Em cerca de 40 horas, o fogo que teve início em Castro Marim por volta das 01:00 de segunda-feira, alastrando-se ainda a Tavira e Vila Real de Santo António, consumiu mais de 9.000 hectares de terrenos florestais, agrícolas, mato e alguns imóveis, e deixou as populações em alerta.

Uma viagem pelas estradas rurais que ligam a localidade de Odeleite (Castro Marim) – onde se situa a barragem que os aviões usam para reabastecimento – e a Mata Nacional da Conceição (Tavira) — um dos ‘pontos quentes’ indicados pela Proteção Civil — dá uma visão abrangente sobre o impacto das chamas.

Na localidade de Cortelha, Castro Marim, fica situado um edifício consumido quase na totalidade pelo incêndio: um armazém de cereais, alfarrobas e outros produtos agrícolas que os proprietários viram desaparecer em minutos.

Um grupo de pessoas conversa em frente ao que ainda resta da construção e mostra-se indignada com o que se passou, mas as atenções estão viradas para a dona Natália, que, desconsolada e em lágrimas, vai relatando o que viveu e mostra o pouco que sobrou.

“O meu filho veio com isto na mão e disse-me: foi o que sobrou do ouro”, diz, enquanto mostra algumas peças que tinha ali guardadas e agora quase impercetíveis.

É a muito custo que revela à Lusa que os figos, amêndoas, alfarrobas, várias centenas de quilos de cereais e todo o material que levava para vender no mercado desapareceram. “Ardeu tudo”, lamenta.

O fumo ainda é visível a sair de uma das divisões do armazém, onde uma empilhadora jaz junto ao uma porta entreaberta e contorcida pelo calor. O resto das divisões já não têm telhado e no chão negro é com dificuldade que se consegue identificar o que quer que lá tenha estado.

“O fogo estava lá em baixo, mas os bombeiros não o apagaram lá, nem aqui, e depois de estar tudo a arder é que vieram, deitaram um bocadinho de água. Ela acabou, eles foram-se embora e isto continuou a arder”, destaca Natália.

Na localidade, agora sem água, ainda conseguiram “tirar alguns dos carros”, mas uma carrinha repousa ardida em frente ao armazém.

“Ardeu também um outro camião que está lá na parte de trás”, conta o filho Nelson.

“Ardeu tudo, ficámos só com a roupa. Os materiais e o dinheiro foi-se. O meu pai só trabalha com dinheiro vivo, não trabalha com cheques”, afirma. Como o negócio é de compra e venda a pequenos produtores, “eles preferem em dinheiro”. Não revela o montante perdido, mas assume que “dava para comprar uma casa, das grandes”.

A conversa toma outro tom quando Manuel Pereira, vizinho, acusa os bombeiros de “pouco ou não terem feito” e afirma que estavam 12 carros de bombeiros num largo a “pouco mais de 100 metros” e “deixaram arder esta casa”.

“Fizeram zero e eu estava aqui nessa altura. Estavam deitados dentro dos carros. Nós já não dávamos feito nada. Estava tudo ardendo, tomado pelas chamas. O homem [o dono do armazém] deitado ali na estrada…”, descreve, já com a voz embargada, referindo que lhe responderam que “não tinham ordem para ir apagar”.

A indignação é notória noutros populares que relatam situações similares em mais localidades e aproveitam a presença de alguns membros do município para “dizer o que tem de ser dito”.

Ao longo das estradas sinuosas da serra o cenário é negro, pontuado com algum verde das árvores que conseguiram escapar às chamas. Muitos postes de comunicações não tiveram a mesma sorte e vários repousam agora no terreno ou ficam pendurados e agarrados ao fio que se mantém no ar graças aos outros que resistiram.

É já na Carrapateira, concelho de Tavira, que José António tira água do poço com dois baldes, para dar conta de algum pequeno fumo e para “ter um pouco de água em casa”, já que se acabou a que lá tinha.

Reside em Cacela, mas assim que soube do fogo foi ver se conseguia salvar a casa que era do sogro. “Safou-se desta vez, como em 2004”, conta, quando quatro aviões sobrevoam a caminho da barragem de Odeleite para reabastecer. “Ainda deve haver por aí algum fogo”, afirma.

Numa zona onde a estrada passa várias vezes os limites dos concelhos, é já em Castro Marim, na localidade de Pisa Barro de Cima, que um grupo de populares se junta à porta do café Ribeira da Serra com o fogo como ponto de conversa.

São cerca de 10 habitantes, entre homens, mulheres e crianças, e à pergunta sobre como foi a noite passada respondem quase em uníssono: “Fomos nós a combater o fogo. Aqui não havia bombeiros”.

A discordância surge quando tentam calcular quanto tempo estiveram sozinhos a combater o fogo. “Uma hora e meia, duas horas ou mais… Só apareceram já as chamas tinham passado a povoação”, ouve-se.

A indignação dirige-se também ao município, ao qual, com ironia, agradecem por ainda não terem água canalizada. Notam que, se tivesse acabado a eletricidade, “tinha sido a bonita”, já que as casas ficaram ameaçadas e as bombas são elétricas.

A mobilização da população começou “às cinco, seis da tarde”, quando decidiram encher os tanques com água por precaução e porque já previam o que iria acontecer.

“Fizemos exatamente a mesma coisa do que no incêndio de 2004. Foi a mesma coisa. Os bombeiros não apareceram em 2004 e agora aconteceu o mesmo”, reclamam.

A estrada segue em direção a sul e, já com vista mar, o cenário mantém-se negro, com os limites do empreendimento Monte Rei a revelarem não terem sido suficientes para parar as chamas. Só os relvados do campo golfe conseguem manter o verde que os caracteriza.

A sul da Autoestrada 22 o rasto do fogo mantém-se e em algumas zonas são visíveis pontos de fumo e carros de bombeiros a vigiar ou aguardar indicações.

Às 16:30 é anunciado que o incêndio está dado como dominado, mas uma hora depois os aviões ainda descarregam água algures perto da Mata de Santa Rita (Tavira), uma zona de arvoredo mais denso, que foi uma preocupação ao longo do dia de hoje e se mantém sob o olhar dos operacionais no terreno.