O tráfico de droga também foi vítima da pandemia e, num mês, o receio da escassez de heroína levou 150 novos utilizadores a recorrer às carrinhas de metadona em Lisboa. Entre eles contam-se alguns dos presos que foram libertados devido à Covid-19.

Dada a maior procura, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) está a procurar salvaguardar “uma almofada” de apoio financeiro para este tipo de instituições. O diretor do SICAD, João Goulão, disse à Lusa que as equipas que fazem trabalho de rua e atendimento a pessoas com dependências estão a ser também elas confrontadas com falta de equipamento de proteção e com riscos acrescidos de infeção com o novo coronavírus, que obrigam a ter equipas de substituição na retaguarda — não deixando de parte a possibilidade de se ter de vir a contratar mais pessoas.

“Ao abrigo do Plano Operacional de Respostas Integradas, aquilo que estamos a tentar é que possa haver alguma almofada que permita às equipas recrutarem mais um ou outro elemento ou adquirirem materiais que lhes fazem falta para acorrer às necessidades dos seus utentes. Dar-lhes algum conforto, alguma margem de progressão, e se tiverem que incorrer em despesas acrescidas, ter a garantia de que o Estado as ajudará nesse acréscimo de custos”, disse.

Um exemplo são os jerricans de água e sabão que agora algumas equipas transportam, permitindo que “as pessoas mais desestruturadas”, sem apoios e por vezes sem-abrigo, possam cumprir com uma das recomendações mais elementares, mas mais essenciais, no âmbito da epidemia de Covid-19, que é a higienização frequente das mãos.

“Todos os dias há problemas novos a declararem-se, para os quais estamos a tentar encontrar soluções”, disse, destacando a colaboração das autarquias, que, frisou, são quem melhor conhece as realidades locais e quem melhor pode coordenar respostas sociais garantindo que o trabalho das várias instituições não deixa “territórios a descoberto”.

Dentro dos utentes dessas instituições contam-se: sem abrigos, arrumadores de carros, pessoas que se prostituem, pessoas do pequeno tráfico, desempregados ou com trabalhos precários ou pessoas dependentes de subsídios. Uns são utentes habituais, outros são reincidentes e há quem também venha pela primeira vez, como é o de Jorge Gomes, que, depois depois de duas décadas em abstinência na Alemanha, onde vive e trabalha, voltou a consumir.

“É por isso que lhe chamam heroína. Ela ganha sempre”, diz à Lusa, com um sorriso amargurado, mas convicto de que vai conseguir voltar a vencer o vício e manter-se no programa quando regressar à Alemanha.

Jorge não é um “efeito colateral” da pandemia, mas há quem seja uma consequência direta, caso dos ex-reclusos acabados de sair em liberdade. “Nos últimos dias, praticamente diariamente, têm chegado pessoas que vêm das prisões e que são postas em liberdade em situações de muita vulnerabilidade, em termos sociais e também de consumos”, diz Hugo Faria, psicólogo da associação Ares do Pinhal que tem ido para rua com uma equipa numa carrinha de metadona.

São pessoas que tinham consumos dentro das prisões ou até — e nos casos em que isso é possível, como o Estabelecimento Prisional de Lisboa — pessoas que estavam integradas num programa de metadona na prisão, explica, e que agora saem sem qualquer apoio social.

Porém, “o maior número de afluências é de reentradas, pessoas que já cá estiveram, que já não víamos há imensos anos, que voltam e voltam com medo. Com medo de poderem não conseguir ter uma situação estável em termos de consumo. Têm medo de recair e recorrem a este programa por segurança”, informa.

Já se nota “muita carência” e não é apenas a nível de consumo. “Nós temos estado nos últimos dias a assistir a coisas a que não assistíamos há muitos anos. Fome, simplesmente fome, pessoas com fome, que é uma coisa que nos incomoda bastante. Aquelas pessoas que conheciam alguém, que faziam um biscate aqui e acolá e que conseguiam manter a sua alimentação, neste momento não a têm. Somos muito sensíveis e articulamos [soluções] com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e, em situações excecionais também providenciamos aqui alguns ‘snacks’ simples. E ainda vamos ver mais [casos]”, diz.

Ao contrário do que seria de esperar numa população tão vulnerável, até ao momento registaram-se apenas três casos suspeitos e nenhuma confirmação de infeção.

O protocolo em caso de suspeita é, como em todos os casos, contactar a linha SNS24. O isolamento a que ficam sujeitos os casos suspeitos não obriga, porém, a interromper o programa. A associação garante-lhes entregas de metadona diárias em casa, acontecendo o mesmo se alguém testar positivo para Covid-19.

“Não há nada como termos as reuniões presenciais”

O diretor do SICAD afirmou que uma das “preocupações centrais” do serviço prende-se com os alcoólicos em síndrome de privação. “Enquanto a privação de outras drogas, como os opiáceos, dificilmente causam situações que põem a vida em risco, com a privação alcoólica isso pode acontecer”.

Tendo consciência dos perigos, os Alcoólicos Anónimos (AA) foram rápidos a reagir e transferiram os momentos diários de partilha entre companheiros para o espaço virtual, assim que o risco de contágio pelo novo coronavírus cancelou as reuniões presenciais por tempo ainda indeterminado.

Na primeira semana de estado de emergência o número de pedidos de ajuda via telefone baixou consideravelmente, mas foi recuperando gradualmente, o que significou voltar a uma média de cinco a seis chamadas diárias, disse António, membro dos AA, que referiu também que receberam cerca de mil chamadas a pedir ajuda em 2019.

Teresa, em recuperação há 21 anos e voluntária no atendimento da linha telefónica de apoio há sete, confirma os números e diz que começam a aparecer nas reuniões virtuais pessoas que chegam pela primeira vez, inclusivamente, residentes no estrangeiro. Foi um caso de um homem a morar na Suíça, que agora frequenta reuniões via ‘Skype’ todos os dias, mas que chegou aos AA apenas depois de a mulher ter dado o passo de telefonar.

Este apoio telefónico já registou casos de sucesso, em que as pessoas pararam de beber e assim se mantiveram, contou Teresa, que disse que quem está no atendimento – há três voluntários neste momento – e que habitualmente presta informações e faz encaminhamentos para reuniões ou serviços médicos, está neste período de isolamento e de emergência “mais recetivo” a manter conversas telefónicas mais longas, a ouvir desabafos e a passar uma mensagem de esperança a quem liga, quase sempre numa situação de desespero.

Pelos seus atendimentos ainda não passaram recaídas em consequência da pandemia, mas nas chamadas já se desabafa muita “insegurança com medo do desemprego”.

“Algumas pessoas que nos ligam já nem emprego têm, mas vislumbravam uma hipótese de trabalho e agora não”, disse.

Maria, em recuperação há quatro anos, perdeu o emprego um dia depois de o Presidente da República ter anunciado o estado de emergência. O desemprego no arranque de 2020 sucedeu-se à perda do pai e do seu animal de estimação no final de 2019.

“Para além de estar em quarentena estou num processo de desemprego que me frustra muito e que me deixa um bocadinho angustiada, sem saber como vai ser o dia de amanhã.(…) Ao falar ao telefone a minha ansiedade vai diminuindo”, disse à Lusa, referindo que mantém as rotinas para se manter ocupada.

As conversas ao telefone com os companheiros têm-na ajudado mais que as reuniões virtuais, que têm a vantagem de poder acontecer a qualquer hora e várias vezes ao dia, mas que para si não substituem as presenciais. “Não há nada como termos as reuniões presenciais. Dou muito valor às reuniões físicas, porque temos o olhar, temos o abraço, temos o ‘calor da sala’, dos companheiros, que por via das tecnologias não existe”, disse, acrescentando que a literatura de apoio dos AA, baseada em testemunhos de pessoas em recuperação, tem sido outro grande apoio.

Para além de uma situação de isolamento prolongada aumentar os níveis de ansiedade, também eleva o risco de uma recaída, que é algo pelo qual Teresa não quer passar.

“Preocupa-me, mas tenho uma coisa muito bem assente. Eu não quero beber. Não quer dizer que não venha a escorregar, disso ninguém está livre, mas eu não quero. Por isso as ferramentas que estão à nossa disposição têm que ser usadas. Falar com os outros é importante”, disse.

O número disponível dos AA para o qual se pode ligar é o 217162969. As chamadas são atendidas diariamente entre as 10h00 e as 22h00.