A seguir ao bacalhau, a sardinha é dos peixes mais populares na mesa dos portugueses. Pescada a partir de maio, é entre agosto e setembro que está mais saborosa, pois é quando atinge o peso e o nível de gordura ideal para degustar.
Atualmente, a safra da sardinha só pode ser feita entre maio e outubro, para garantir a sua sustentabilidade. Mas é em junho que não pode faltar na grelha porque, o consumo de sardinha, em Portugal, está associado a duas coisas: verão e romarias. Arraial sem sardinha não tem o mesmo sabor, é o mesmo que não ter o cheiro dos manjericos nas ruas por estas alturas do ano.
Por isso, em vésperas da primeira grande noite de arraial do mês, o Santo António, a procura pela sardinha aumenta e como dita a lei do mercado, também o seu preço.
Cabaz atinge os 400 euros em lota, numa “noite de caos”
O sol já estava alto, próximo das 11 horas. Os carros apinhados em segunda fila faziam antever um sábado de mercado cheio. Dos dedos de uma acordeonista saíam notas da música da banda sonora do filme "O Fabuloso Destino de Amélie", sentada na entrada principal do Mercado Municipal da Figueira Foz, a melodia entoava praça adentro. As bancas com frutas e legumes de várias cores e dimensões abriam alas para os mercados de peixe situados ao fundo da praça coberta. Antevia-se forte procura pela sardinha, já que este é um fim de semana alargado antes da noite de Santo António.
No entanto, não havia muita sardinha fresca. Foi uma "noite de caos", a de sexta-feira, na lota de Peniche para se encontrar sardinha, contaram ao SAPO24 os comerciantes e pescadores da Figueira da Foz.
“Ontem, o Santo António espantou a sardinha e então o preço de lota começou nos 180 euros e acabou nos 398 euros o cabaz”, conta Helena Simões, peixeira no Mercado Municipal da Figueira da Foz. “Basicamente, [o cabaz] sai a mais de 19 euros o quilo. Não faz sentido”, lamenta. “Também não havia sardinha em mais lado nenhum. Figueira não houve, Matosinhos não houve, então fomos à única lota que havia sardinha, que era Peniche”, diz dona Lena, proprietária de um espaço de venda de peixe no mercado com o mesmo nome.
“A sardinha pequenina [petinga] tem estado barata, nós temos estado a vendê-la na casa dos 3 euros o quilo, descreve dona Lena, e a grande a cinco/seis euros, que é de Peniche, sublinha a peixeira que está no Mercado Municipal da Figueira da Foz há mais de trinta anos.
Os preços, em lota, funcionam em leilão, “como somos pequenos retalhistas não temos condições para comprar diretamente na lota. Lá só vendem aos 12 e aos 36 cabazes, o que é muito para nós. Então, temos de ir ao armazenista, que por sua vez, tem as suas despesas, com pessoal, gelo, cabazes, e tem de ganhar o seu”, explica a comerciante.
“Então, nós não conseguimos vender diretamente ao consumidor. Por isso, ontem [sexta-feira] nem sequer lhe toquei, porque achei um exagero 20 euros o quilo. Ir lá buscar, colocar a minha margem, por cima da do armazenista, era sardinha para 25 euros o quilo, não compensava. Portanto, não comprei”, afirma.
“A sardinha já se come bem, mas falta-lhe tempo. Está muito atrasada. Antes havia sardinha mais cedo e com qualidade. Hoje em dia, está tudo mudado, mas não sei explicar-lhe porquê”.
“Aqui na Figueira [a sardinha] ainda continua a ser pequenina, petinga, e em Matosinhos também, precisa de mais tempo”, disse D. Lena, acrescentando que este ano não teve sardinha boa para o Santo António, mas garante que “vai haver muita sardinha de qualidade para o S. João, que também se celebra na Figueira da Foz”, lembra a peixeira que está no Mercado Municipal há mais de 30 anos.
“Este mercado é muito bonito, as pessoas são muito simpáticas”, disse, lamentando a falta de estacionamento, que afasta os clientes e lança o apelo ao presidente da Câmara, “espero que Santana Lopes fique por cá muito tempo, porque está a fazer melhoramentos para a Figueira”, disse. “Sei que há planos para um parque de estacionamento. Se tivéssemos estacionamento, estou convencida que não havia supermercado que nos abalasse”, concluiu a peixeira.
Duas bancas ao lado, a D. Flávia queixava-se do mesmo: a falta de sardinha e o pesadelo de sexta-feira à noite na lota.
“Esta noite foi um caos, e este sábado de manhã, não tivemos sardinha fresca aqui no Mercado Municipal da Figueira da Foz porque a sardinha acabou na lota a 400 euros o cabaz, 20 euros o quilo. Não há poder de compra para isso. Numa altura em que há muita procura. Hoje, no mercado, toda a gente queria sardinha fresca. O Santo António na segunda-feira, um fim de semana muito grande com muita gente de fora na Figueira, graças a Deus, todos queriam cá sardinha e não havia. Então tivemos de trabalhar com a sardinha congelada, mas não teve tanta saída como a fresca”, afirma a peixeira.
Ao contrário da D. Lena, D. Flávia, que anda nisto desde os 12 anos, acredita que o mesmo vai acontecer no S. João. Ou seja, “os preços vão disparar”, tal como este fim de semana, antes do Santo António.
“Acho que vai acontecer mais vezes. É muito mau para o negócio. Um quilo de sardinha a sair de lota a 20 euros?”, questiona. “Nós não podemos comprar diretamente, temos de a comprar ao armazenista/fornecedor”, lamenta a empresária que, tal como as colegas, não tem dimensão suficiente para competir em leilão com os grandes retalhistas.
“Eles a comprar a 20 euros, como é que nós íamos depois vender ao cliente?”, reforça. “Não dá. É muito caro, impossivel”, lamenta a dona da peixaria Flávia.
“A sardinha que tenho aqui é congelada, a 5 euros o quilo, está boa, gorda, mas as pessoas querem provar a sardinha da época, do ano certo? Só que não houve”.
Este ano, Portugal pode pescar mais sardinha, face ao ano passado. Contudo, numa altura em que a sua procura está no máximo, o produto está atrasado. As peixeiras estimam que estas falhas podem criar um excedente.
“Isto é novidade, é como a cereja, as pessoas querem logo prová-la e compram a qualquer preço, como o morango quando aparece, depois fartam-se de comer. Até agosto, nós trabalhamos muito bem com a sardinha ao longo do ano, mas é como tudo, em agosto/setembro as pessoas já se fartam e fica mais fraca” [a venda].
O feriado do Corpo de Deus, na quinta-feira (segundo a lei, está proibida a pesca em feriados nacionais), e as fracas condições climatéricas, impediram a ida ao mar dos pescadores da região norte e centro do país. Apenas Peniche, teve saída.
A arte-xávega é uma forma de pesca artesanal com longa tradição
“Peniche é como a Liga dos Campeões para o pescado. Nós aqui, e o resto do país, é a I liga”, atira o Sr. Carlos, armador que se dedica à pesca por arrasto da forma tradicional: a arte-xávega, na praia de Leirosa, concelho da Figueira da Foz.
Enquanto aguarda que a rede chegue a terra, Carlos Leal conta que passou pelo negócio das carnes e quando veio a crise bovina, tinha as arcas frigoríficas paradas, que lhe “custaram um dinheirão”. Em vez de as “vender por quase nada”, decidiu, juntamente com o irmão Rui Leal, apostar no negócio da pesca que era do avô, desde os anos 1970. “Aguardamos pelas partilhas da família, restaurei o barco, tratamos das licenças e aqui estamos, há mais de 12 anos a pescar desta forma tradicional”.
A arte-xávega é uma forma artesanal de pesca. Antigamente, contava com a força dos braços e juntas de bois para puxar a rede, que era previamente lançada pelos pescadores que entravam no mar, a 4 ou 5 quilómetros da costa. Hoje em dia, os bois foram substituídos pela força de tratores adaptados para a alagem do cabo.
"A rede é manobrada por meio de dois cabos (cordas) fixados nas suas extremidades e que têm por finalidade alar a rede, concentrar o peixe e conduzi-lo para a boca (abertura) da rede. O comprimento dos cabos de alagem, não pode ultrapassar os 3000 metros", dá conta o portal da DGRM.
Depois de lançada a rede no mar, há que regressar a terra e puxar a rede de volta. A puxada pode demorar cerca de 1 hora. Dois tratores adaptados, um em cada lado da praia, afastados entre si, mais ou menos, 500 metros, puxam vagarosamente pelo cabo levado pelos pescadores.
À medida que a corda regressa a terra, os homens enrolam-na dentro da “Estrela do Mar da Leirosa”, a embarcação que já está na areia com uma nova rede, que também é cuidadosamente enrolada lá dentro e fica pronta para a próxima saída.
De acordo com publicado no sítio online da Direção-geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), “apenas está prevista na legislação nacional, o uso de xávega - rede envolvente-arrastante, que é largada a partir de uma embarcação e manobrada e alada a partir de terra (para a praia), manualmente ou com recurso a animais ou a equipamentos de força”.
O sr. Carlos gere a “companha”, onde se incluem membros da família, jovens aprendizes e homens e mulheres de longa experiência na arte da pesca artesanal.
“Tenho muitos jovens na equipa, o que é bom. Estão a aprender e nota-se que gostam disto”, diz com orgulho.
Sem salário certo, ganha-se à comissão. Uma percentagem maior é para quem vai ao mar, corre mais risco. Outra para o pessoal que fica em terra e mais outra para as mulheres que separam o pescado e tratam dali da zona onde decorre o leilão. A sua mãe, D. Helena Leal, integra essa equipa, que tradicionalmente chamava-se de “as vareiras”.
Depois de uns dias sem ir ao mar, este domingo que passou foi bom para a safra. A “Estrela do Mar da Leirosa” saiu duas vezes. Uma da parte da manhã e outra à tarde. Por volta das 16h00, a rede já estava de volta com muito carapau, algumas lulas, e alguns peixes variados que foram apanhados na malha, para “a caldeirada” e, claro, as famigeradas sardinhas.
“Às vezes apanha-se muita sardinha, mas ainda está seca. Precisa de tempo para engordar”, disse o sr. Carlos.
No sábado, no Mercado, a D. Lena bem dizia que a sardinha na Figueira está muito pequenina. “O único sítio onde há sardinha grande é em Peniche. Mas também ainda não é aquela qualidade, já se come bem, mas estão muito atrasadas”.
“À medida que a água aquece, há mais plâncton para o peixe comer”, explica o armador.
Talvez por essa razão esteja melhor para os lados de Peniche, disse o sr. Zé, cliente habitual. “Agora está tudo a correr atrás, logo o preço aumenta. É a lei do mercado, mas a sardinha não está no ponto”, atira o senhor Zé. “Só lá para setembro é que fica boa. Lá para baixo, Peniche e Sines, já está melhor, deve ser da água por ser mais quente”, diz enquanto espera que a rede chegue a terra e traga fartura.
Questionado sobre o aumento da quota da sardinha e tendo em conta que está a passar a época de maior demanda, causando excedente, o pescador desvaloriza. “O que vai acontecer é: vai-se congelar essa sardinha boa. A procura baixa um pouco e a que vai sobrar, guarda-se para os restantes meses do ano”, como tem acontecido em anos anteriores.
Pesca passou a ser controlada em nome da sustentabilidade da espécie
No verão é quando a espécie abunda. Com a água mais quente, há mais plâncton no oceano, o alimento de eleição da sardinha. Contudo, nos últimos anos, foram criadas várias regras e algumas restrições à pesca de sardinha para acautelar a sua sustentabilidade.
Em 2022, a quota de pesca de sardinha autorizada foi de 29 mil toneladas. “Cerca de 27 mil foram pescadas”, disse a ministra da Agricultura no arranque oficial da safra, numa visita à lota da Figueira da Foz, em maio.
Este ano, a quota subiu para 37 mil toneladas. Se vai ser toda a quota utilizada, só se saberá no final da época.
Qual o preço justo estimado para esta temporada?
“Estamos a trabalhar para que o preço da sardinha seja justo”, garantiu a ministra da Agricultura. Contudo, os comerciantes e os pescadores queixam-se da discrepância entre o preço de lota e o valor final ao consumidor que pode disparar como aconteceu na sexta-feira.
Com o aumento da quota autorizada de captação da espécie, os preços deviam ser mais baixos. Contudo, a oferta e a procura continuam a ditar os preços dos cabazes leiloados nas lotas portuguesas.
No sábado, no Mercado da Figueira da Foz, estava a entre os 5 e os 6 euros a sardinha congelada e a três euros a petinga fresca. Na safra de domingo, houve quem levasse até 3 quilos de sardinha fresca leiloados a preços entre os 10 e os 11 euros.
Quem regula o mercado da sardinha?
A Secretaria de Estado das Pescas, através da Direção-geral dos Recursos Naturais e do Mar (DGRM), é a quem compete emitir os despachos limites diários para a descarga e venda. Segundo um diploma publicado em Diário da República, em finais de março, "o limite de descargas de sardinha capturada com a arte do cerco é de 37.642 toneladas, que são repartidas pelas várias embarcações cujos proprietários ou armadores pertencem a organizações de produtores (OP) e pelo grupo que não pertence a OP reconhecidas para a sardinha".
Cada um destes grupos terá, respetivamente, "37.077 (98,5%) e 565 toneladas (1,5%)".
O Governo estabeleceu ainda um conjunto de limites no que diz respeito à descarga e venda deste peixe, sendo que neles se pode incluir "um máximo de 607,5 quilogramas (kg) – o que corresponde a 27 cabazes -, de sardinha calibrada como T4".
Para as embarcações com comprimento de fora a fora igual ou inferior a nove metros, "o limite é de 1.800 kg ou 80 cabazes, quando aplicável".
As embarcações com comprimento de fora a fora superior a nove metros e inferior ou igual a 16 metros "têm um limite de 3.150 kg (140 cabazes, quando aplicável)".
Já as embarcações com comprimento superior a 16 metros "não podem descarregar e vender mais de 4.500 kg em cada dia, o que corresponde a 200 cabazes, quando aplicável".
"A captura, manutenção a bordo, descarga e venda da sardinha é proibida em todos os feriados nacionais", diz ainda o comunicado.
Segundo o despacho, é igualmente "proibida a transferência deste pescado para uma lota diferente àquela que corresponde ao seu porto de descarga".
No mesmo sentido, a mesma embarcação não pode descarregar em mais do que um porto a cada dia.
Qual o papel da Docapesca?
A Docapesca é a empresa do Estado que gere 11 marinas e portos de recreio e 22 lotas e postos de venda de norte a sul do país. Para além de promover a venda (por leilão ou contrato), a empresa efetua todo o seu tratamento administrativo, fornecendo aos armadores e compradores os correspondentes documentos comprovativos. Por outras palavras, a Docapesca, trata da qualidade do produto, através de análises veterinárias ao pescado em troca de taxas.
Nos seus armazéns, a empresa fornece todo o material necessário para o leilão, cabazes, gelo, bancas de lavagem e etc. Também fornece apoio administrativo e técnico.
A empresa garante o pagamento das vendas de pescado aos armadores/pescadores, sendo responsável pela cobrança das aquisições de pescado aos compradores.
De acordo com o último relatório de contas de 2022, divulgado pela empresa, foram transacionadas nas várias lotas da Docapesca mais de 98 mil toneladas de pescado fresco, no valor de mais de 245 milhões de euros. Em 2021 a safra ultrapassou as 115 mil toneladas, no valor de 251 milhões de euros.
Como escolher uma boa sardinha?
Entre as muitas formas de identificar se o pescado está em condições, destacam-se o aspeto dos olhos, que devem ser transparentes, húmidos, mas sem mucus. O aspeto da carne deve ser firme e suave ao tacto. As escamas querem-se brilhantes e transparentes.
No caso específico das sardinhas, convém terem alguma gordura. Quando está à mesa de um restaurante e quiser saber se as sardinhas são ou não congeladas, pergunte ao empregado. Contudo, uma das formas de saber, contada pelo sr. Carlos, é através do rabo do peixe, que deve estar na sua forma completa. "Como é muito frágil, o rabo parte-se com o gelo", disse o pescador. Portanto, se estiver quebrado é porque foi congelado.
Onde se pesca sardinha?
A sardinha consumida em Portugal provém sobretudo do Nordeste Atlântico (Zona FAO 27), incluíndo o Mediterrâneo e o Mar Negro. O tamanho minímo de captura não pode ser inferior a 11 cm e a sua conservação deve estar entre os 0ºC e os 4ºC.
Quais os benefícios no consumo de sardinha?
Apesar de recentemente os ambientalistas da Zero - Associação Sistema Terrestre Sustentável terem alertado para o facto de em Portugal se estar a consumir peixe em demasia, a verdade é que se trata de uma dieta especialmente saudável. No caso da Sardinha, a sua gordura é particularmente rica em ácidos gordos do tipo ómega-3 que tem benefícios para a saúde nomeadamente na prevenção de doenças cardiovasculares e degenerativas. O mesmo se pode dizer da Cavala e do Carapau, peixes também abundantes na costa portuguesa e que é pescado juntamente com a sardinha na técnica de arrastão.
(artigo atualizado às 21h05)
*com Lusa e DGRM
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