Esta é uma das recomendações da equipa coordenada pelo procurador da República jubilado Rui do Carmo depois da análise de um caso de violência de doméstica em que após 14 queixas uma professora acabou por ser morta pelo companheiro a 08 de janeiro 2016, tendo sido condenado a 21 anos de prisão.

Durante mais de seis anos de vida em comum foram iniciados 14 procedimentos criminais causados por comportamentos violentos do companheiro da vítima, nos quais eram também visados os restantes membros do seu agregado familiar e outros membros da comunidade.

Mas, explica a equipa na sua análise, todos os inquéritos iniciados por agressões vieram a ser arquivados sem quaisquer consequências para o agressor, exceto dois: um de 2009, por violência doméstica, que foi suspenso provisoriamente e arquivado em 2010 após cumprimento de obrigações e outro de 2015, também por violência doméstica, no qual foi condenado em 2016, já depois do homicídio da professora.

A Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) considera que a condescendência para com o agressor, a falta de proatividade na investigação criminal e da inconsequência da ação judiciária, resultou que a proteção da vítima não foi conseguida e que o agressor e homicida foi fortalecendo um sentimento de impunidade.

O caso analisado envolveu uma criança, o neto da professora que sempre viveu ao seu cuidado vivenciando o ambiente de violência que culminou com o homicídio da avó quando tinha 13 anos.

Para além dos contactos havidos no decurso dos procedimentos de proteção e promoção dos direitos, primeiro pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens e depois, em 2010, pelo tribunal, não existem referências a qualquer apoio prestado a esta criança ou a medidas efetivas para preservação da segurança e promoção das condições adequadas tendentes ao seu desenvolvimento saudável.

Esta ausência de intervenção acontece apesar de a vítima ter manifestado reiteradamente as suas preocupações quanto à segurança do neto no contexto do ambiente de violência existente no agregado familiar.

Esta criança presenciou agressões de que a sua mãe e particularmente a sua avó foram vítimas, incluindo as que acabaram no homicídio, viu objetos e equipamentos que utilizava serem destruídos e foi alvo de ameaças graves por parte deste.

Segundo a equipa não só não foram avaliadas as consequências psicológicas destes comportamentos, de que foi vítima, como não lhes foi dada a devida relevância criminal.

"Estes são comportamentos que consubstanciam maus tratos, cometidos contra a criança (nomeadamente sucessivos, intensos e graves maus tratos psicológicos sempre que era obrigada a presenciar as agressões de que a mãe e a avó eram vítimas) e que integram a prática do crime de violência doméstica", refere a equipa.

Contudo, assim não foi considerado nos procedimentos criminais que se foram sucedendo.

Face a esta análise a equipa liderada por Rui do Carmo recomenda à Assembleia da República que seja ponderada a necessidade de clarificação do texto do artigo 152.º do Código Penal, para que afirme expressamente que o menor de idade que presencia maus tratos é também vítima do crime de violência doméstica.

Segundo a equipa, com frequência não se atende a que essa conduta praticada na presença de criança ou jovem pode constituir um mau trato psicológico de que este é vítima e, portanto, configurar a prática de um autónomo crime de violência doméstica.

O artigo 152 refere que "quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".

Refere ainda o mesmo artigo do Código Penal que o agressor é punido com pena de prisão de dois a cinco anos se praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

Nas suas recomendações, o grupo dirige-se ainda ao Ministério Público e aos Órgãos de Polícia Criminal (OPC) considerando que é fundamental que se desenvolva a capacidade de implementação do “Manual de Atuação Funcional a adotar pelos OPC nas 72 horas subsequentes à apresentação de denúncia por maus tratos cometidos em contexto de violência doméstica” enquanto instrumento de grande importância no combate aos maus tratos praticados nas relações familiares, de intimidade e coabitação, e na proteção das vítimas destes comportamentos.

À Procuradoria-Geral da República a equipa recomenda que deve ser ponderada a pertinência de atribuir aos magistrados do Ministério Público a responsabilidade de, no início do inquérito, promover as iniciativas necessárias tendo em vista fomentar a comunicação, colaboração e articulação entre todos os serviços e entidades para que seja garantida uma ação continuada, planeada e coerente no apoio e cuidado à vítima, na proteção de crianças e jovens ou de maiores vulneráveis e no tratamento do agressor.