteiro. Quando se fala de transcendência, não tem de ser necessariamente de religião, pode ser uma coisa espiritual. Todos os homens são, de certa maneira, seres espirituais.

A ciência e a religião têm coisas em comum. Ambas são feitas por homens e ambas tentam resolver mistérios. E podemos estar unidos por isso. Infelizmente, os mistérios que são os mistérios do espírito muitas vezes afastam as pessoas. Devíamos pensar mais no que nos une do que no que nos separa. A ciência também precisa dessa ligação entre as pessoas, a ciência de um só indivíduo não existe. A religião também se faz de igrejas, constituídas por grandes comunidades de crentes. Se calhar há coisas que podemos fazer juntos. Infelizmente, temos hoje guerras religiosas terríveis.

"Gosto de livros, de escrever, de traduzir, de editar. Há pessoas que plantam plantas, eu planto livros."

Três objetos que não dispensa e porquê?

O livro, estávamos a falar deles, sou viciado. Um dia sem um livro novo é um dia infeliz. Às vezes são oferecidos, todos os dias o carteiro vem a minha casa e traz livros. Até é engraçado, já falo sobre livros com o carteiro. Gosto de receber, dão-me muitos e eu também dou. Quando gosto muito, muito compro repetidos para oferecer. Gosto de livros, de escrever, de traduzir, de editar. Há pessoas que plantam plantas, eu planto livros.

Gosto de viagens, da descoberta do que está mais longe, paisagens naturais e humanas, até para me confrontar com a tal paroquialidade de que falávamos no início. Às vezes ver um pôr do sol diferente, outra gastronomia, outra cultura. Gosto de me perder em cidades, algumas onde já fui. Por exemplo, Madrid, Londres ou Nova Iorque são sítios encantatórios, porque a vida está sempre a mudar, há uma nova exposição, uma cena de rua. Para isso preciso de um meio de transporte, seja carro, comboio ou avião. Tenho carro e sei que estou a contribuir para o dióxido de carbono, devia usar mais transportes coletivos, mas também aí Portugal não está bem organizado.

Se calhar o terceiro objeto sem o qual não posso passar, e já falámos muito dele hoje, é o computador. Todos temos um computador no bolso, o telemóvel, tão prático para tudo, até para ir buscar uma notícia de um jornal regional de 1972. Já me aconteceu esquecer-me do telemóvel de manhã e voltar para trás, sinto-me despido. E eu sou do tempo das chamadas de cabine, de ir aos cafés telefonar, perguntar quanto é o impulso. E não era infeliz, mas o telemóvel tornou-se indispensável.

Para terminar, se pudesse ser congelado hoje e acordar daqui a 100 ou 200 anos...

Não quero, é preciso ter a tranquilidade de acreditar na morte.

Mas o que quero saber é qual a primeira pergunta que faria, o que quereria saber?

Não estou interessado numa geringonça que faça isso, porque a morte faz parte da vida. Mas, uma pergunta que poderia fazer é se existe vida além da Terra e se essa vida é inteligente. Também é curioso saber como mudaremos se algum dia soubermos que existem outros seres, quem sabe seres capazes da ciência. E será que são também seres espirituais?