Para Kalya, este não é mais um dia como os outros. Numa tarde de domingo de sol tímido, passeia vagarosamente entre destroços de viaturas militares russas carbonizadas expostas na praça Mykhailivska, no coração de Kiev, cada uma contando a sua história de morte e destruição, que acompanha também o quotidiano desta ucraniana de 38 anos e de todos os seus concidadãos.
Passaram-se quase dois anos desde que as forças russas invadiram a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, e dirigiram-se para Kiev, mas sem conseguir ultrapassar os arredores, acabando por partir um mês mais tarde, mais a sua ameaça não cumprida de conquistar a capital em menos de uma semana, deixando um massacre de civis nas cidades satélite de Bucha e Irpin e as carcaças dos seus carros de combate repelidos pelas forças ucranianas, alguns dos quais agora expostos no coração da capital.
“Quando olho para eles, sinto raiva”, desabafa a ucraniana de 38 anos, contemplando a exposição de viaturas destroçadas. “Mas também um enorme orgulho e um agradecimento do fundo do coração aos militares que nos defendem na linha da frente para que possamos hoje estar aqui no centro de Kiev”, acrescenta.
É disso que se trata quando se fala das rotinas de Kalya, funcionária numa empresa internacional, que foram testadas na primavera de 2022, na tentativa de recuperar uma vida normal na sua área de residência na margem esquerda do rio Dnieper, lidando com a lei marcial, o recolher obrigatório e os raides aéreos russos, que assumiram uma proporção sem precedentes sobre a capital no final do ano passado.
Nessa altura, a garagem da mulher ucraniana tornou-se num lugar de pernoita e a estação de metro mais próxima o seu refúgio temporário, ao mesmo tempo que a experiência de dois anos de guerra a ensinaram a distinguir os alarmes sonoros acessórios daqueles que sinalizam uma ameaça bem real: “Sobretudo quando sabemos estar na presença de combates aéreos e nenhum lugar é suficientemente seguro. À noite, é aterrorizante”.
Mas Kayia recusa-se a dar-se por vencida: “Claro que estou cansada e farta. Mas não vou dar esse prazer aos malditos russos”, assegura, e ainda menos mostrar sinais de desistência de apoio aos soldados ucranianos na frente de combate e “que estão seguramente em piores condições”.
Oleg pode dizer algo sobre o assunto. Com uma pesada mochila às costas e vestido à civil, o militar de 45 anos circula entre as ruínas de rodas e lagartas: “É disto que se faz o meu dia-a-dia na frente”, comenta.
O soldado, natural de Kharkiv, no leste da Ucrânia, foi testemunha dos confrontos mais violentos da guerra, incluindo Bakhmut, na província de Donetsk, e está de licença de 15 dias, em trânsito por Kiev antes de seguir para a Alemanha, para onde mandou a mulher e o filho de 13 anos em 24 de fevereiro de 2022. No mesmo dia, o antigo engenheiro mecânico ofereceu-se como voluntário para o Exército e ignora quando dele sairá.
“Vejo muitas coisas terríveis. Muitos massacres, tenho saudades dos meus amigos que partiram. Durmo mal à noite. Isto não é para mim”, afirma Oleg, que, tal como toda a gente, não vê uma saída para o conflito por muito que a deseje. Do mesmo modo que não encontra outra alternativa que não seja vencer a resignação e as tropas invasoras enviadas pelo Presidente russo: “Putin que diga ao que venha e nós mostramos-lhe quem somos”.
Estão na praça um camião BMM “Linza”, um veículo blindado TIGR M, tanques de vários modelos, restos de um míssil de fabrico soviético Tochka- SS-21 Scarab, que compõem a exposição promovida pelo Museu Nacional de História Militar, adaptando a ideia semelhante e que foi então extremamente popular de exibir, a pretexto do dia nacional da Ucrânia, em 24 de agosto de 2022, equipamento militar destruído como prova da queda do mito de invencibilidade russa.
A visita aos carros destruídos tornou-se num passeio familiar de domingo em Kiev, ficando também em exibição mensagens escritas pelos visitantes como “o Dombass é ucraniano”, “Putin Kaput” e promessas de morte aos invasores russos e ao líder do Kremlin, ao lado de inscrições de cidades de onde foram repelidos em Kiev, Kharkiv, Sumy, Kherson e Chernihiv, e de pequenas bandeiras nacionais amarelas e azuis.
Mas ali também se recorda o preço pago em sangue civil ucraniano. “Este carro foi atingido em Bucha. Morreu uma família inteira. Duas crianças”, descreve Buslan, um veterano de 38 anos de casaco camuflado, apontando para uma viatura verde perfurada por balas de metralhadora.
Buslan vende bandeiras nacionais para apoiar os seus antigos camaradas de armas, conta, enquanto mostra a cicatriz de um ferimento em combate num pulso. “Neste outro carro também morreram duas crianças. Que se f… Putin”, grita com vigor, abafando a melodia de uma canção patriótica cantada de viva voz por Ben Stewart.
“Benya”, como é conhecido pelos amigos na Ucrânia, é um cantor ‘folk’ norte-americano, que começou há quatro anos a trabalhar num projeto de fusão de música tradicional ucraniana, bielorrussa e dos Apalaches, até que começou a guerra em grande escala.
“Fiquei paralisado de tristeza. Trocava mensagens com os meus amigos na Ucrânia e via fotografias deles a fazerem ‘cocktails Molotov’ e coisas do género, coisas verdadeiramente absurdas para um americano e isso motivou-me muito a escrever esta canção”, recorda.
Não só. O cantor do Ohio mudou-se desde setembro para Kiev, onde dá aulas de inglês, ‘workshops” de música ‘folk’ e concertos regulares para as tropas na frente. Hoje, está a gravar um vídeo promocional da sua nova canção, “Mighty Big War”, uma versão reescrita de “So Long It’s Been Good to Know You” de Woody Guthrie, a ser lançada nas plataformas de ‘streaming’ por ocasião do segundo aniversário da invasão russa.
As receitas revertem para a organização não-governamental UA First Aid e ‘Benya’ já juntou cem mil dólares com a suas canções e ativismo, a juntar aos cerca de um milhão angariados desde 2022, segundo Les Yakymchuk, membro da instituição de apoio médico às tropas ucranianas, e que foram convertidos em abastecimentos de ‘kits’ de primeiros socorros, torniquetes, equipamentos de transfusões sanguíneas e formação dos soldados.
O cantor promete continuar a fazer a sua parte “até que seja vencida esta guerra”, antes de embalar de novo as primeiras estrofes da sua nova composição sobre “um Hitler dos tempos modernos” que invadiu a Ucrânia.
Por muito que se esforcem por viver o seu quotidiano em paz, os sinais de um país em guerra estão em toda a parte, na proliferação de homens fardados a circular pela cidade, na visão ocasional de um estropiado em combate, nos monumentos protegidos dos bombardeamentos, e noutros ainda mais simbólicos.
Junto à praça Mykhailivska e nos muros azuis do mosteiro de São Miguel, estão expostas milhares de fotografias de militares ucranianos caídos desde o levantamento pró-russo no Dombass, a que se somam outras de imagens de mais milhares de soldados mortos a partir de 22 de fevereiro de 2022, onde as flores deixadas por familiares e amigos estão mais frescas.
É destas cicatrizes que vive Kiev, mais antigas como o monumento às vitimas do Holodomor (Grande Fome, nos anos 30), ou ainda abertas pelas recentes campanhas russas, nas fotos sob as cúpulas douradas do Mosteiro de São Miguel ou nas milhares de pequenas bandeiras sinalizando cada morto ucraniano e de outras nacionalidades, depositadas num jardim junto à praça Maidan, palco da revolta que há uma década virou a Ucrânia irreversivelmente para o ocidente.
É perante a imagem dos mortos que Kalya se curva e chora: “Foi-lhes negada uma boa vida. Eles não mereciam estar nesta parede”.
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