Apresenta-se como RB Poon, num inglês imperceptível, em tom baixo e algo tímido. É nepalês. Veio do país mais conhecido pelo Everest e por ser a terra natal do Buda. Deixou os Himalaias para trás e vive em São Teotónio, Odemira, Alentejo.
Partilha um quarto, com dois compatriotas. Trabalha no campo, na apanha de amoras, framboesas e mirtilos. “Berries”, resume, soltando a palavra na língua universal. É um trabalho que tem desde há dois anos. Conseguiu-o dois anos depois de ter atravessado o mundo até chegar à planície alentejana, em busca de uma vida melhor. Ou pelo menos diferente da que deixou para trás, embora não acrescente qual era.
De aspeto franzino, voz fina, deixa escapar que também canta. “Tive lições vocais” na terra natal, explica-se num inglês reduzido de gramática. E é a partir do sitio do cante alentejano, Património Cultural Imaterial da Humanidade, que se ouve a sua voz. RB Poon “vende-se” no YouTube e parte em “concertos pela Europa”, depois do tempo, mais ou menos de sete meses, que dedica à apanha dos frutos vermelhos.
As músicas românticas preenchem o seu reportório. Falam de “Love”, original que sai da sua boca. Não de saudade. A palavra portuguesa sem tradução e que, provavelmente, traduz o sentimento dele e de alguns dos compatriotas que estão de forma mais ou menos temporária em Portugal.
O seu novo hit tem a portugalidade resumida num nome universal: “Maria” no título. É a única palavra portuguesa desta música nepalesa que invade os campos alentejanos. RB Poon pronuncia-a sem hesitações e em bom português.
A letra foi escutada, em primeira mão, no passado 13 de outubro, dia que celebra o fim da campanha (embora esta se prolongue até dezembro) da apanha de frutos vermelhos nas quintas propriedade da Maravilha Farms, uma empresa de direito português com capital americano da Discroll’s, multinacional que viu em Odemira a “nova Califórnia”. Não a Califórnia das startups tão em moda, mas sim da agricultura, sendo uma região com condições climatéricas e de água (por causa do Perímetro de Rega de Mira) idênticas às verificadas no estado norte-americano virado para o Pacífico. Água quanto baste mesmo em tempo de seca no país.
A torre de Babel: Nepalês, indiano, ucraniano e búlgaro, as novas vozes com sotaque
RB Poon é uma das novas vozes que caracterizam esta região do Alentejo litoral. Ou antes, das novas vozes tantas quantas as nacionalidades que estão a mudar a paisagem cultural, social e demográfica das vilas e lugares deste pacato lugar.
Por ali, há nepaleses, em maioria, tailandeses, búlgaros, birmaneses, indianos, vietnamitas, ucranianos, azeris, russos, bielorrussos, hondurenhos, cabo-verdianos e por aí fora. Uma verdadeira Torre de Babel que se cruza e entrecruza com o peso da idade do sotaque alentejano que ali permanece.
Envelhecido e desertificado, Odemira, o maior concelho do país, com 1720 quilómetros quadrados de extensão territorial, ganhou nos anos mais recentes, por causa desta vaga, nova vida. Aos 26 mil habitantes, censos 2011, um novo mundo desaguou no território que reclama que cabe todo o Alentejo. Há os legais. Mas também os ilegais.
Vindos de todos cantos, não fazem parte da “invasão” turística, não estão de passagem. São dali, passaram a ser dali, daquela terra que, por coincidência, viu gerações anteriores de portugueses partirem por falta de trabalho.
Ao redor das explorações agrícolas, no interior ou litoral, de Vila Nova de Mil Fontes à Zambujeira do Mar, nestes paraísos outrora perdidos na terra, há novos rostos e novas indumentárias. Várias nacionalidades e credos cruzam-se, deambulam, uns misturam-se, “entram” na sociedade que os acolheu, outros, mais reservados, falam entre os seus, mantendo-se mais ou menos invisíveis, alguns mergulhados numa clandestinidade que os protege.
Quando não estão a trabalhar nas estufas, estão um pouco por toda a parte. Os turbantes caem na normalidade no dia-a-dia. As longas barbas, entrelaçadas, denunciam os Sikhs. O cheiro a pão, azeite, coentros, poejos e o paladar das migas e vinho tinto são, a espaços, substituídos pela intensidade de odor de várias especiarias, do caril ao açafrão a que se acrescenta o arroz basmati, sempre no respeito pela restrição e proibição de cada uma das religiões que para ali se mudaram.
Os túneis e as ondas brancas no novo visual dos campos de Odemira
A multiplicidade de idiomas tem algo de reunião das Nações Unidas. Cada trabalhador labora 25 dias por mês, seis dias por semana, desloca-se para o campo de várias formas e feitios. Há quem vá de camioneta disponibilizada pela empresa. Outros pedalam como se estivessem “em casa”. Há quem, com plena integração e muitos anos desta vida, prefira pegar no seu próprio carro e se ponha à estrada.
Durante o dia, bicicletas com o peso do tempo estão encostadas a contentores, uma decoração metálica, metros quadrados de ferro plantados, que contrasta com a cor torrada do chão. Há mochilas penduradas que escondem almoços e camisolas por cima de cabides. Há roupa e calçado amontoado.
Todos os dias, antes das 8h00, os trabalhadores do mundo espalham-se pelas estufas, penetram nas ondas siamesas e deambulam entre os gigantes corredores brancos, deixando de antever algo de bíblico nesta imagem.
Debaixo de uma temperatura algo elevada, onde está calor mesmo quando não está, caminham com um pequeno balde a tira colo e empurram o “burro”, como apelidam um carrinho de mão, com um cesto na parte da frente que alberga caixas de embalagem (com patente dos americanos da Driscoll’s) e uma balança para pesar o fruto colhido, 165 gramas por unidade.
Tudo feito de uma só vez e com a mínima intervenção humana, um trabalho manual, delicado e minucioso. Os tais frutos, carinhosamente colhidos e embalados no mesmo espaço geográfico, saltam diretamente para uma bancada onde tudo é verificado e etiquetado e de imediato viajam das estufas para as prateleiras das lojas e supermercados. “Assim temos a certeza que tem o peso certo”, explica Leslie Bonilla, hondurenha que aterrou em Odemira, em 2004.
Veio sozinha. A culpa foi de uma “prima casada com um português”. Pouco conhecia do país, mas com o Europeu de futebol, em Portugal “despertou o interesse”. Pensava “estar dois anos e regressar”. Hoje, com 43 anos, casada com um português (Francisco) e um filho de 11 anos, já batizado, as raízes estão no Alentejo. “Já não saio”, atira, dizendo adeus à cidade natal de El Progreso. “Habituei-me a estar aqui”.
Mora em Vila Nova de Mil Fontes e vem de autocarro da empresa. É efetiva. Dos tais trabalhadores que ficam após a colheita. “Há que moldar, tratar da plantação, apanhar erva, pôr fios...os homens arrumam os toldos, sou pequena”, sorri.
Vídeos que falam para que a colheita não se perca por falta de tradução
Margarida Guerreiro, agrónoma, divide o trabalho entre São Teotónio e Tavira. Explica a razão dos garrafões pendurados em cada linha de produção e que mostram uma solução de líquido branco. “É por causa das pragas”, uma forma rudimentar que evita tratamento com químicos. É da sua responsabilidade este controlo. Ajuda ainda na gestão da rega, desenvolve ensaios, testa novas variedades e novas formas de poda.
Juntos, os frutos vermelhos “rendem 120 milhões de euros, valor que supera a exportação da Pera Rocha”, afirma Luís Pinheiro, diretor-geral a Maravilha Farms empresa agrícola de frutos vermelhos instalada nos concelhos de Odemira, no Litoral Alentejano (150 hectares), e de Tavira, no Algarve (30 hectares) e que pertence à americana Reiter Affliated Companies.
A campanha alentejana termina em dezembro. No Algarve é antecipada, começa em janeiro e vai até abril. Assim a empresa garante trabalho o ano inteiro, embora o número da empregabilidade seja maior de abril a outubro. Os números, no Alentejo, oscilam entre os 700 na época de maior intensidade e cerca de 300 no restante tempo.
“A seguir à cessação de contrato e carta de despedimento segue contrato-promessa para voltarem na próxima apanha. Assim não se perde tempo com formação”, garante Ana Baltazar, da Maravilha Farms. “A taxa de retorno dos trabalhadores é de 80%”, congratula-se. A formação é dada em idiomas diversos. O objetivo passa por “criar vídeos interativos para simplificar a formação e criar um dicionário interno com várias línguas”, procurando que a colheita não sofra com a ausência de legendas, anuncia.
Este ano, as previsões apontam para “1700 toneladas de framboesa, 250 toneladas de amoras e 300 toneladas de mirtilo”, antecipa Luís Pinheiro. Em média cada um dos trabalhadores apanha 5 quilos de frutos vermelhos e bebe 2,5 litros de água.
“Revolucionámos a comunidade”
A mão-de-obra que circula nos túneis brancos obedece a uma hierarquia. Há um supervisor por cada corredor das estufas, um supervisor de colheita e de não-colheita. Este último está na preparação do terreno, da poda, regas, tratores, feudo habitual dos homens até há pouco tempo, assistindo-se, agora, ao equilibro entre os géneros.
Andryi Turko é ucraniano. Está em Portugal desde 2000. Depois dos estudos em montagens de sistema de regas e de esgotos, encalhou nas obras em Portugal. Passou para as estufas, em 2007. Começou “por baixo”, como salienta. Foi “responsável de colheita” de uma quinta, até chegar a “supervisor”. Para quem não percebe, explica o que significa: “Sou capataz de zona”.
É responsável por trabalhadores vindos de “14 países”, divulga. Não é fácil trabalhar com todas estas culturas, alerta. “No início falava com as mãos”, revela. Coloca-os a trabalhar em conjunto, num jogo de todos com todos e não isolados por nações.
Casado com uma ucraniana, “a vida é que manda, logo não sei se saio daqui”, frisa. Distingue-se dos demais trabalhadores que partilham metros quadrados. “Alugar? o preço é igual”, atira. Por isso “comprei casa”. Mora em Santo Teotónio uma terra que “está 100 anos atrasada”, lamenta. Dá um exemplo: “as crianças (filhos de 10 e 5 anos) começam a escola às 8h00, mas os pais entram às 7h30. E trabalhamos ao fim de semana”, explica. “Revolucionámos a comunidade. O tempo parece que parou. Tem de andar para a frente”, avança.
“A imigração no concelho de Odemira não é um problema. É uma oportunidade. Dinamiza a economia local e o desenvolvimento”. Quem o afirma é Deolinda Seno Luís, vereadora da Câmara Municipal de Odemira, com o pelouro da Intervenção Social. Se o comércio local ganha novos clientes, para os emigrantes surgem novas oportunidades de negócio como o supermercado nepalês Darshan Nepal em São Teotónio, na mesma rua onde há cafés e restaurantes portugueses.
A maior parte veio e virá sozinho. RB Poon deixou a família para trás. Leslie encontrou a cara-metade cá, Andryi comprou casa, há búlgaras casadas com portugueses e a exploração agrícola assistiu recentemente ao nascimento do primeiro bebé tailandês. São estes, e outros, os novos filhos do Alentejo, frutos da apanha de frutos silvestres.
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