Os Médicos sem Fronteiras (MSF) estão “dos dois lados da linha da frente” no Iémen e a organização tem atualmente no país cerca de 100 colaboradores estrangeiros, para além de mais de 1.000 iemenitas integrados nas suas estruturas de apoio, referiu em contacto telefónico com a Lusa, a partir da capital Sanaa, João Martins, chefe da missão dos MSF no Iémen.

Natural de Vila Nova da Barquinha, João Martins, 31 anos, trabalha com os Médicos sem Fronteiras (MSF) há quatro anos e efetua a sua segunda missão no Iémen, tendo a primeira decorrido em meados de 2016.

João Martins refere-se a um conflito que tem atingido particularmente a população civil, com uma epidemia de cólera e uma crise humanitária já definida pela ONU como a mais grave das últimas décadas, e que atinge pelo menos metade dos 23 milhões de habitantes.

“Sei que esta guerra tem sido feita de uma maneira, pelas duas partes, sem consideração pelo que são as pessoas, pelo que é a população no seu geral, pelo bem-estar da população civil que nada tem a ver com esta guerra”, denuncia.

O chefe da missão local dos MSF – organização fundada em 1971 pelo médico francês Bernard Kouchner e outros colaboradores, incluindo jornalistas, que tinham estado com a Cruz Vermelha na guerra do Biafra, na Nigéria, em apoio às populações – revela que a epidemia de cólera atingiu o pico em 2017, na altura das chuvas e do Ramadão.

“No nosso hospital em Abs [norte do Iémen] chegávamos a receber 400 pacientes por dia, foi uma epidemia muito grande que matou milhares de pessoas”, recorda. “Entretanto, os casos baixaram, e agora para esta época de chuvas que está a agora a começar preparávamo-nos para um novo ciclo, felizmente não está a acontecer para já mas vamos continuar a acompanhar, agora é mais complicado porque o nosso centro de tratamento de cólera foi bombardeado, mas vamos tentar reconstruir e continuar a servir as pessoas”, garante.

Em 07 de julho, o Comité internacional da Cruz Vermelha (CICV) anunciou a retirada do Iémen, por motivos de segurança, de 71 dos seus colaboradores internacionais e que representam mais de metade do seu pessoal no país.

“Em contextos como o Iémen, onde o conflito vai sendo cada vez mais intenso, tomámos diferentes precauções. Estabelecemos contacto com todos os grupos armados, com as partes do conflito, comunicamos com muita regularidade onde estamos, como nos movemos, quando nos movemos”, explica João Martins.

“Estabelecemos ligações com os dois lados e tomamos as precauções necessárias para uma segurança efetiva, também para nos resguardamos em caso de bombardeamentos, temos uma série de medidas que são medidas ‘standard’ dos MSF devido ao contexto em que trabalhamos”, salienta.

Regras básicas da guerra não estão a ser respeitadas no Iémen

O ataque à cidade portuária de Hodeida, oeste do Iémen, pode provocar “centenas de milhares” de feridos, numa guerra onde as regras básicas não são respeitadas, adiantou o chefe da missão dos MSF no Iémen.

João Martins, que falava à Lusa por telefone a partir de Sanna, capital do país, refere que o ataque da coligação militar liderada pela Arábia Saudita tem dois fatores.

“O ataque que agora está a começar em direção a Hodeida tem dois fatores. Primeiro, o porto de Hodeida é um dos maiores do Iémen e é um país que sobretudo após início da guerra depende maioritariamente de produtos exportados, comida, combustível, a maior parte dos produtos consumíveis no Iémen são importados e grande parte deles vêm por Hodeida”, diz.

“Hodeida também é o sítio por onde a maior parte das agências das Nações Unidas e outras organizações humanitárias recebem os seus produtos e têm os seus armazéns onde guardam os seus produtos para posterior distribuição pelas populações”, esclarece.

A coligação árabe anunciou uma ofensiva militar sobre Hodeida, com o apoio de tropas iemenitas, e que está a decorrer.

O país do Médio Oriente está em guerra civil desde 2014, conflito que se acentuou com a intervenção militar liderada pela Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, em apoio ao governo “internacionalmente reconhecido”.

No entanto, grande parte do país, sobre o norte e a capital Sanaa, permanece sob controlo das milícias xiitas Huthis, e aliados, que têm recebido apoio do Irão.

“Um ataque a Hodeida pode significar um bloqueamento total do aprovisionamento feito a partir daí, e com consequências a nível de todo o país. Depois, é uma cidade com mais de meio milhão de pessoas. Um ataque a uma zona urbana poderá causar dezenas ou centenas de milhares de feridos, populações deslocadas que terão de ir para sítios longe das suas casas, sem capacidade de sobrevivência”, salienta.

Na segunda-feira, um centro para o tratamento de cólera dos MSF na localidade de Abs, província de Hashah, a cerca de 130 quilómetros da capital Sanaa e numa zona controlada pelos Huthis, foi destruído num bombardeamento atribuído à coligação dirigida pelos sauditas, e que tem intervindo sobretudo através de ataques aéreos.

Na ocasião, João Martins, afirmou através da rede social Twitter que a organização suspendeu temporariamente as suas atividades em Abs enquanto não estiver garantida a segurança do seu pessoal e dos doentes.

O responsável desta organização não-governamental no Iémen sublinha que a organização assume que a responsabilidade dos bombardeamentos contra as instalações civis deve ser atribuída à coligação árabe (sauditas e iemenitas).

Ainda numa referência à localidade de Abs, indica que a linha da frente mais próxima fica a cerca de 50 quilómetros.

“Mas os bombardeamentos, explosões ou danificação de infraestruturas são feitos quando há aviões a voar, e tudo indica que são da coligação, não há grandes dúvidas”, acrescenta.

E precisa: “Têm sido bombardeadas e destruídas diferentes estruturas civis durante este período. Entre 2015 e 2016 tivemos cinco bombardeamentos contra instalações de Médicos sem Fronteiras, e uma ambulância. Agora tivemos uma sexta, de novo em Abs, que foi um sítio já bombardeado em agosto de 2016 e onde na altura morreram 19 pessoas no hospital”.

“Deve-se por um lado à falta de respeito pela proteção de civis e de serviços que apoiam a população civil, e por outro lado porque os MSF trabalham em zonas onde as necessidades são maiores e onde a segurança acaba por ser menor, especialmente quando as regras mais básicas de fazer guerra não são respeitadas pelas diferentes partes”, acrescenta o chefe da missão.

No atual contexto, indica que a situação permanece muito complicada, sem perspetivas sobre o fim do conflito.

“Obviamente que as Nações Unidas têm bastante vontade de terminar com a guerra, mas não podemos esquecer que a maior parte dos países que estão no Conselho de Segurança vendem armas às partes em guerra no Iémen. Se calhar, resolvendo esta contradição as coisas poderiam resolver-se mais depressa”, defende.

O atual responsável no Iémen dos MSF – organização fundada em 1971 pelo médico francês Bernard Kouchner e outros colaboradores, incluindo jornalistas, que tinham estado com a Cruz Vermelha na guerra do Biafra, na Nigéria, em apoio às populações –, indica que a organização está presente em “12 governadorados” (províncias), possuindo 13 hospitais próprios e dando apoio a 20 hospitais do ministério da Saúde.

“A estratégia dos MSF é trabalhar nos sítios onde sabemos que outras organizações ou agências das Nações Unidas, por exemplo, não conseguem chegar. Por estarmos na linha da frente acabamos por estar mais perto onde as necessidades são maiores”, destaca.