De muletas e uma ‘bota’ a proteger o pé partido, Valéria, brasileira de 55 anos, recorda à Lusa como foi obrigada a pedir ajuda para não ficar a viver na rua.

“Em fevereiro estava trabalhando a recibo verde e quando foi o início da pandemia eu me vi sem emprego, então a única opção que eu tive, porque não tinha como pagar a renda, foi ir para o alojamento”, conta, referindo-se ao centro de emergência para sem-abrigo do Casal Vistoso, onde a Lusa a entrevistou em maio.

Agora, cinco meses depois, e já num quarto na Pousada da Juventude do Parque das Nações, entretanto também transformada em centro de acolhimento para sem-abrigo, está inscrita no centro de emprego e envia currículos.

Espera até dezembro recuperar do pé partido e conseguir uma resposta positiva “para pelo menos sair do alojamento” e voltar a ter um quarto para morar.

“Era copeira, sempre trabalhei como copeira, nunca fiquei sem emprego aqui”, recorda, retratando-se a si própria como “uma das vítimas da pandemia” e aspirando a “voltar à vida normal” que tinha desde que há quase três anos chegou a Portugal.

“Tenho esperança de logo, logo voltar ao trabalho”, repete, sentada na cama coberta com um 'édredon' branco no quarto que partilha há algumas semanas com Solange.

Valéria (E) e Solange no seu quarto no Centro de Acolhimento de Emergência para Sem-abrigo na Pousada da Juventude do Parque das Nações, em Lisboa, 1 de outubro de 2020. créditos: MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Francesa, com quase 40 anos, Solange viveu quase 20 anos em Espanha e veio para Portugal “para um trabalho numa quinta”.

“Mas, não acabou bem”, conta, tentando falar em português, língua que ainda tem alguma dificuldade em compreender e, mais ainda, em falar.

Voltar para Espanha ou para França não faz parte dos seus planos e diz querer arranjar um emprego e ficar em Portugal, “o único país da Europa” que ainda não conhece bem.

Tiago, de 18 anos, e o namorado, Ricardo, com 25, chegaram a Lisboa há pouco mais de sete meses, mas também a eles a pandemia de covid-19 fez ruir os projetos.

“Nós tínhamos chegado de Leiria e chegámos aqui [a Lisboa] em março. No início da pandemia, tinha uma casa com o meu namorado e ele tinha trabalho”, relata Tiago à Lusa, encostado a um muro da ‘esplanada’, com mesas e cadeiras de plástico branco, no último piso da pousada.

Na altura, apesar de ter emprego, Ricardo não tinha ainda assinado o contrato de trabalho e acabou por ser despedido.

“Ficou sem trabalho e ficámos sem casa”, resume Tiago.

Planos e sonhos continuam a ter: “Estamos a tentar arranjar emprego [para o Ricardo] e eu estou a tentar continuar os meus estudos e arranjar um ‘part-time’ para ajudar nas despesas com o meu namorado”, diz.

“Nunca pensei passar por isto… não estou habituado a isto e quero sair daqui”, acrescenta, com Ricardo ao lado, afónico devido a uma faringite, a conseguir pouco mais do que acenar com a cabeça em sinal de concordância.

Tiago (E) e Ricardo no seu quarto no Centro de Acolhimento de Emergência para Sem-abrigo na Pousada da Juventude do Parque das Nações, em Lisboa, 1 de outubro de 2020. créditos: MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Carlos Farias, coordenador do centro de emergência instalado desde maio na Pousada da Juventude do Parque das Nações, confirma que a pandemia de covid-19 ‘atirou’ novas pessoas para a rua.

“Temos aqui algumas situações que ilustram bem isso, temos pessoas que trabalhavam, perderam o emprego, deixaram de poder pagar a renda da casa ou do quarto onde estavam e a solução foi procurar apoio”, refere.

A esses juntam-se, não só na pousada do Parque das Nações, mas também nos restantes centros de acolhimento criados pela Câmara de Lisboa, outros que “já estão há algum tempo na rua”.

Para todos o objetivo é o mesmo: encaminhá-los para uma nova vida.

“Temos pelo menos duas pessoas em formação, alguns que trabalham, alguns que conseguiram emprego por eles próprios… também se fazem à vida”, diz Carlos Farias.

Atualmente, no centro do Parque das Nações, com capacidade para 52 utentes, estão 49 pessoas, algumas já desde 13 de maio, dia em que a pousada abriu portas para receber pessoas em situação de sem-abrigo.

“Não há muita rotatividade, as pessoas ficam aqui até ser arranjado um encaminhamento”, explica.

Câmara de Lisboa prepara novo centro de emergência para sem-abrigo

A Câmara de Lisboa está a preparar um novo centro de emergência para sem-abrigo que deverá estar concluído em janeiro e permitirá aumentar a capacidade de acolhimento das 220 vagas atuais para cerca de 280.

“Creio que a partir de janeiro estaremos com obra feita”, disse à Lusa o vereador responsável pelo pelouro dos Direitos Sociais, Manuel Grilo (BE, partido que tem um acordo de governação da cidade com PS).

Atualmente, a Câmara Municipal de Lisboa tem quatro centros de acolhimento de emergência para pessoas em situação de sem-abrigo, que abriram no início da pandemia, com capacidade para acolher 220 pessoas: no Pavilhão Municipal Casal Vistoso, na Casa do Largo (exclusivo para mulheres), na Pousada da Juventude do Parque das Nações e na Casa dos Direitos Sociais da autarquia (para onde foram transferidas no início do mês as pessoas que estavam no centro instalado no Clube Nacional de Natação).

“A partir de janeiro teremos de sair seguramente do pavilhão do Casal Vistoso, estamos já a preparar um outro centro com mais capacidade, aliás, do que o próprio Casal Vistoso, cremos que irá até às 150 vagas”, adiantou o autarca, salientando que o objetivo é “garantir uma resposta ainda mais robusta” na cidade de Lisboa para os sem-abrigo e “retirar todas as pessoas da rua”.

Sem revelar onde ficará localizado o novo equipamento, Manuel Grilo lembrou que a criação destes centros “foi uma resposta absolutamente necessária no início da pandemia” e, mais de meio ano depois, “continua a ser necessária”.

Por isso, irá manter-se “enquanto se mantiver esta crise, que é uma crise também social, é a crise que atira pessoas para a rua”, com muitos a chegarem recentemente à situação de sem-abrigo.

“A pressão para entrar [nos centros] continua, o número de pessoas em situação de sem-abrigo na cidade de Lisboa é muito grande ainda, de pessoas que dormem na rua”, afirmou, recordando que a mais recente contagem “dava acima de 250 pessoas” sem-abrigo.

O vereador com o pelouro dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa, Manuel Grilo, fala à Agência Lusa no Centro de Acolhimento de Emergência para Sem-abrigo na Pousada da Juventude do Parque das Nações, em Lisboa, 1 de outubro de 2020. créditos: MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Contudo, esse número não está estabilizado, porque todos os dias a Câmara de Lisboa tira pessoas da rua, “mas também todos os dias estão a chegar pessoas à rua, pessoas que perdem a sua casa, de pessoas que perdem o seu emprego, pessoas que muitas vezes vêm de outras regiões do país, situações muito dramáticas de pessoas LGBTI [lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo]” que saem das suas residências habituais e vêm para Lisboa , caindo “rapidamente em situação de sem-abrigo”.

Questionado se a crise económica e social provocada pela pandemia de covid-19 agravou a situação, o vereador com o pelouro dos Direitos Sociais reconheceu que “os números dispararam”.

“Estamos a responder com o que podemos, mobilizando todos os recursos da Câmara Municipal de Lisboa”, afirmou.

O objetivo, insistiu, é que todas as pessoas, num prazo o mais curto possível, tenham “soluções adaptadas a si e que permitam uma completa autonomia”, seja no domínio da habitação, nomeadamente através do programa ‘Housing First’, como em termos de emprego.

“Não há prazo nenhum [para ficar nos centros de acolhimento], as pessoas ficarão o tempo que entenderem, nós junto delas procuramos encontrar respostas adaptadas a cada situação”, sustentou.

*Por Vera Amaro (texto) e Manuel Almeida (foto), da agência Lusa